Um cheiro de cebola vinha do porão da casa da tia, onde funcionava a cozinha do restaurante, e todos estavam com sede, todos enervados e furiosos.
O literato Beskúdnikov, um homem quieto e decentemente vestido, olhos atentos e, ao mesmo tempo, fugidios, tirou o relógio. O ponteiro se arrastava para as onze. Beskúdnikov bateu com o dedo no mostrador, indicando-o ao vizinho, o poeta Dvubrátski, que estava sentado na mesa e, por causa do tédio, agitava os pés, calçados com sapatos amarelos de solas de borracha.
— Que demora — rosnou Dvubrátski.
— Na certa o rapaz ficou encalhado no Kliazma —8 replicou com voz grossa Nastássia Lukínichna Nepremênova, órfã de um comerciante moscovita, que se tornara escritora de contos sobre batalhas marítimas, sob o pseudônimo “Jorge Navegador”.
— Espere aí! — pôs-se a falar, corajosamente, o autor de esquetes populares Zagrívov. — Eu também estaria tomando um chazinho em alguma varanda agora mesmo com muito prazer em vez de ficar aqui cozinhando. A sessão não estava marcada para as dez?
— Deve estar tão bom lá no Kliazma agora — Jorge Navegador azucrinava os presentes, sabendo que Pereliguino no Kliazma, vila de veraneio para literatos, era o calcanhar de aquiles de todos. — Na certa os rouxinóis já estão cantando. Sempre trabalho melhor quando estou fora da cidade, sobretudo na primavera.
— Há três anos deposito um dinheirinho para mandar a minha mulher, que sofre da doença de Graves, para esse paraíso, mas desse mato não sai coelho — disse amarga e venenosamente o novelista Ieroním Popríkhin.
— Depende da sorte de cada um — martelou o crítico Abábkov, de um peitoril.
Os pequenos olhos de Jorge Navegador brilharam de alegria, e ela disse, suavizando seu contralto:
— Não há motivo para ter inveja, camaradas. São vinte e duas datchas ao todo e estão sendo construídas apenas mais sete, enquanto na Massolit nós somos três mil.
— Três mil cento e onze — corrigiu alguém, de um canto.
— É isso, estão vendo — continuou Navegador —, fazer o quê? Naturalmente, foram os mais talentosos entre nós que receberam datchas...
— Os generais! — bateu de frente na discussão o roteirista Glukháriev.
Beskúdnikov deu um bocejo artificial e saiu da sala.
— Sozinho em cinco cômodos em Pereliguino — falou Glukháriev pelas suas costas.
— Lavrôvitch fica sozinho em seis — bradou Denískin —, e a sala de jantar é revestida de carvalho!
— Agora a questão não é essa — martelou Abábkov —, e sim que já são onze e meia.
Começou um burburinho, algo parecido a uma rebelião estava prestes a irromper. Telefonaram para a odiada Pereliguino. A ligação foi parar em outra datcha, na de Lavrôvitch, e ficaram sabendo que ele tinha ido até o rio e ficaram totalmente transtornados por causa disso. Telefonaram também para a comissão de belas-letras, ramal 930 e, claro, não encontraram ninguém lá.
— Pelo menos poderia ter telefonado — gritavam Denískin, Glukháriev e Kvant.
Ah, mas gritavam em vão: Mikhail Aleksándrovitch não poderia telefonar para lugar algum. Bem longe dali, longe de Griboiêdov, em uma sala enorme, iluminada por lâmpadas de milhares de volts, em cima de três mesas de zinco, estava deitado aquilo que, pouco tempo antes, fora Mikhail Aleksándrovitch.
Na primeira estava o corpo nu, envolto em sangue seco, com um braço quebrado e a caixa torácica esmagada; em outra, a cabeça sem os dentes da frente, os olhos abertos e turvados que não se assustavam com a luz ofuscante; e, na terceira, um amontoado de trapos endurecidos.
Ao lado do decapitado havia um professor de medicina legal, um anatomopatologista e seu dissector, representantes do processo de investigação e o substituto de Mikhail Aleksándrovitch Berlioz na Massolit — o literato Jeldýbin, que teve de deixar a mulher adoentada quando convocado por telefone.
O carro passara para apanhar Jeldýbin e, antes de tudo, junto com os investigadores, levou-o (isso foi por volta de meia-noite) para o apartamento do morto, onde seus documentos foram lacrados e só então todos foram para o necrotério.
Agora, os três, ao lado dos restos do finado, consultavam-se para resolver como proceder melhor: costurar ou não a cabeça cortada ao pescoço ou expor o corpo na sala da Griboiêdov, simplesmente cobrindo o falecido até o queixo com um lenço preto bem amarrado?
É, Mikhail Aleksándrovitch não tinha como telefonar para lugar algum e Denískin, Glukháriev e Kvant, junto com Beskúdnikov, reclamavam e gritavam, totalmente em vão. Exatamente à meia-noite, todos os doze literatos deixaram o andar superior e desceram para o restaurante. Ali, novamente, eles maldisseram Mikhail Aleksándrovitch: naturalmente todas as mesinhas da varanda já estavam ocupadas e só lhes restava jantar naquelas salas bonitas, porém abafadas.
E exatamente à meia-noite algo estrondou na primeira sala, tilintou, desabou, começou a pular. No mesmo instante, uma voz masculina fininha gritou desesperada, ao som da música: “Aleluia!” Era o famoso grupo de jazz da Griboiêdov que começava a soar. Os rostos cobertos de suor pareciam reluzir, era como se os cavalos desenhados no teto estivessem vivos, as lâmpadas pareciam irradiar mais luz e, de repente, era como se as duas salas tivessem perdido as estribeiras e caído na dança, e atrás delas também a varanda.
Glukháriev dançava com a poetisa Tamara Polumiêssiats, Kvant dançava, o romancista Júkopov dançava com uma atriz de cinema de vestido amarelo. Estavam dançando: Dragúnski, Tcherdáktchi, o pequeno Denískin com a gigantesca Jorge Navegador, Semiêikina-Gall, uma linda arquiteta, dançava fortemente agarrada por um desconhecido de calças brancas de lona. Dançavam os de casa e os convidados; os moscovitas e os de fora: o escritor Johann, de Kronstadt; um tal de Vítia Kúftik, de Rostov, diretor, parece, com uma mancha roxa em toda a bochecha; dançavam os mais destacados representantes da subseção de poesia da Massolit, ou seja, Paviánov, Bogokhúlski, Sládki, Chpítchkin e Adelfina Buzdiak; dançavam jovens de profissões desconhecidas com cabelo cortado rente e ombreiras; dançava um senhor bem idoso, uma lasca de cebolinha espetada na barba, com uma moça magricela, consumida pela anemia, usando um vestido de seda laranja amarrotado.
Derretendo de suor, os garçons carregavam canecas de cerveja sob as cabeças suadas e gritavam roucos de raiva: “Com licença, cidadão!” Em algum lugar uma voz num megafone gritava os pedidos: “Churrasco à Karski!9 Duas zubrovkas! Tripas à moda da casa!” A voz fina não cantava mais, e sim uivava: “Aleluia!” Às vezes o estrondo dos pratos dourados do jazz encobria o estrondo dos pratos que, levados por uma lava-louça, caíam no abismo da cozinha. Resumindo, um inferno.
E à meia-noite houve uma aparição no inferno. Um belo jovem de olhos negros, barba em forma de punhal, de fraque, saiu na varanda e lançou seu olhar de tzar para seus domínios. Os místicos diziam, diziam mesmo, que houve um tempo em que o belo jovem não usava fraque, mas cingia-lhe um cinturão largo de couro do qual pendiam cabos de pistolas, que seus cabelos de asa de corvo estavam amarrados com seda rubra e, sob seu comando, navegava um brigue pelo mar das Caraíbas, com uma bandeira negra e funesta e uma caveira.
Mas não, não! Mentem os místicos sedutores, não existe nesse mundo nenhum mar das Caraíbas e nele não navegam terríveis piratas, nem os persegue uma corveta, nem a fumaça de canhões se estende sobre as ondas. Não existe nada e nada existiu! Olha lá, aquela tília mirrada existe, existe a grade de ferro fundido e atrás dela o bulevar... E o gelo derretendo num vaso, e na mesa ao lado você vê os olhos de touro de alguém injetados de sangue e é terrível, terrível... Oh, deuses, deuses, tragam-me veneno, veneno!
E de repente sobre uma mesa alçou voo uma palavra: “Berlioz!” De repente o jazz desafinou e silenciou como se alguém tivesse lhe acertado um soco. “O quê, o quê, o quê, o quê?!!” — “Berlioz!!!” E começaram a pular, a soltar gritinhos...
É, levantou-se uma onda de angústia com a terrível notícia sobre Mikhail Aleksándrovitch. Alguém se agitou e gritou que era necessário, naquele mesmo instante, ali mesmo, sem sair do lugar, escrever um telegrama coletivo e logo enviá-lo.
Mas que telegrama, se é que podemos perguntar, e para onde? E para que enviá-lo? Realmente, para onde? E de que serviria qualquer telegrama para aquele cuja nuca achatada estava agora comprimida entre as mãos emborrachadas do chefe do serviço de autópsia e o pescoço sendo agora cravado pelas agulhas tortas do professor? Ele morreu, e de nada lhe serve telegrama algum. Está tudo acabado, não vamos sobrecarregar ainda mais o telégrafo.
É, morreu, morreu... Mas nós estamos vivos, ora!
É, levantou-se uma onda de desgraça, durou um pouco, mas começou a amainar e alguns já voltaram para suas mesas e — de início, furtivamente, mas depois abertamente — beberam uma vodcazinha e comeram um tira-gosto. Realmente, por que desperdiçar as almôndegas de frango de volaille? Como vamos ajudar Mikhail Aleksándrovitch? Ficando famintos? Mas estamos vivos, ora!
Naturalmente, o piano de cauda foi fechado a chave, a banda de jazz se dispersou, alguns jornalistas foram para suas redações escrever obituários. Soube-se que Jeldýbin acabava de chegar do necrotério.
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