O imoralista

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André Gide

O Imoralista

Tradução de Theodomiro Tostes

edição

Editora Nova Fronteira

Título original: L’immoraliste

Cl Éditions Mercure de France, 1902

Direitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela

Editora Nova Fronteira S.A.

Rua Maria Angélica, 168 – Lagoa – CEP: 22.461 – Tel.: 286-7822

Endereço telegráfico: NEOFRONT

Rio de Janeiro – RJ

Capa

Victor Burton

Revisão

Lúcia Mousinho

Beatriz Nunes da Silva

Marilda Barroca

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Gide, André, 1869-1951.

G385i O Imoralista / André Gide ; tradução de Theodomiro Tostes. – 2ª ed. – Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1983.

Tradução de: L’Immoraliste. I. Romance francês I. Título

82-0868

CDD – 843 CDU — 840-31

Contracapa

O imoralista é um dos livros mais ousados de André Gide, autor de Se o grão não morre e Os frutos da terra, já publicados pela Nova Fronteira. A história do jovem casado que renova o gosto da vida ao conhecer um belo adolescente árabe, é libelo contra a hipocrisia do mundo burguês e denuncia corajosamente os obstáculos à liberdade do homem. É com O imoralista que Gide melhor justifica as palavras que o definiram para Jean-Paul Sartre: “Ele nos ensinou, ou lembrou, que tudo podia ser dito — essa a sua audácia —, mas segundo certas regras do bem-dizer — essa a sua prudência.”


Orelhas


Descendendo ao mesmo tempo de representantes do mundo agrário e da pequena burguesia, André-Paul-Guillaume Gide (Paris, 22/11/1869 — 19/02/1951) parecia desde cedo fadado à controvérsia. Tendo feito estudos irregulares, segundo os preceitos da mais estrita educação protestante, o futuro prêmio Nobel de 1947 mereceu o descaso de seus professores, que o consideravam intelectualmente pouco dotado. Daí, talvez, a acentuada reclusão sobre si mesmo, o silêncio quase constante e o amor pelas coisas da natureza se terem tornado o leitmotiv de sua conturbada existência. Gide pertenceu à geração de Claudel, Valéry e Proust, mas deles se distinguiu pela intensa crise espiritual que marcou praticamente toda a sua vida. Nele, a sensualidade precoce se opunha ao fervor religioso; a vergonha, aos charmes (in)discretos do pecado.

Foi pela criação literária que esses conflitos melhor se revelaram, embora sem nunca acharem sua solução. Já nos Cahiers d’André Walter, de pouco sucesso na época (1881), essa catarse começa a tomar forma. A história do jovem que, impotente diante das opções proporcionadas pelo mundo exterior, se consome num excesso de vida introspectiva, emocionou uma juventude em luta contra a hipocrisia e o puritanismo fin-de-siècle.

Era o início de uma carreira destemida e pioneira.

O Gide imoralista tem 33 anos. Num estilo claro e esmerado, ergue a voz contra os preconceitos, protesta contra tudo o que mascara e impede a consumação da liberdade do homem. Recorrendo a um episódio autobiográfico — a viagem à Argélia nos idos de 1893, em que adoeceu —, ele narra o drama de um jovem casado, egresso de uma educação rígida, para quem a saúde e o gosto de viver são encontrados nos braços de um adolescente árabe, em meio a uma África selvagem. O conflito entre Eros e Tanatos, que é o cerne do romance, nem por isso deixa de motivar um cântico ao mundo das cores, dos aromas, da embriaguez sensual, um cântico, enfim, ao corpo finalmente encontrado.

Ex-simpatizante do comunismo e influência importante no pensamento de Malraux, Camus e Sartre, o humanista Gide tornou esse livro indispensável ao leitor de Os frutos da terra e Se o grão não morre, ambos execrados pelos patrulheiros da boa moral. Gide, “contemporâneo essencial”, no entender de André Malraux, mereceu de Sartre as palavras que talvez melhor sintetizem o significado de sua obra: “Nele equilibram-se a lei protestante e o não-conformismo do homossexual, o individualismo orgulhoso do grande burguês e o gosto puritano dos limites estabelecidos pela sociedade (…) Ele nos ensinou, ou lembrou, que tudo podia ser dito — essa a sua audácia —, mas segundo certas regras do bem-dizer — essa a sua prudência.”

A Henri Ghéon

Seu franco camarada


A. G.

Eu te louvo, ó meu Deus, por me teres feito criatura tão admirável.


Salmo CXXXIX, 14

Prefácio

Dou este livro pelo que ele vale. É um fruto cheio de cinza amarga; semelhante às plantas do deserto que crescem nos locais calcinados e só oferecem à sede um ardor mais cruel, mas têm sua beleza sobre a areia dourada. Se eu tivesse apresentado o meu herói como um exemplo, é preciso convir que pouco teria conseguido;1 os raros que se interessaram pela aventura de Michel o fizeram para desprezá-lo com toda a força de sua bondade.

Não foi em vão que ornei Marceline de tantas virtudes; ninguém perdoou Michel por não tê-la preferido a si mesmo.

Se eu tivesse apresentado este livro como um libelo contra Michel, também não teria conseguido grande coisa; ninguém me ficou reconhecido pela indignação que sentiu por meu herói; parece que a teriam sentido independentemente da minha vontade; de Michel ela transbordava sobre mim; por pouco me teriam confundido com ele. Mas não quis fazer neste livro ato de acusação nem apologia, e me abstive de julgar. O público, hoje em dia, já não perdoa que o autor, depois de pintar a ação, não se manifeste a favor ou contra; mais ainda, em pleno desenrolar do drama, quer que ele tome partido, que se pronuncie francamente por Alceste ou por Filinto, por Hamlet ou por Ofélia, por Fausto ou por Margarida, por Adão ou por Jeová. Não quero afirmar, é certo, que a neutralidade (ia dizer: a indecisão) seja a marca de um grande espírito; mas creio que a muitos dos grandes espíritos repugnou bastante… concluir — e que o fato de expor bem um problema não pressupõe que ele já esteja resolvido.

É a contragosto que emprego aqui a palavra “problema”. Na verdade, em arte não existem problemas — dos quais a obra de arte não seja a suficiente solução.

Se por “problema” entende-se “drama”, direi que aquele de que trata este livro, pelo fato de ser representado na própria alma do meu herói, não deixa de ser demasiadamente geral para ficar circunscrito à sua singular aventura. Não tenho a pretensão de haver inventado este “problema”; ele existia antes do meu livro; triunfe Michel ou sucumba, o “problema” continua a ser problema, e o autor não propõe como solução nem o triunfo nem a derrota.

Se alguns espíritos mais elevados viram neste drama o relato de um caso estranho, e em seu herói um doente; se ignoraram que algumas ideias muito oportunas e de grande interesse podem, no entanto, habilitá-lo — a culpa não é das ideias nem do drama, mas do autor, ou, melhor, de sua falta de habilidade —, apesar de ele ter colocado no livro toda a sua paixão, todas as suas lágrimas e todo o seu desvelo. Mas o interesse real de uma obra e o que ela desperta no público de um dia são duas coisas muito diferentes. Pode-se preferir, sem muita fatuidade, correr o risco de não conseguir interessar no primeiro dia com coisas interessantes — a apaixonar, sem amanhã, um público faminto de banalidades.

De resto, não tentei provar coisa alguma, mas unicamente pintar bem e dar suficiente realce à minha pintura.



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1 Em junho de 1902 foi lançada uma pequena edição in-octavo deste livro, de 300 exemplares.

Ao Senhor D. R.,

Presidente do Conselho


Sidi b.