Há um jardim cercado de muros baixos, ou, melhor, de sebes, em que crescem três romãzeiras curvadas e um soberbo rododendro. Um menino cabila, que ali estava, fugiu à nossa chegada, pulando facilmente o muro.

Michel nos recebeu sem mostrar alegria; muito simples, parecia temer qualquer manifestação de carinho; mas, à entrada de casa, nos abraçou com um jeito grave. Até a noite, pouco conversamos. Um jantar quase frugal estava servido no salão, cujas suntuosas decorações nos surpreenderam, mas que a história de Michel te explicará. Depois, serviu-nos café, que ele mesmo fez questão de preparar. Subimos, então, ao terraço, onde a vista se estendia infinitamente, e os três, como os três amigos de Jó, ficamos à espera, admirando sobre a planície em fogo o declínio súbito do dia. Quando a noite caiu, Michel disse:

Primeira parte

I

Meus caros amigos, sabia que vocês me eram fiéis. Ao meu apelo vieram, como eu teria feito com qualquer de vocês. Entretanto, há já três anos que não me viam. Que esta amizade, que resistiu tão bem à ausência, possa também resistir à história que vou contar. Porque se os chamei bruscamente e os fiz viajar até este lugar distante, foi unicamente para vê-los e para que pudessem escutar-me. Não desejo outro socorro além deste: falar-lhes. Cheguei a um ponto de minha vida que não posso mais ultrapassar. Entretanto, não é cansaço. Mas não compreendo mais. Preciso… Preciso falar a vocês… Saber libertar-se não é nada; o difícil é saber ser livre. Permitam que fale de mim; vou contar-lhes minha vida, simplesmente, sem modéstia e sem orgulho, mais simplesmente do que se falasse comigo mesmo. Escutem-me:

A última vez em que nos vimos foi, lembro-me bem, nos arredores de Angers, na pequena igreja de campo em que se realizava o meu casamento. O público era pouco numeroso, e a excelência dos amigos fazia dessa cerimônia banal uma cerimônia comovente. Parecia-me que havia emoção no ambiente, e isso me emocionava também. Na casa daquela que se tornava minha mulher, uma breve refeição, sem maiores manifestações, nos reuniu ao sair da igreja; depois o carro nos levou, de acordo com o costume que associa, em nosso espírito, à ideia de um casamento a visão de um cais de partida.

Eu conhecia muito pouco minha mulher e sabia, sem grande mágoa, que ela também não me conhecia muito. Tinha casado com ela sem amor, mais para satisfazer meu pai, que, pouco antes de morrer, se mostrava apreensivo por me deixar sozinho. Eu amava meu pai com ternura; preocupado pela sua agonia, só pensava, naquele triste instante, em tornar mais suportável o seu fim; e assim comprometi minha vida, sem saber o que a vida poderia ser. Nosso noivado, à cabeceira do moribundo, foi marcado apenas por uma grave alegria: a da grande tranquilidade que proporcionamos a meu pai. Se eu não amava minha noiva, confesso que também não havia amado outra mulher. Isso bastava, a meu ver, para garantir nossa felicidade; ignorante ainda de mim mesmo, julguei possível entregar-me a ela. Era órfã também e vivia com seus dois irmãos; chamava-se Marceline; tinha apenas vinte anos; eu era quatro anos mais velho.

Já disse que não a amava; ao menos, não sentia por ela nada do que se chama comumente amor, mas a amava, se quiserem entender por isso uma ternura, uma espécie de piedade, enfim, uma estima bem grande. Ela era católica, eu sou protestante… aliás, sem muita convicção… o padre me aceitou; eu aceitei o padre; ficamos quites um com o outro.

Meu pai era, como se costuma dizer, um “ateu”, ao menos assim o suponho, já que, por uma espécie de pudor invencível de que ele partilhava, nunca chegamos a conversar a respeito de suas crenças. A grave educação huguenote de minha mãe havia, com sua linda imagem, se apagado lentamente em meu coração; vocês sabem que a perdi muito cedo. Eu não imaginava ainda como essa primeira moral da infância nos domina, nem sabia dos vestígios que ela nos deixa no espírito.