Uma pena é pesada demais para quem levantou a carroça de Fauchelevent

IV. Tinteiro que só consegue esclarecer

V. Noite por detrás da qual há dia

VI. A erva esconde, a chuva apaga

 

Cronologia

Obras de Victor Hugo

Bibliografia

TOMO I

Um novo olhar

RENATO JANINE RIBEIRO

A miséria é um tema novo, no século XIX. Como realidade, é bem antiga, mas a novidade é ela se tornar tema, isto é, aparecer como algo que causa escândalo e que, dizem cada vez mais romancistas e cientistas sociais, pode — e deve — ser superado. Luís XIV, conforme alguns historiadores, estava consciente da miséria que grassava em seu reino, na segunda metade do século XVII; isso não o impedia de prodigar luxo, a si mesmo e a seus próximos; simplesmente, não acreditava que pudesse fazer o que quer que fosse contra a pobreza. Mas os tempos mudaram. A principal causa da mudança está talvez nas enormes migrações do campo para a cidade, que marcaram esse período de guerras e de industrialização, que foi o começo do século XIX, deslocando gigantescos contingentes de homens e mulheres. Estes deixavam o campo, no qual tinham um certo endereço, onde, embora vivessem em condições modestas, dificilmente lhes faltava moradia (ainda que o mesmo nem sempre se pudesse dizer da comida), e iam para cidades onde emprego, residência e alimentação eram precários e, eventualmente, até inexistentes. Tal processo não é privilégio de um só país: em Os miseráveis, veremos sua realização francesa, mas, se lermos Charles Dickens, teremos sua versão inglesa. É isso o que permite falar de um espetáculo da pobreza, na Londres e na Paris do século XIX.1

Podemos abordar esse tema por um ângulo preciso, o da mudança no olhar. Victor Hugo é quem o observa, por volta de 1840. A essa época, ele frequenta os poderosos, melhor dizendo, o Rei Luís Filipe e sua família; é Par de França e, nessa qualidade, membro da Câmara Alta. Já é escritor respeitado e toma algumas posições que farão parte de sua fama, como, por exemplo, a oposição à pena de morte. É a Câmara dos Pares que julga quem tenta assassinar o rei, coisa que acontece algumas vezes sob o reinado de Luís Filipe. Contrário à guilhotina, ainda assim Victor Hugo anota com certo alívio que o regicida não está mais submetido à antiga punição do parricida, que tinha a mão amputada, no cadafalso, antes de lhe cortarem a cabeça.

Mas o grande poeta ainda se mostra, no tocante à pobreza, bastante ingênuo. E exemplo disso é que o incomode a percepção de um novo olhar, o dos pobres sobre os ricos. Numa festa dada pela monarquia, por exemplo, percebe que os pobres — do lado de fora de uma cerca — olham com rancor para o luxo que se ostenta nas roupas, nos comes e nos bebes dos privilegiados. Comenta Hugo: Eles não entendem que é o consumo suntuário dos mais ricos que lhes dá trabalho e emprego. Nada de notável nesse comentário, absolutamente conservador, superado do ponto de vista econômico. Podia valer para as condições políticas do Antigo Regime, da monarquia sustentada em seus privilégios, mas já não serve para um tempo em que os direitos passam a ser o fundamento da política.

Um tempo depois, porém, um segundo olhar marca-o. É o de um pobre vendo um rico que desce de uma carruagem, no centro de Paris. Faísca ódio no olho do pobre. Penso que é então que Victor Hugo se dá conta dos conflitos sociais em torno da miséria. Deixa de censurar o pobre por não respeitar quem lhe dá emprego, e começa a compreender o peso das lutas sociais. Lamenta esse fato, continua talvez acreditando que a riqueza e mesmo o consumo suntuário dão pão aos pobres — mas percebe, o que é importantíssimo, a radicalidade desse olhar crispado de ódio.

Certamente, para quem lê a história a posteriori, e além disso conhece Marx, Victor Hugo pode parecer superficial. Aliás, nas primeiras e nas últimas páginas de O dezoito brumário de Luís Bonaparte, obra de Marx publicada no começo de 1852, Victor Hugo se vê questionado — ou, se não ele, pelo menos suas posturas.