O diabo no corpo

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Contracapa



Em meio ao sofrimento das trincheiras da Primeira Guerra Mundial, a jovem esposa de um soldado em batalha inicia um caso com um adolescente de dezesseis anos, o narrador deste O diabo no corpo. O envolvimento entre os dois vai se tornando mais sério. Ela engravida. O falatório começa a se espalhar pela vizinhança. O cerco se fecha sobre os amantes. Um final trágico se anuncia.

Quando publicado pela primeira vez, em 1923, o livro de estreia de Raymond Radiguet causou sensação nos círculos letrados de Paris — em parte por se tratar da produção de um prodígio, escrita quando seu autor tinha dezessete anos, e por ser considerada uma obra-prima por um escritor do quilate de Jean Cocteau. Acrescentando ao clima geral de expectativa em torno do livro antes ainda de seu lançamento, tratava-se de uma história de inspiração autobiográfica — o jovem escritor havia se envolvido em um escandaloso caso de amor com uma professora na adolescência. Apesar da estreia promissora, O diabo no corpo acabou sendo o único sucesso que Radiguet conheceu em vida.

RAYMOND RADIGUET (1903-1923) morreu poucos meses depois, de febre tifoide, aos vinte anos de idade.



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Vou me expor a recriminações. Mas o que posso fazer? É minha culpa se completei doze anos alguns meses antes do início da guerra? Sem dúvida, os transtornos que me trouxe esse período extraordinário foram de um tipo que jamais se experimenta nessa idade; mas como, apesar das aparências, nada é forte o bastante para nos envelhecer, ainda criança eu tomaria parte numa aventura em que mesmo um homem se veria em apuro. Não fui o único. E meus camaradas guardarão desse tempo uma lembrança que não é a mesma dos rapazes mais velhos. Que aqueles já indispostos comigo considerem o que foi a guerra para tantos meninos: quatro anos de férias.

Nós morávamos em F..., às margens do Marne. Meus pais condenavam a camaradagem mista. A sensualidade, que nasce conosco e se manifesta ainda cega, ganhou com isso, em vez de perder.

Nunca fui um sonhador. O que parece sonho para outros, mais crédulos, a mim me parece tão real quanto o queijo para o gato, apesar da redoma de vidro. No entanto, a redoma existe.

Ela se quebrando, o gato aproveita, ainda que sejam seus donos que a quebram e cortam as mãos.

Até os doze anos, não me recordo de nenhum namorico, exceto uma garotinha chamada Carmen, a quem remeti, por um garoto menor do que eu, uma carta em que lhe expressava meu amor. Valia-me desse amor para solicitar um encontro. Minha carta lhe fora entregue pela manhã, antes que ela saísse para a aula. Eu distinguira a única pequena que se assemelhava a mim: vestia-se com asseio e ia à escola acompanhada de uma irmãzinha, como eu de meu irmãozinho. Para que essas duas testemunhas se calassem, eu pensava em casá-las de algum modo. Então juntei à minha carta uma outra, da parte de meu irmão, que não sabia escrever, para a srta. Fauvette. Expliquei a meu irmão o que havia feito e nossa sorte em deparar com duas irmãs de nossas idades e batizadas com nomes tão excepcionais. Depois de almoçar com meus pais, que me tratavam com mimos, jamais com censuras, retornei à escola, e tive a tristeza de ver que não me enganara quanto à boa linhagem de Carmen.

Meus colegas mal haviam se sentado — eu no fundo da sala de aula, agachado para pegar num armário, em minha condição de primeiro aluno, os volumes para a leitura em voz alta —, quando o diretor entrou. Os alunos se levantaram. Ele segurava uma carta. Minhas pernas dobraram, os volumes caíram, eu os recolhi, enquanto o diretor e o professor conversavam. Os alunos dos primeiros bancos viravam-se para mim, ruborizado no fundo da sala, pois ouviam sussurrarem meu nome. Enfim o diretor me chamou e, para me punir de modo sutil, sem despertar ao mesmo tempo, assim pensava, maus pensamentos nos alunos, felicitou-me por haver escrito uma carta de doze linhas sem um único erro. Perguntou-me se a escrevera mesmo sozinho, e depois me pediu que o acompanhasse até seu escritório.