Fui esconder o pequeno Hareton, e tirar as balas da espingarda do patrão, com a qual ele gostava de brincar em tais momentos de agitação insana, pondo em risco a vida de qualquer um que se metesse na sua frente ou mesmo atraísse por demais sua atenção. Eu tivera a ideia de tirar as balas para que ele causasse menos danos se resolvesse atirar.
45. A naturalidade com que Nelly Dean transforma-se em ama de leite e, no limite, mãe postiça do órfão Hareton sinaliza um aspecto da vida na propriedade dos Earnshaw observado por Terry Eagleton em Myths of Power (1975): a organização familiar como estrutura a um só tempo econômica e natural, com a consequente naturalização das relações de propriedade e a instrumentalização dos laços de sangue. Desse modo, a perspectiva dos fatos, administrada pela própria criada dos Earnshaw, ganha o horizonte de um indivíduo que encarna a ambiguidade desse ambiente: uma mulher que, ao assumir o lugar funcional da “patroa”, vê seu trabalho se naturalizar a ponto de se tornar parte da propriedade em que vive. Enquanto figura estranha à família Earnshaw – chegada à propriedade com a mãe, ama de Hindley e Catherine, e nela permanecendo após sua morte como irmã adotiva do casal –, Nelly guarda similaridade de origem com a figura de Heathcliff.
46. Entre os sécs.XVII e XIX, a Inglaterra assistiu a um forte processo de concentração da propriedade de terras. Em decorrência desse movimento (que seria decisivo para a expulsão dos grandes contingentes populacionais que, nas cidades, formariam a base trabalhadora da Revolução Industrial), praticamente a totalidade (90%) das terras produtivas inglesas estava sob contrato de arrendamento. Wuthering Heights e Thrushcross Grange refletem essa realidade de formas diferentes. Os Earnshaw faziam parte da chamada yeomanry – isto é, da classe de pequenos proprietários de terras, sem título de nobreza, principais responsáveis pela produção do solo que possuíam; já os Linton compunham a chamada gentry, também destituída de nobreza, porém detentora de maiores porções de terra, das quais dispunham como propriedade, sem qualquer relação concreta e direta com o trabalho nela produzido.
47. A exemplo de outras localidades do romance, Penistone Crags (“Penhascos de Penistone”) conhece similar na geografia das imediações de Haworth – mais especificamente, Ponden Kirk. Apesar de o termo kirk significar “igreja” em escocês, não existe notícia de que Ponden Kirk – um penhasco cindido por uma caverna – tenha dado lugar a quaisquer formas de culto religioso em um passado cristão ou pré-cristão; não obstante, no séc.XIX são registrados na região diversos costumes que associavam a visita à caverna a casamentos. Segundo autores dedicados às tradições locais, como James Whalley (The Wild Moor, 1869), Horsfall Turner (Haworth, Past and Present, 1879) e Halliwell Sutcliffe (By Moor and Fell, 1899), a mulher solteira que atravessasse a reentrância das rochas do local ao subir ou descer o penhasco conheceria o matrimônio em pouco tempo.
CAPÍTULO 9
HINDLEY ENTROU, vociferando pragas terríveis de se ouvir, e me surpreendeu no ato de esconder seu filho no armário da cozinha. Hareton tinha verdadeiro terror tanto dos carinhos animalescos quanto da fúria de louco de seu pai. Os primeiros faziam-no correr o risco de morrer esmagado por abraços e beijos, e a segunda, o de ser atirado no fogo ou arremessado contra a parede. O pobrezinho ficava completamente quieto onde quer que eu o colocasse.
– Ah, mas até que enfim o encontrei! – gritou Hindley, puxando-me pela nuca, feito um cachorro. – Por todos os diabos, estão tramando matar essa criança! Agora sei por que é que nunca o vejo. Mas com a ajuda de Satã, vou fazê-la engolir o facão, Nelly! Não ria, acabo de atirar Kenneth de cabeça no pântano de Blackhorse... e matar uma pessoa ou duas dá no mesmo. Quero matar vários de vocês, e não vou descansar enquanto não tiver feito isso!
– Mas não gosto do facão, sr. Hindley – respondi. – Ele andou cortando arenque defumado. Prefiro levar um tiro, se não se incomodar.
– Vá para o inferno! – disse ele. – Aliás, é para onde vai, mesmo. Nenhuma lei na Inglaterra pode proibir um homem de manter a decência em sua casa, e a minha é abominável! Abra a boca.
Segurando o facão, ele inseriu a ponta entre meus dentes, mas eu nunca sentia medo genuíno de suas maluquices. Cuspi fora e afirmei que o gosto era terrível; não ia de jeito algum engolir aquilo.
– Ah – disse ele, soltando-me –, vejo que esse infeliz não é Hareton. Perdão, Nell; se for, merece ser esfolado vivo por não ter vindo correndo me receber e por gritar como se eu fosse um goblin. Filho desnaturado, venha cá! Vou ensiná-lo a se aproveitar de um pai iludido e bem-intencionado. Não acha, Nelly, que o garoto ficaria melhor de cabelo curto? Deixa os cachorros mais ferozes, e adoro ferocidade... Traga uma tesoura... Ferocidade e cabelo curto! Além do mais, é de uma afetação infernal...
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