O conselheiro era a sua ambição e o seu vício! Havia sobretudo nele uma beleza, cuja contemplação demorada a estonteava como um vinho forte: era a calva. Sempre tivera o gosto perverso de certas mulheres pela calva dos homens, e aquele apetite insatisfeito inflamara-se com a idade. Quando se punha a olhar para a calva do conselheiro, larga, redonda, polida, brilhante às luzes, uma transpiração ansiosa umedecia-lhe as costas, os olhos dardejavam-lhe, tinha uma vontade absurda, ávida, de lhe deitar as mãos, palpá-la, sentir-lhe as formas, amassá-la, penetrar-se dela! Mas disfarçava, punha-se a falar alto com um sorriso parvo, abanava-se convulsivamente, e o suor gotejava-lhe nas roscas anafadas do pescoço. Ia para casa rezar estações, impunha-se penitências de muitas coroas à Virgem; mas apenas as orações findavam, começava o temperamento a latejar. E a boa, a pobre dona Felicidade tinha agora pesadelos lascivos, e as melancolias do histerismo velho! A indiferença do conselheiro irritava-a mais: nenhum olhar, nenhum suspiro, nenhuma revelação amorosa o comovia! Era para com ela glacial e polido. Tinham-se às vezes encontrado a sós, à parte, no vão favorável duma janela, no isolamento mal alumiado dum canto do sofá, mas, apenas ela fazia uma demonstração sentimental, ele erguia-se bruscamente, afastava-se, severo e pudico. Um dia ela julgou perceber que, por trás das suas lunetas escuras, o conselheiro lhe deitava de revés um olhar apreciador para a abundância do seio; fora mais clara, mais urgente, falara em paixão, disse-lhe baixo: – Acácio!... – Mas ele com um gesto gelou-a – e de pé, grave:
– Minha senhora,
As neves que na fronte se acumulam
Terminam por cair no coração...
– É inútil, minha senhora!
O martírio de dona Felicidade era muito oculto, muito disfarçado, ninguém o sabia; conheciam-lhe as infelicidades do sentimento, ignoravam-lhe as torturas do desejo. E um dia Luísa ficou atônita, sentindo dona Felicidade agarrar-lhe o pulso com a mão úmida, e dizer-lhe baixo, os olhos cravados no conselheiro:
– Que regalo de homem!
Falava-se nessa noite do Alentejo, de Évora e das suas riquezas, da Capela dos Ossos, quando o conselheiro entrou com o paletó no braço. Foi-o dobrar solicitamente numa cadeira a um canto, e, no seu passo aprumado e oficial, veio apertar as mãos ambas de Luísa, dizendo-lhe com uma voz sonora, de papo:
– Minha boa senhora dona Luísa, de perfeita saúde, não? O nosso Jorge tinha-mo dito. Ainda bem! Ainda bem!
Era alto, magro, vestido todo de preto, com o pescoço entalado num colarinho direito. O rosto aguçado no queixo ia-se alargando até a calva, vasta e polida, um pouco amolgada no alto; tingia os cabelos que duma orelha à outra lhe faziam colar por trás da nuca – e aquele preto lustroso dava, pelo contraste, mais brilho à calva; mas não tingia o bigode: tinha-o grisalho, farto, caído aos cantos da boca. Era muito pálido; nunca tirava as lunetas escuras. Tinha uma covinha no queixo, e as orelhas grandes muito despegadas do crânio.
Fora, outrora, diretor-geral do ministério do Reino, e sempre que dizia – El-Rei! erguia-se um pouco na cadeira. Os seus gestos eram medidos, mesmo a tomar rapé. Nunca usava palavras triviais; não dizia vomitar, fazia um gesto indicativo e empregava restituir. Dizia sempre “o nosso Garrett, o nosso Herculano”. Citava muito. Era autor. E sem família, num terceiro andar da rua do Ferregial, amancebado com a criada, ocupava-se de economia política: tinha composto os ELEMENTOS GENÉRICOS DA ClÊNClA DA RlQUEZA E SUA DISTRIBUIÇÃO, segundo os melhores autores, e como subtítulo: Leituras do serão! Havia apenas meses publicara a RELAÇÃO DE TODOS OS MINISTROS DE ESTADO DESDE O GRANDE MARQUÊS DE POMBAL ATÉ NOSSOS DIAS, COM DATAS CUIDADOSAMENTE AVERIGUADAS DE SEUS NASCIMENTOS E ÓBITOS.
– Já esteve no Alentejo, conselheiro? – perguntou-lhe Luísa.
– Nunca, minha senhora – e curvou-se. – Nunca! E tenho pena! sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.
Tomou uma pitada duma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:
– De resto, país de grande riqueza suína!
– Ó Jorge, averigua quanto é o partido da câmara em Évora – disse Julião do canto do sofá.
O conselheiro acudiu, cheio de informações, com a pitada suspensa:
– Devem ser seiscentos mil réis, senhor Zuzarte, e pulso livre. Tenho-o nos meus apontamentos. Por que, senhor Zuzarte, quer deixar Lisboa?
– Talvez!...
Todos desaprovaram.
– Ah! Lisboa sempre é Lisboa! – suspirou dona Felicidade.
– Cidade de mármore e de granito, na frase sublime do nosso grande historiador! – disse solenemente o conselheiro.
E sorveu a pitada com os dedos abertos em leque, magros, bem tratados.
Dona Felicidade disse então:
– Quem não era capaz de deixar Lisboa, nem à mão de Deus Padre, era o conselheiro!
O conselheiro, voltando-se vagarosamente para ela, um pouco curvado, replicou:
– Nasci em Lisboa, dona Felicidade, sou lisboeta de alma!
– O conselheiro – lembrou Jorge – nasceu na rua de São José.
– Número setenta e cinco, meu Jorge. Na casa pegada àquela em que viveu, até casar, o meu prezado Geraldo, o meu pobre Geraldo!
Geraldo, o seu pobre Geraldo, era o pai de Jorge. Acácio fora o seu íntimo. Eram vizinhos. Acácio tocava então rebeca, e, como Geraldo tocava flauta, faziam duos, pertenciam mesmo à Filarmônica da rua de São José. Depois Acácio, quando entrou nas repartições do Estado, por escrúpulo e por dignidade, abandonou a rebeca, os sentimentos ternos, os serões joviais da Filarmônica. Entregou-se todo à estatística. Mas conservou-se muito leal a Geraldo; continuou mesmo a Jorge aquela amizade vigilante; fora padrinho do seu casamento, vinha vê-lo todos os domingos, e, no dia de seus anos, mandava-lhe pontualmente, com uma carta de felicitações, uma lampreia de ovos.
– Aqui nasci – repetiu, desdobrando o seu belo lenço de seda da Índia – e aqui conto morrer.
E assoou-se discretamente.
– Isso ainda vem longe, conselheiro!
Ele disse, com uma melancolia grave:
– Não me arreceio dela, meu Jorge.
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