Originalmente, o termo dinner (do francês antigo disner, “encerrar o jejum”) se aplicava à principal refeição do dia, fosse ela feita logo após o despertar ou ingerida ao meio-dia. Foi a partir do séc.XVIII que a hegemonia cultural dos hábitos urbanos permitiu o atraso da refeição até o meio da tarde, avançando posteriormente ao fim do período vespertino. Na Grã-Bretanha, porém, algumas regiões – entre elas o norte da Inglaterra, onde se localiza Yorkshire – mantêm o costume de realizar o dinner ao meio-dia.

9. A groselheira é um arbusto de porte médio, galhos grossos e repleto de espinhos – o que, aqui, parece insinuar o aspecto intratável da propriedade, embora na Inglaterra seja bastante difundida para a produção de cercas vivas.

10. Juno é uma deusa romana, mulher de Júpiter e mãe de cinco filhos do maior dos deuses latinos, dentre os quais Marte (deus da guerra) e Vulcano (deus da metalurgia). Aos ouvidos de Lockwood, o nome soa irônico, por recorrer à cultura clássica para nomear um cão vulgar de terras ermas.

11. Trata-se de um tipo de ambiente encontrado em regiões elevadas, caracterizado por solos ácidos, altos índices pluviométricos e vegetação baixa, própria de clima temperado (relvado e arbustos). A moorland corresponde à maior parte da vegetação seminatural (isto é, cuja existência decorre da ocupação humana do solo, sobretudo da derrubada de florestas) das ilhas britânicas e é caracterizada pela presença de turfa, massa de tecido de várias plantas produzida por lenta decomposição associada à ação da água. No romance, os moors surgem como um espaço quase selvagem a contrapor-se à paisagem urbana.

12. Em português, “rilhador”, isto é, que range os dentes. Note-se a agressividade e a perfídia embutida nos nomes dos demais cães, que serão nomeados ao longo da narrativa: “Skulker” (ou “sorrateiro”, “malandro”, cf. Cap.6) e Throttler (“estrangulador”, cf. Cap.13).

13. O erudito Lockwood se refere a um momento específico da tragédia de Shakespeare, o da loucura do rei Lear. Depois de realizar a partilha de seu reino entre duas das três filhas – Regan e Goneril, excluindo Cordélia, cuja sinceridade não permitia o exercício de adulação que o pai exigira de todas as três em troca de porções de seu reino –, Lear decide viver ora nos domínios de uma, ora nos domínios de outra, acompanhado de um pequeno exército. Não tardam os conflitos entre o rei e as filhas, que desejam não só destituí-lo da dignidade de soberano como matá-lo, e Lear foge com seu bobo e seu conselheiro, o conde de Kent. Constatando a traição das filhas, Lear deixa o castelo de Regan rumo aos bosques (Ato II, Cena 4). No Ato III, sob forte tempestade, o rei lança imprecações aos céus; enlouquecido, põe-se nu e realiza um julgamento imaginário das filhas que o traíram. Publicada em 1608, Rei Lear figura ao lado de Otelo, o mouro de Veneza, Macbeth e Hamlet entre as principais tragédias de Shakespeare.

CAPÍTULO 3

PRECEDENDO-ME escada acima, Zillah recomendou que eu escondesse a vela e não fizesse barulho, pois seu patrão tinha uma cisma esquisita com o quarto no qual ela ia me colocar e nunca deixava de bom grado que alguém pernoitasse ali.

Indaguei o motivo.

Respondeu-me que não sabia: fazia apenas um ou dois anos que estava naquela casa, e aconteciam tantas coisas estranhas que ela já nem se dava mais ao trabalho de ficar curiosa.

Por demais estupefato para ficar curioso eu mesmo, tranquei a porta e olhei ao redor, à procura da cama. A mobília inteira se resumia a uma cadeira, um guarda-roupa e um imenso baú de carvalho, com aberturas quadradas junto ao topo, parecidas com janelas de uma carruagem.

Aproximando-me da estrutura, olhei para dentro e vi que era uma espécie de divã antiquado, convenientemente concebido para evitar a necessidade de cada membro da família ter seu próprio quarto. Na verdade formava um pequeno compartimento, e o peitoril da janela, que ele agregava, servia de mesa.

Afastei os painéis laterais, entrei com minha vela, fechei-os de novo e me senti a salvo da vigilância de Heathcliff – e dos outros.

O peitoril, onde coloquei minha vela, tinha alguns livros embolorados empilhados a um canto, e estava coberto de palavras talhadas na tinta. A escrita, porém, nada mais era do que um nome repetido em todos os tipos de letra, pequenas e grandes – “Catherine Earnshaw”, aqui e ali alterado para “Catherine Heathcliff” e depois para “Catherine Linton”.

Tomado pela letargia, apoiei a cabeça no peitoril e continuei a ler Catherine Earnshaw... Heathcliff... Linton... até meus olhos se fecharem. Mas não fazia cinco minutos que eles haviam descansado quando um brilho de letras brancas surgiu na escuridão, vívidas como espectros; o ar estava tomado por Catherines, e, erguendo-me para dissipar a imagem do nome inoportuno, percebi que o pavio da minha vela encostava num dos livros antigos, enchendo o lugar com um cheiro de couro queimado.

Soprei o pavio e, muito indisposto devido ao frio e à náusea, sentei-me e abri sobre os joelhos o volume queimado. Era uma Bíblia, em tipo pequeno e cheirando horrivelmente a mofo; a folha de rosto trazia a inscrição “Pertence a Catherine Earnshaw”, e uma data, de um quarto de século antes ou coisa assim.

Fechei o livro e apanhei outro, e mais outro, até tê-los examinado a todos. A biblioteca de Catherine era seleta, e seu estado dilapidado provava que tinha sido bem usada, embora nem sempre com um propósito legítimo; poucos eram os capítulos que haviam escapado a um comentário – ou o que pareciam ser comentários – a tinta, cobrindo todo o espaço em branco deixado pelo tipógrafo.

Alguns eram frases soltas; outras partes assumiam a forma de diário regular, rabiscado com uma caligrafia infantil. No alto de uma página adicional (um tesouro e tanto, provavelmente, ao ser descoberta), diverti-me bastante ao contemplar uma excelente caricatura de meu amigo Joseph – não passava de um tosco esboço, mas realizado com talento.

Um interesse imediato pela desconhecida Catherine acendeu-se em mim, e comecei então a decifrar seus desbotados hieróglifos.

“Que domingo horrível”, começava o parágrafo abaixo.

Queria que meu pai estivesse aqui. Hindley é um substituto detestável... sua conduta para com Heathcliff é atroz...