Viu, sem fazer a menor reflexão, que o mensageiro se demorava alguns dias na Casa Mourisca, e não opôs resistência alguma ao pedido, que a esposa mais tarde lhe fez, para que o deixasse ficar ali, no lugar do hortelão que falecera.
Este acto insignificante foi de não pequena influência nos destinos daquela família.
Os filhos de D. Luís, criados no meio dessa corte de província, cresciam sob influências que atuavam de uma maneira contraditória sobre os seus caracteres infantis.
Não lhes faltavam mestres que os instruíssem, que muitos eram os habilitados para isso nas salas do fidalgo, refúgio de tantos ilustres descontentes. Graças a estas especiais condições, puderam os dois rapazes receber uma educação difícil de conseguir num canto tão retirado da província, como aquele era.
Mas, ao lado da lição dos mestres, que, juntamente com a ciência, se esforçavam por imbuir-lhes os seus princípios políticos, aos quais se atinham como a artigos de fé, havia uma outra lição mais obscura, mas porventura mais eficaz. Era a lição da mãe e a do veterano.
A esposa de D. Luís era uma senhora de esmeradíssima educação e de um profundo bom senso. Amava o marido, mas via com pesar os excessos, a que o impeliam as suas opiniões políticas. Educada no seio de uma família liberal, possuía sentimentos favoráveis às ideias novas; mas sabia guardá-los no coração para não despertar conflitos na família.
Porém, no trato íntimo entre mãe e filhos traía-se muita vez essa prudente discrição, e as fidalgas crianças iam recebendo a doutrina, de que os outros lhes blasfemavam como de heresias, e, naturalmente, seduzidas pela origem de onde ela lhes vinha, abriam-lhe de melhor vontade o coração do que aos preceitos austeros e um pouco pedantescos dos mestres.
Demais, ouviam tantas vezes a mãe falar-lhes do irmão que perdera, dos seus sentimentos generosos, do seu nobre carácter e da sua dedicação heroica a bem da causa liberal, que eles, e o mais velho sobretudo, costumaram-se a venerar a memória do tio como a de um mártir, e a vê-lo aureolado de um verdadeiro prestígio legendário.
Para isto, porém, concorreu mais que outrem o hortelão.
O velho soldado era uma crónica viva das batalhas e façanhas daqueles tempos históricos e um panegirista ardente do seu pobre oficial, cujo último suspiro recolhera.
As crianças sentiam-se instintivamente atraídas para a companhia do velho, em cujas narrações pitorescas e vivamente coloridas achavam um encanto irresistível. Feria-lhes fundo a curiosidade, a maneira porque ele falava dos trabalhos da emigração, dos episódios do cerco do Porto, da fome, da peste e da guerra, tríplice calamidade que conhecera de perto, das batalhas em que havia entrado, da bravura do seu amo, e finalmente do imperador, por quem o mutilado veterano professava um entusiasmo quase supersticioso, e a cujo vulto a sua narrativa imaginosa dava um aspeto épico e sobrenatural.
As crianças não se fartavam de interrogar aquela testemunha presencial de tantos feitos heroicos, E assim eram neutralizadas as doutrinas dos pedagogos eruditos, encarregados da educação dos filhos de D. Luís, e estes iam crescendo afeiçoados aos princípios liberais, que amavam de instinto, antes de os amarem de reflexão.
Mas dias de maior provação estavam reservados para esta família.
A munificência que o senhor da Casa Mourisca mantivera no voluntário desterro, a que se condenou, obrigara-o a enormes e perigosos sacrifícios.
D. Luís nunca propriamente se ocupara da gerência dos seus bens. Fiel aos hábitos aristocráticos dos seus maiores, deixara desde muito a procuradores todos os cuidados de administração, e de vez em quando recebia deles a notícia de que a sua casa se estava perdendo, sem que se lembrasse de perguntar a si próprio se não seria possível opor um obstáculo àquela ruína.
O padre Januário, ou frei Januário dos Anjos, velho egresso, homem de letras gordas, que se estabelecera comodamente naquela acastelada residência como na sua casa, era um desses procuradores.
Faça-se justiça ao padre, que não era de má fé, nem em proveito próprio, que ele apressava, com mão poderosa, a decadência de D. Luís.
Mas, homem de curtas faculdades e de nenhum expediente financeiro, se obtinha capitais para o seu constituinte, nas crises mais apertadas, era sempre sob condições de tal natureza, que deixava de cada vez mais onerada a propriedade e mais irremediável o triste futuro dela. Sucedeu, pois, o que era de esperar. Dispersou-se a corte de D. Luís. Por muito que fizessem os administradores da casa para a manter no costumado esplendor, cedo começaram a transparecer os sinais da declinação. Foi o aviso para a debandada. Uns porque delicadamente compreenderam que a sua permanência concorreria para aumentar as dificuldades, com que o fidalgo já lutava; outros, porque aspiravam melhores auras, longe dali, em solares menos estremecidos pelo vaivém da adversidade; é certo que todos se foram retirando a um por um, e deixaram a família só.
Aumentou com este isolamento a taciturnidade do fidalgo.
Depois veio a doença e a morte da esposa, daquela que lhe tinha sido tão fiel amiga, que, para lhe poupar desgostos, até escondia as lágrimas que ele lhe fazia verter; veio essa nova dor atribular-lhe ainda mais a existência. E ainda não tinham acabado as provações!
No fundo do cálice estavam ainda depositadas as gotas mais amargas.
D. Luís tinha por esses tempos uma filha, mimoso legado da esposa, cuja missão consoladora continuava no mundo. Queria-lhe muito o pai!
Se não havia de querer! O coração árido daquele velho e o tenro coração daquela criança procuravam-se, como para um pelo outro se completarem.
O velho fidalgo concentrado e quase ríspido para com os outros filhos, se alguma vez teve nos lábios sorrisos desanuviados e sinceros, foi na presença da sua Beatriz. Aquele desgraçado coração, vazio de afetos, queimado de ódios e de paixões esterilizadoras, sentia um grato refrigério em deixar-se penetrar do suave influxo das caricias da criança, que beijava as faces rugosas do pai e lhe brincava com os cabelos prateados; e muitas vezes, nesses momentos, lágrimas de desafogo dissipavam a cerração que ia na alma daquele homem, que com tanta força sabia odiar.
E não era somente o pai que experimentava essa influência.
Jorge, que de pequeno fora pensativo e sério, sentia-se tomar por a bondade e ternura de Beatriz. Criança ainda, tinha ela, quando a sós com o irmão, um olhar penetrante e um gesto grave como o dele, um espírito para comunicar à vontade com o seu. Ela parecia compreender o alcance do auxílio que poderia receber um dia daquele rapaz sisudo, que a fitava, e ele sentia-se engrandecer aos próprios olhos, lembrando-se de que seria sua missão na vida proteger aquele anjo.
Maurício, génio mais impetuoso e impaciente, dobrava também a vontade a um aceno da frágil e delicada criatura, em quem um estouvamento seu desafiava lágrimas. E estas lágrimas eram a única repressão que o continha nos desvarios.
Pois até nesta filha feriu o Senhor o pobre ancião.
Criança mimosa, colheu-a um sopro da morte, ainda com o sorriso nos lábios, e prostrou-a exânime no túmulo.
Fez-se então deveras escuro no espírito do pai.
Quando aquela pequena fada doméstica desapareceu como uma visão vaporosa em contos de magia, foi como se todos ficassem em trevas. A vida era tão outra! O ente que absorvia os instantes daqueles três homens, a quem todos três tributavam os seus mais puros afetos e os seus pensamentos mais constantes, desaparecera, e eles olhavam-se assustados, meio loucos, como se de súbito se lhes tivesse apagado a luz que os iluminava; sentiam a indecisão do homem, a quem no meio da estrada fulmina inesperada cegueira.
Passada a violência da primeira dor em todos ficou a saudade, negra e concentrada em D. Luís, melancólica em Jorge, expansiva e veemente em Maurício; e para todos o nome de Beatriz, a recordação dos seus gestos, das suas palavras, era um talismã, cuja eficácia nunca se desmentia. A alma daquele anjo assistia ainda à família, que o chorava, e à sua misteriosa direção obedeciam todos sem o perceberem.
Morta aos dezasseis anos, Beatriz vivia ainda nos lugares que habitara.
Há entes assim, cuja influência póstuma lhes dá uma quase imortalidade, à maneira da luz sideral, que continua a cintilar para nós, depois de aniquilado o foco que a emitia.
O padre Januário tornou-se desde então a criatura indispensável, e a companhia exclusiva de D. Luís, que via nele o único representante da sua antiga corte.
Acérrimo partidário do regime absoluto, apesar de lhe não ser possível enfeixar dois argumentos sérios em defesa dele, o padre Januário passava a vida aproveitando as mais ridículas oportunidades para premissas dos seus corolários antiliberais, artifício com que lisonjeava as paixões do seu ilustre amo e patrono, e mantinha nele o fogo sagrado.
O padre achava-se bem naquela vida monótona, que exercia sobre si os mais notáveis efeitos analépticos. Podia dizer-se que ele dividia ali o tempo entre duas ocupações exclusivas: comer e esperar com impaciência as horas da comida.
Uma única circunstância assombrava os dias do padre.
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