A duquesa, logo que se vira curada, reconciliara-se com a Igreja, quebrando todas as relações com o Senhor Voltaire, esse cético notório.
O fantasma lembrou-se também da terrível noite em que esse patife do Lord Canterville foi encontrado no seu quarto de vestir meio sufocado, com o valete de ouros no fundo da garganta; precisamente antes de morrer, confessara ter trapaceado no jogo por meio dessa carta e roubado de Charles James Fox, na casa dos Crockfords, cinquenta mil libras esterlinas. 0 fantasma, jurava ele, obrigara-o a engolir a carta.
O fantasma de Canterville revia, em pensamento, as suas mais belas façanhas. Evocou o caso do mordomo que, na copa, se suicidara com um tiro de revólver por ter visto uma mão verde bater nos vidros; depois, o da bela Lady Stutfield, que se intimou a trazer sempre em volta do pescoço uma fita de veludo negro, para ocultar a marca que cinco dedos de fogo haviam imprimido na sua pele branca de leite, e que acabara Por se afogar no lago das carpas, no fim da alameda do rei.
Com o egoísmo entusiástico do verdadeiro artista, o fantasma passou em revista as suas realizações mais famosas.
E com um sorriso cheio de azedume, recordou-se da sua última aparição como "Ruben, o Vermelho", ou o "Bebê Estrangulado", da sua estreia no papel de "Gibeon, o Vampiro de Moor", e da agitação que provocara, numa encantadora tarde de junho, jogando muito simplesmente o chinquilho com sua própria ossada na relva do campo de tênis.
E, ao cabo de todos estes altos feitos, eis que uns miseráveis americanos modernos lhe vinham oferecer lubrificante e arremessar-lhe travesseiros na cabeça! Era verdadeiramente intolerável. Nunca fantasma algum fora tratado daquela maneira. Decidiu, pois, vingar-se; e, até romper a aurora, permaneceu em atitude de profunda meditação.

III
Na manhã seguinte, durante o desjejum, o fantasma foi objeto de prolongada discussão. O embaixador dos Estados Unidos estava, como é natural, um pouco aborrecido por ver que a sua dádiva não tinha sido aceita.
— De forma alguma eu tive a intenção de dirigir ao fantasma uma injúria pessoal e, sendo certo que ele reside na casa há tanto tempo, vocês devem confessar que é muito pouco delicado atirar-lhe travesseiros à cabeça...
Lamento ter de declarar que, perante esta justa advertência, os gêmeos desataram em gargalhadas.
— Por outro lado — prosseguiu o embaixador — se ele se recusa, teimosamente, a empregar o lubrificante, teremos de confiscar-lhe os grilhões. É impossível dormir com um barulho assim no corredor!
Mas, durante todo o resto da semana, o fantasma não os incomodou absolutamente nada. A única coisa a excitar a atenção era o reaparecimento contínuo da mancha de sangue no assoalho da biblioteca. E essa era uma estranha coisa, porque Mr. Otis fechava a porta a chave todas as tardes e mandava cerrar bem as janelas. O fato de a mancha mudar tantas vezes de tom, como um camaleão, provocava igualmente numerosos comentários. Em determinadas manhãs, ela aparecia de um vermelho-escuro, quase um vermelho-indiano; no dia seguinte, era um rubro retinto; no outro dia, era um violeta suntuoso; e até uma vez quando os Otis todos desceram para as orações familiares, conforme os ritos cheios de simplicidade da Igreja Livre Americana Reformada e Episcopal, verificaram que a mancha era de um verde-esmeralda resplandecente. Bem entendido, estas mutações caleidoscópicas divertiam muito a família; e, todas as noites, estabeleciam-se apostas a seu respeito.
A única pessoa que não tomava parte na brincadeira era a pequena Virgínia, que, por qualquer razão ignorada, parecia sempre consternada ao ver a mancha de sangue e esteve perto de desatar a chorar na manhã em que a nódoa apareceu no tom verde-esmeralda.
A segunda aparição do fantasma foi no domingo à noite. Pouco tempo depois de se terem metido na cama, foram de súbito alarmados por um medonho estrondo vindo do vestíbulo. Descendo precipitadamente a escada, verificaram que uma grande e antiga armadura, despregada da sua base, fora projetada para o lajedo, enquanto o fantasma de Canterville, sentado numa cadeira de alto espaldar e com uma expressão de angústia, esfregava os joelhos.
Os gêmeos, que se tinham munido das suas zarabatanas, descarregaram imediatamente dois pequenos projéteis sobre o fantasma, com essa precisão de pontaria que só longos e sérios exercícios, tendo por mestre um professor exímio, podem dar, enquanto o embaixador dos Estados Unidos, mantendo-o sob a ameaça do seu revólver, intimava-o, segundo a etiqueta, a que pusesse as mãos ao alto.
O fantasma levantou-se bruscamente, com um medonho grito de raiva e deslizou por entre eles todos tal qual um nevoeiro, apagando na sua passagem a vela de Washington Otis e deixando-os na completa escuridão.
Ao alcançar o alto da escadaria, o fantasma recobrou ânimo e decidiu soar o famoso carrilhão de risos demoníacos, cuja utilidade mais de uma vez havia experimentado. Contava-se que aquilo fizera embranquecer os cabelos de Lord Raker em uma única noite, e certamente tinha feito três governantas francesas de Lady Canterville desertarem antes de o mês terminar.
Ele adequadamente deu sua risada mais horrível, que o velho teto repercutia, mas o eco quase perdeu efeito e se extinguiu quando uma porta se abriu, e a Sra. Otis saiu do quarto num robe azul claro.
— Receio que você não esteja nada bem, ela disse. Por isso lhe trouxe uma garrafa do tônico Doctor Dobell. Se for indigestão, você vai ver que é um excelente remédio.
O fantasma olhou para ela com fúria, e começou imediatamente a fazer preparativos para se transformar num grande cão preto, uma realização pela qual ficara justamente famoso, e à qual o médico da família sempre atribuíra a idiotia permanente do tio de Lord Canterville, o Exmo. Thomas Horton. O som de passos se aproximando, no entanto, o fez hesitar em seu propósito caiu , então contentou-se em se tornar ligeiramente fosforescente, desaparecendo no instante em que os gêmeos chegavam perto dele.
Ao chegar a sua sala, estava inteiramente quebrado, presa fácil da agitação mais violenta. A vulgaridade dos gêmeos e o materialismo grosseiro da Sra. Otis eram extremamente irritantes, mas o que realmente o afligia era que ele tinha sido incapaz de usar a armadura. Ele esperava que os americanos, ainda que modernos, ficassem nervosos com a visão de um espectro de armadura, se por nenhuma razão mais sensata, pelo menos em respeito a seu próprio poeta, Longfellow, a cuja graciosa e atraente poesia ele mesmo já dedicara uma hora quando os Cantervilles foram à cidade. Além do mais, era um traje seu. Ele o tinha usado com grande sucesso no torneio de Kenilworth e fora altamente elogiado por ninguém menos do que a própria Rainha Virgem. No entanto, quando ele tentou colocá-lo, foi completamente vergado pelo peso da enorme couraça de ferro, e caiu pesadamente no chão de pedra, ferindo severamente ambos os joelhos e fazendo hematomas nas juntas da mão direita.
Por alguns dias ele se sentiu muito doente, e dificilmente saía de seu quarto, exceto para manter a mancha de sangue no piso do salão. No entanto, cuidando-se muito bem, ele se recuperou e resolveu fazer uma terceira tentativa de assustar o embaixador dos Estados Unidos e sua família. Escolheu a sexta-feira 17 de agosto para sua aparição, e passou a maior parte do dia olhando seu guarda-roupa para, por fim, decidir-se em favor de um grande chapéu desengonçado com uma pena vermelha, uma mortalha presa nos pulsos e no pescoço e um punhal enferrujado.
À noite caiu violenta tempestade, e o vento foi tão forte que sacudiu todas as janelas e portas da velha casa.
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