Antônio:

– Bom é que vejais, Sr. Mariz, que nunca me iludo! Que de vezes vos hei dito que fazíeis mal em conservar esse bugre? Não queríeis acreditar: tínheis um fraco inexplicável pelo pagão. Pois bem...

A dama tomou um tom oratório e acentuou a palavra com um gesto enérgico apontando para o animal morto:

– Aí tendes o pago. Toda a vossa família ameaçada! Vós mesmo que podíeis sair desapercebido; vossa filha, que ignorando o perigo que corria, foi banhar-se, e podia a esta hora estar pasto de feras.

O fidalgo estremeceu à ideia do perigo que correra sua filha e ia precipitar-se; mas ouviu um doce murmúrio de vozes que parecia um chilrear de saís: eram as duas moças que subiam a ladeira.

D. Lauriana sorria-se do seu triunfo.

– E se fosse só isto? continuou ela. Porém não para aqui: amanhã vereis que nos traz algum jacaré, depois uma cascavel ou uma jiboia; encher-nos-á a casa de cobras e lacraus. Seremos aqui devorados vivos, porque a um bugre arrenegado deu-lhe na cabeça fazer as suas bruxarias!

– Exagerais muito também, D. Lauriana. É certo que Peri fez uma selvajaria; mas não há razão para que receemos tanto. Merece uma reprimenda: lha darei e forte. Não continuará.

– Se o conhecêsseis como eu, Sr. Mariz! É bugre e basta! Podeis ralhar-lhe quanto quiserdes; ele o fará mesmo por pirraça!

– Prevenções vossas, que não partilho.

A dama conheceu que ia perdendo terreno; e resolveu dar o golpe decisivo; amaciou a voz, e tomou um tom choroso.

– Fazei o que vos aprouver! Sois homem, e não tendes medo de nada! Mas eu, continuou arrepiando-se, não poderei mais dormir, só com a ideia de que uma jararaca sobe-me à cama; de dia a todo momento julgarei que algum gato montês vai saltar-me pela janela; que a minha roupa está cheia de lagartas de fogo! Não há forças que resistam a semelhante martírio!

D. Antônio começou a refletir seriamente sobre o que dizia sua mulher, e a pensar no sem-número de faniquitos, desmaios e arrufos que ia produzir o terror pânico justificado pelo fato do índio; contudo conservava ainda a esperança de conseguir acalmá-la e dissuadi-la.

D. Lauriana espiava o efeito do seu último ataque. Contava vencer.

XIII – REVELAÇÃO

Isabel e Cecília, que voltavam do banho conversando, aproximaram-se da porta, não sem algum susto do animal; susto que se desfez com o sorriso do velho fidalgo, revendo-se na beleza de sua filha.

Com efeito, Cecília estava nesse momento de uma formosura que fascinava.

Tinha os cabelos ainda úmidos, dos quais se escapava de vez em quando um aljôfar que ia perder-se na covinha dos seios cobertos pelo linho do roupão; a pele fresca como se ondas de leite corressem pelos seus ombros; as faces brilhantes como dois cardos rosas que se abrem ao pôr do sol.

As duas meninas falavam com alguma vivacidade; mas, ao aproximarem-se da porta, Cecília que ia um pouco adiante voltou-se para sua prima na pontinha dos pés, e com um arzinho petulante levou o dedo aos lábios recomendando silêncio.

– Sabes, Cecília, que tua mãe está muito zangada com Peri? disse D. Antônio tomando o rostinho mimoso de sua filha e beijando-a na fronte.

– Por que, meu pai? Fez ele alguma coisa?

– Uma das suas, e de que já sabes parte.

– E eu vou contar-te o resto, atalhou D. Lauriana, tocando com a mão o braço de sua filha.

E de fato apresentou com as cores mais negras, e com a ênfase mais dramática, não só o risco iminente que na sua opinião tinha corrido a casa inteira, mas os perigos que ameaçavam ainda a paz e sossego da família.

Referiu que, se por um milagre a sua caseira não tivesse há coisa de uma hora chegado à esplanada e visto o índio fazendo partes diabólicas com o tigre ao qual naturalmente ensinava a maneira de penetrar na casa, todos àquela hora estariam defuntos.

Cecília empalideceu, lembrando-se do descuido e alegria com que atravessara o vale e se banhara; Isabel conservou-se calma, mas seus olhos brilhavam.

– Assim, concluiu peremptoriamente D. Lauriana, não é concebível que continuemos com semelhante praga em casa.

– Que dizeis, minha mãe? exclamou Cecília assustada: pretendeis mandá-lo embora?

– Sem dúvida: essa casta de gente, que nem gente é, só pode viver bem nos matos.

– Mas ele nos ama tanto! Tem feito tanto por nós, não é verdade, meu pai? disse a menina voltando-se para o fidalgo.

D. Antônio respondeu à sua filha por um sorriso que a sossegou:

– Vós ralhareis com ele, meu pai; eu ficarei agastada, continuou Cecília, e ele se emendará e não fará mais outra.

– E a de há pouco? replicou Isabel dirigindo-se a Cecília.

D. Lauriana, que via a sua causa mal parada depois da chegada das moças, apesar da repugnância que sentia por Isabel, conheceu que tinha nela um aliado; e dirigiu-lhe a palavra, o que sucedia uma vez por semana.

– Chega-te, menina; o que é que dizes ter acontecido há pouco?

– É também um perigo que correu Cecília.

– Qual! minha mãe; foi mais susto de Isabel do que outra coisa.

– Susto, sim; mas pelo que vi...

– Conta-me isso; e tu, Cecília, fica aí sossegada.

A menina pelo respeito que tinha a sua mãe não se animou a dizer mais uma palavra; porém, aproveitando-se do movimento que fez D. Lauriana ao voltar-se para ouvir a Isabel, abanou a cabeça à sua prima pedindo-lhe que nada dissesse.

A moça fez que não viu o gesto e respondeu à sua tia:

– Cecília estava se banhando e eu tinha ficado à beira do rio: daí a algum tempo vejo Peri que passava ao longe pelo galho de uma árvore. Ele sumiu-se, e de repente uma seta partida daquele lugar veio cair a dois passos de minha prima!

– Ouça cá, Sr. Mariz! exclamou D. Lauriana; ouça as estripulias do capeta!

– No mesmo instante, continuou Isabel, ouvimos dois tiros de pistola, que ainda mais nos assustaram, porque decerto foram apontados também para nosso lado.

– Senhor Deus! É pior do que uma judiaria! Mas quem deu pistolas a esse bugio?

– Fui eu, minha mãe, respondeu timidamente Cecília.

– Melhor seria que rezasses as tuas contas. Era bem feito que com elas mesmo... Senhor Deus! perdoai-me!

D. Antônio tinha ouvido as palavras de Isabel, apesar de conservar-se a alguma distância; o rosto do fidalgo tomara uma expressão grave.

Fez um ligeiro aceno a Cecília, e afastou-se com ela em ar de quem passeava pela esplanada:

– O que diz tua prima é verdade?

– É, meu pai; mas estou certa que Peri não o fez por maldade.

– Contudo, replicou o fidalgo, isto pode renovar-se; por outro lado tua mãe está atemorizada; assim, o melhor é afastá-lo.

– Ele vai sentir muito!

– E eu e tu também, porque o estimamos; mas não seremos ingratos; eu pagarei a tua e a minha dívida de gratidão; deixa isto ao meu cuidado.

– Sim, meu pai! exclamou a menina com um olhar úmido de reconhecimento e de admiração: Sim! Vós que sabeis compreender tudo que é nobre!

– Como tu, minha Cecília! respondeu o fidalgo acariciando-a.

– Oh! eu aprendi no vosso coração, e nas vossas menores ações.

D. Antônio abraçou-a.

– Ah! tenho uma coisa a pedir-vos!

– Dize: há muito que não me pedes nada, e eu já tenho queixa disso.

– Mandareis conservar este animal? Sim?

– Desde que o desejas...

– Será uma lembrança que teremos de Peri.

– Para ti, que para mim a melhor lembrança és tu. Se não fosse ele, podia eu agora apertar-te nos meus braços?

– Sabeis que tenho vontade de chorar só de pensar que ele se vai?

– É natural, minha filha, as lágrimas são um bálsamo que Deus deu à fraqueza da mulher, e que negou à força do homem.

O fidalgo separou-se de sua filha, e chegou-se à porta onde se achavam ainda sua mulher, Isabel e Aires Gomes.

– Que decidistes, Sr. D.