Gosto demais dela, meu caro Heath-cliff, para permitir que você a agarre e a devore.

– E detesto-a demais para tentar – disse ele –, exceto talvez à maneira de um ghoul.56 Você ouviria histórias estranhas se eu vivesse com aquela cara insípida de cera. As mais triviais seriam pintar nela as cores do arco-íris e deixar aqueles olhos azuis roxos a cada dois dias; eles me lembram por demais os de Linton.

– Deliciosamente! – observou Catherine. – São olhos de uma pomba, olhos de anjo!

– Ela é a herdeira do irmão, não é? – perguntou ele, depois de um breve silêncio.

– Pensar isso não me agrada em nada – foi a resposta. – Meia dúzia de sobrinhos hão de tirar dela esse direito, se Deus quiser! Mas não comece a ter ideias a esse respeito, você é por demais inclinado a cobiçar os bens do próximo. Lembre-se de que os bens desse próximo são meus!

– Se fossem meus, seriam igualmente seus – retorquiu Heathcliff. – Mas embora Isabella Linton seja tola, não acho que seja louca, de modo que não se fala mais nisso, como você sugeriu.

E não falaram mesmo. Catherine provavelmente tirou o assunto da cabeça. O outro, tenho certeza, lembrou-se dele com frequência naquela noite. Pude vê-lo sorrindo consigo mesmo – era um sorriso largo e irônico –, entregando-se a um devaneio inquietante a cada vez que a sra. Linton se ausentava da sala.

Decidi vigiar seus movimentos. Meu coração pendia invariavelmente para o lado do patrão, em vez do de Catherine. E com razão, eu achava, pois ele era gentil, honesto e honrado, e ela – embora não se pudesse dizer que era o seu oposto, parecia se permitir tanta coisa que eu tinha pouca fé nos seus princípios, e ainda menos simpatia por seus sentimentos. Queria que acontecesse algo para livrar, sem alarde, tanto Wuthering Heights quanto Thrushcross Grange da presença do sr. Heathcliff, deixando-nos como estávamos antes de ele aparecer. Suas visitas eram um pesadelo contínuo para mim; e, suspeitava, para o meu patrão também. O fato de ele estar vivendo em Heights era uma opressão impossível de explicar. Eu sentia que Deus deixara ali sua ovelha negra entregue à própria sorte, e uma fera rondava entre ela e o rebanho, aguardando a hora certa de atacar e destruir.

52. No original, literalmente “ou conseguiu um sizar’s place?”, sendo sizar o estudante que, na Universidades de Cambridge e no Trinity College, de Dublin, recebe auxílios de moradia e alimentação durante o período de estudos em troca de algum tipo de trabalho. No passado, o sizar era responsável por servir aos colegas de curso os sizes ou sizings – a ração diária de comida e bebida fixada aos estudantes.

53. O Exército britânico no séc.XVIII era comumente visto como espaço de provações, orga-nização e dura disciplina; no entanto, muitos se voluntariavam para escapar à miséria nas cidades (destino que se abrira a Heathcliff depois de sua fuga de Wuthering Heights) e granjear rendimentos estáveis. Embora, à época, a Inglaterra estivesse envolvida em alguns conflitos – dentre os quais a Guerra de Independência norte-americana (1776-83) –, a maioria dos homens não servia no exterior, formando uma força policial (constabulary force) cuja ação, quando necessária, se dava nos próprios limites das ilhas britânicas.

54. Referência à célebre passagem do Sermão da Montanha, oferecido por Jesus Cristo e citado por Mateus e Lucas em seus respectivos Evangelhos. Em Mateus (5:39), leem-se as seguintes palavras atribuídas a Cristo: “Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra.”

55. Paulo, Pedro, João e Mateus são apóstolos de Jesus Cristo. Pedro, João e Mateus constam do rol dos doze presentes à Santa Ceia; Paulo, pregador entre os não judeus, encontrou-se pessoalmente com Jesus uma única vez, dele recebendo a missão apostólica.

56. Nas tradições árabes, das quais se origina, o ghoul é um espírito maligno, também figurado como monstro, que se relaciona a cemitérios e ao consumo de carne humana. A figura entra na literatura inglesa por meio do romance gótico de ambiência oriental Vathek, de William Beckford (1786), que o descreve segundo a tradição de que provém; no entanto, em inglês, o termo ganhou conotação mais geral, relacionada a indivíduos de gosto macabro ou, de forma depreciativa, a coveiros ou ladrões de túmulos. À medida que a história avança, tornam-se mais evidentes os elementos da narrativa gótica empregados por Emily Brontë. A caracterização inicial de Heathcliff como “estranho” se tinge gradativamente de uma aura sinistra, reforçada pela combinação de irracionalidade vingativa e cálculo maquiavélico – traço particularmente desenvolvido na construção dos antagonistas do gênero – que passa a governar seus atos.

CAPÍTULO 11

ÀS VEZES, quando me via sozinha e refletia sobre tudo isso, eu me levantava com um terror súbito e punha a touca para ir ver como iam as coisas na fazenda. Persuadira minha consciência de que era meu dever avisá-lo do que as pessoas falavam a respeito de sua atitude, mas logo me lembrava de seus maus hábitos e, sem esperança de conseguir ajudá-lo, desistia de voltar àquela casa sombria, duvidando de que ele fosse me dar ouvidos.

Certa vez, ao ir a Gimmerton, passei diante do velho portão, desviando-me do meu caminho.