Posto que a pêra fosse muito cultivada nos tempos clássicos, era, segundo o testemunho de Plínio, apenas um fruto de qualidade muito inferior. Pode ver-se, nas obras de horticultura, a surpresa que sentiram os autores vendo os resultados admiráveis obtidos por jardineiros, que apenas tinham ingratos materiais ao seu alcance; todavia, o processo é
muito simples, e tem sido aplicado quase de maneira inconsciente para chegar ao resultado final. Este processo consiste em cultivar sempre
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as melhores variedades conhecidas, em semear os grãos e, quando uma variedade um pouco melhor chegue a produzir-se, cultivá-la de preferência a qualquer outra. Os horticultores da época greco-latina, que cultivavam as melhores peras que então se podiam procurar, não poderiam imaginar quão deliciosos frutos nós comeríamos agora; seja como for, devemos, sem dúvida alguma, estes excelentes frutos a que têm sido naturalmente escolhidas e conservadas as melhores variedades conhecidas.
Estas consideráveis modificações efectuadas lentamente e acumuladas de maneira inconsciente explicam, julgo eu, o facto bem conhecido de, num grande número de casos, nos ser impossível distinguir e, por conseguinte, reconhecer as origens selvagens das plantas e das flores que, desde uma época afastada, têm sido cultivadas nos nossos jardins e pomares. Se foram necessárias centenas ou mesmo milhares de anos para modificar a maior parte das nossas plantas e para as aperfeiçoar de maneira que se tornassem tão úteis ao homem, é fácil compreender como nem a Austrália, nem o Cabo da Boa Esperança, nem qualquer outro país habitado pelo homem selvagem nos tenha fornecido qualquer planta digna de ser cultivada. Estes países tão ricos em espécies devem possuir, sem dúvida alguma, os tipos de muitas plantas úteis; mas estas plantas indígenas não têm sido melhoradas por uma selecção contínua, e não têm sido trazidas, por isso, ao estado de aperfeiçoamento comparável ao que têm atingido as plantas cultivadas nos países mais remotamente civilizados.
Quanto aos animais domésticos dos povos selvagens, é conveniente não esquecer que têm quase sempre, pelo menos durante algumas estações, de procurar por si mesmo os alimentos. Ora, em dois países muito diferentes com relação às condições de vida, indivíduos pertencendo a uma mesma espécie, tendo, porém, uma constituição ou uma conformação ligeiramente diferentes, podem muitas vezes aclimatar-se melhor num país que noutro; resulta que, por processo de selecção natural que mais adiante exporemos minuciosamente, podem formar-se duas sub-raças. É talvez aí, como o têm feito notar muitos autores, que é conveniente procurar a explicação do facto de, entre os selvagens, os animais domésticos terem muitos mais caracteres de espécies do que os animais domésticos dos países civilizados.
Se se ponderar bem o papel importante que tem desempenhado o poder selectivo do homem, explicar-se-á facilmente como as nossas raças domésticas, quer pela sua conformação, quer pelos seus hábitos, são tão completamente adaptados às nossas necessidades e caprichos. Encontramos, além disso, a
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explicação do carácter tão frequentemente anormal das nossas raças domésticas e do facto de as suas diferenças serem tão grandes, posto que as diferenças sofridas pelo organismo sejam relativamente tão pequenas. O homem não pode escolher senão os desvios de conformação que afectam o exterior; quanto aos desvios internos, só poderia escolhê-los com a maior dificuldade, e pode mesmo acrescentar-se que pouco se incomoda com isso. Além disso, apenas pode exercer o seu poder selectivo sobre variações que a natureza lhe forneceu de princípio. Ninguém, por exemplo, teria jamais ensaiado produzir um pombopavão, antes de ter visto um pombo cuja cauda oferecia um desenvolvimento um tanto inusitado; ninguém teria procurado produzir um pombo Papudo, antes de ter notado uma dilatação excepcional do papo em uma destas aves; ora, quanto mais um desvio acidental apresenta um carácter anormal ou bizarro, tanto mais atrai a atenção do homem. Mas acabamos de empregar a expressão: ensaiar produzir um pombo-pavão; é isto, não há dúvida, na maior parte dos casos, uma expressão absolutamente inexacta. O
primeiro homem que escolheu, para o fazer reproduzir, um pombo cuja cauda era um pouco mais desenvolvida que a dos seus congéneres, nunca imaginou no que se tornariam os descendentes deste pombo em seguida a uma selecção longamente continuada, quer inconsciente, quer metódica. Talvez o pombo, origem de todos os pombos-pavões, tivesse só catorze penas caudais um pouco abertas em forma de leque, como o actual pombo-pavão de Java, ou como alguns indivíduos de outras raças distintas entre os quais se contam até
dezassete penas caudais. Talvez o primeiro pombo Papudo não inchasse mais o papo do que o actual Turbit quando dilata a parte superior do esófago, hábito a que nenhum dos criadores presta atenção, porque não é um dos caracteres desta raça. Não seria preciso crer, contudo, que para prender a atenção do criador, o desvio de estrutura deve ser muito pronunciado.
O criador, ao contrário, nota as mais pequenas diferenças, porque é próprio de cada homem prender-se com qualquer novidade por insignificante que seja. Não poderia julgar-se da importância que se atribuía outrora a algumas diferenças entre indivíduos da mesma espécie, pela importância que hoje se lhe atribui quando as diversas raças estão bem estabelecidas. Sabe-se que pequenas variações se apresentam ainda acidentalmente entre os pombos, mas têm-se considerado como defeitos ou desvios do tipo de perfeição admitido para cada raça. O Pato comum não tem fornecido variedades bem acentuadas; todavia, têmse ultimamente exposto como espécies distintas, nas exposições 35
ornitológicas, a raça de Tolosa e a raça comum, que só diferem pela cor, isto é, pelo mais fugaz de todos os caracteres.
Estas diferentes razões explicam porque nada sabemos, ou quase nada, sobre a origem ou sobre a história das nossas raças domésticas. Mas, com efeito, pode sustentar-se que uma raça, ou um dialecto, tenha uma origem distinta? Um homem conserva e faz reproduzir um indivíduo que apresenta qualquer leve desvio de conformação; ou então dispensa mais cuidados do que faria de ordinário para aparelhar os seus mais belos exemplares; fazendo isto, aperfeiçoa-os, e estes animais aperfeiçoados espalham-se lentamente na vizinhança. Não têm ainda um nome particular; pouco apreciados, a sua história é desprezada. Mas, se continua a seguir este processo lento e gradual, e que, por consequência, estes animais se aperfeiçoam cada vez mais, espalham-se extensamente, e termina-se por os reconhecer como raça distinta tendo algum valor; recebem então um nome, provavelmente um nome de província. Nos países meio civilizados, onde as comunicações são difíceis, uma nova raça só se espalha muito lentamente. Os principais caracteres da nova raça sendo reconhecidos e apreciados pelo seu justo valor, o princípio da selecção inconsciente, como o tenho chamado, terá sempre por efeito aumentar os traços característicos da raça, quaisquer que possam ser além disso-sem dúvida numa época mais particular que outra, segundo a nova raça é ou não da moda -mais particularmente também num país que noutro, segundo os habitantes são mais ou menos civilizados.
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