Era uma voz cheia de dinheiro — era esse o charme inesgotável e oscilante de sua fala, o ritmo, a música de címbalos… Lá no topo do palácio branco a filha do rei, a garota de ouro…”. Nick se entrega a uma fantasia de livre associação não sintática. Mas pode-se ter a impressão de que não é nada disso, e os címbalos e ritmos e a filha do rei não vão direto ao ponto. É mais provável que Gatsby esteja insinuando que Daisy é um produto caríssimo, que é preciso ter muito dinheiro para fabricá-la e mantê-la, e que na realidade ela respira dinheiro, sugerindo assim que Gatsby tem consciência disso. Nick prefere ignorar a base material, “a rocha do mundo”, e levantar voo rumo ao planeta das fadas. A despeito do que Gatsby quis dizer com essa afirmação admirável e enigmática, é Nick que assumidamente considera a voz de Daisy eletrizante, cheia não de dinheiro, mas de “arrebatamento” e “promessa”. Quando ele especula — “Creio que a voz de Daisy, com seu entusiasmo oscilante e febril, o prendia sobretudo por não conseguir ser superada em sonhos” —, tem-se a certeza de que era Nick quem se prendia à voz, que sem dúvida podia ser superada em sonhos, como ele mostra mais tarde (no trecho citado a seguir). Além de ser uma espécie de moralista desencantado, Nick se revela um ferrenho sonhador hiperbólico. Não é, de forma alguma, uma característica de todo antipática.

A certa altura, quando o narrador está completamente tomado pela história de Gatsby, que ele registra em um confiante discurso indireto na terceira pessoa, Nick se entrega a este lírico relato:

 

Com o canto dos olhos, Gatsby reparou que os blocos da calçada formavam uma escada perfeita que levava a um lugar secreto entre as árvores — que ele poderia escalar, se estivesse sozinho, e lá de cima sugar o seio da vida, absorvendo o incomparável leite de seu assombro.

Seu coração bateu mais rápido quando o rosto de Daisy se aproximou do seu. Gatsby sabia que, após beijá-la, associando para sempre suas fantasias inexprimíveis àquela respiração fugaz, seu espírito nunca mais seria divertido como o espírito de Deus. Portanto ele esperou, ouvindo por mais um segundo o som do diapasão que tinia ao tocar numa estrela. Então a beijou. Ao toque de seus lábios, ela se abriu como uma flor e a encarnação se completou.

De tudo o que ele me disse, em meio a um sentimentalismo alarmante, lembro-me de uma coisa: um ritmo elusivo, um fragmento de palavras perdidas que já ouvira antes. Por um instante, tentei formular uma frase e meus lábios se entreabriram feito os de um homem tolo, como se detidos por outros obstáculos além de um sopro de surpresa no ar. Mas não consegui dizer nada, e minha quase lembrança se fez incomunicável para sempre. [Grifo meu.]

 

Talvez a primeira pergunta a fazer seja: de quem é o sentimentalismo alarmante? Sabemos bem que Gatsby tomou Daisy “de modo voraz e inescrupuloso” e que talvez não tivesse em mente nenhuma dessas “fantasias inexprimíveis” e “respiração fugaz”. O som do diapasão tinindo ao tocar nas estrelas é assunto de uma centena de canções populares, nem de longe as melhores, que deviam estar grudadas na mente de Nick. É sem dúvida o solteirão convicto Nick que sente maior satisfação nessa escalada solitária, bem como há algo de regressivo na ideia de escalar um lugar secreto para sugar leite de assombro do seio da vida. (Há mais a dizer posteriormente sobre o seio da vida e o leite do assombro.) Tal alusão à nostalgia dos prazeres da infância se estende à palavra “divertido”, e comparar as liberdades e indulgências anárquicas e narcisistas da infância à mente divina é uma tentativa audaciosa de dar um viés religioso a esses desejos regressivos. O que quer que se passasse na cabeça de Gatsby enquanto ele paquerava Daisy, sem dúvida não era nada disso, não é?

A questão ganha força quando tomamos conhecimento de que, a certa altura, Fitzgerald acrescentou às provas do livro seis páginas explicitando que o “sentimentalismo alarmante” de fato pertencia a Gatsby. Por exemplo: há um diálogo entre ambos no qual Nick afirma de forma simpática que Daisy é “uma bela e satisfatória encarnação do nada”, ao que Gatsby retruca, com uma resignação muito mais lúcida: “Sim, é verdade […] Mas é como amar um lugar onde você já foi feliz uma vez”. Muito mais desastrosa teria sido a inserção, ou retenção, desta confissão autoanalítica de Gatsby: “‘Mas a verdade é que sou oco e acho que as pessoas sabem disso […]. Daisy é tudo o que me sobrou de um mundo tão maravilhoso que só de recordar fico doente.’ Ele olhou ao redor com enorme arrependimento. ‘Deixe-me cantar uma música — quero lhe cantar uma música […]. O som dela me faz feliz. Mas não costumo cantá-la muito pois tenho medo de gastá-la.’”. A canção, escrita quando ele tinha catorze anos — catorze!, o futuro desse homem é mesmo o passado —, é reproduzida na íntegra e justifica amplamente o comentário de Nick sobre o “sentimentalismo alarmante”. Toda essa explicitação desastrosa e autodestrutiva foi cortada com acerto. Fitzgerald só manteve o último parágrafo do trecho citado. As partes cortadas amplificam o caráter misterioso de Gatsby, enquanto o parágrafo mantido sugere que, a despeito do tom adotado pela lembrança, nostalgia e desejo de Gatsby, ele continua irrecuperável, incomunicável, inarticulável — perdido como o Sonho Americano.