Suas obras também agradaram a família real da Itália e, em 1897, o Rei Umberto o consagrou Cavaleiro da Coroa.

A enorme produção de Emilio Salgari acabou sendo ultrapassada por centenas de títulos falsos, publicados por editores muitas vezes inescrupulosos, preocupados apenas com o enriquecimento rápido, que se aproveitavam da popularidade de Salgari e do fato de que muitas de suas obras saíam com pseudônimos. Até hoje, muitos textos ainda estão sendo analisados para que se possa afirmar se foram efetivamente escritos por ele. Mas cerca de oitenta romances são unanimemente atribuídos a esse escritor, sendo que alguns foram divididos por ciclos, enquanto outros representam romances únicos.

Paralelamente ao grande número de romances de Salgari, existe uma produção menos lembrada, mas também interessante. Trata-se dos quase cento e cinquenta contos publicados em várias editoras, sempre sob pseudônimos para escapar dos contratos assinados, e dos artigos publicados em jornais. Na realidade, Salgari foi jornalista antes de ser um romancista, trabalhando como redator para os dois jornais de Verona, La Nuova Arena e L’Arena, e dirigiu o jornal Per Terra e Per Mare na época em que trabalhou para a editora Donath, de Gênova.

Vale lembrar ainda a sua incursão no universo da ficção científica, com um de seus livros mais interessantes: As Maravilhas do Ano 2000 [Le Meraviglie del Duemila], que fez voar a imaginação de muitas gerações de leitores. Muitas das previsões feitas por ele, como a velocidade das viagens aéreas, ocorreram muito tempo antes do profetizado. Outras, como a transmissão de notícias pela televisão em tempo real, acabaram se revelando bastante corretas. A história termina em Lisboa, com heróis enlouquecidos pela “saturação elétrica” de um mundo dominado pelas máquinas.

Apesar de ter criado personagens quase imortais e de ter conquistado milhões de leitores, Salgari nunca conseguiu obter sucesso financeiro e estabilidade. Aproveitando-se da sua falta de tino comercial, seus editores o deixaram praticamente na miséria. Após a morte da esposa, oprimido por dívidas e pelo sofrimento dos filhos, ele se suicidou em Turim, no dia 25 de abril de 1911, cometendo esse ato de forma dramática, como se possuído por um de seus personagens: rasgou o pescoço e o ventre com uma faca, de acordo com o cerimonial suicida dos samurais japoneses. Na carta que deixou para os editores, desabafou:

 

“Aos meus editores: A vocês que enriqueceram com a minha pena, mantendo a mim e à minha família em uma contínua quase penúria, ou mais do que isso, só peço que, para compensar os lucros que lhes proporcionei, se encarreguem do meu funeral. Despeço-me, quebrando a minha pena.

Emilio Salgari”

 

Logo após a sua morte, seus romances começaram a ser adaptados para as telas de cinema e o seu estilo se propagou. Foram feitas mais de cinquenta adaptações cinematográficas e muitas outras histórias de corsários, de aventuras na selva e de capa e espada foram inspiradas em sua obra.

As obras de Salgari estão sendo revisitadas. A editora italiana Fabbri publicou em 2001 sua obra completa. A primeira tiragem, uma nova edição de Os Mistérios da Selva Negra [I misteri della Jungla Nera], vendeu, sozinha, mais de cem mil cópias. Também estão sendo produzidas novas traduções na França, em Portugal, na Espanha e nos países da América do Sul, inclusive esta primeira tradução no Brasil.

Como ele certa vez escreveu a um amigo: “Meus livros triunfam em todos os cantos do mundo”. E continuam triunfando quase um século depois da sua morte.


 

 

A ilha de Mompracem em um mapa de Bornéu.


 


 

A bandeira de Mompracem com o tigre sobre fundo vermelho.

 

 

 

 

Os Tigres de Mompracem

1. Os Piratas de Mompracem

Na noite de 20 de dezembro de 20 de dezembro de 1849, uma violentíssima tempestade desabava sobre Mompracem, ilha selvagem e sinistra, covil de piratas aterrorizantes, situada no mar da Malásia, a algumas centenas de milhas da costa ocidental de Bornéu.

No céu, graças à força de um vento poderoso, corriam como cavalos galopando a solta e misturando-se confusamente, negras massas de vapor que, de vez em quando, deixavam cair aguaceiros terríveis sobre as densas florestas da ilha; no mar, também agitado pelo vento, enormes ondas colidiam desordenadamente e irrompiam com fúria, misturando seu rugido com as crepitações, ora breves e secas, ora intermináveis, dos raios.

Nem nas cabanas alinhadas ao fundo da baía da ilha, nem nas fortalezas que as defendiam, nem nas numerosas embarcações ancoradas além dos recifes, nem nos bosques, nem na tumultuosa superfície do oceano era possível discernir alguma luz; quem, contudo, vindo do oriente, tivesse olhado para cima, teria visto, no alto de um penhasco altíssimo, recortado perpendicularmente ao mar, brilharem dois pontos luminosos, duas janelas vivamente iluminadas.

Quem permanecia de sentinela àquela hora e com tamanho temporal, na ilha dos piratas sanguinários?

Através de um labirinto de trincheiras rompidas, diques arruinados, cercas arrancadas, gabiões destruídos, perto dos quais se avistavam ainda armas despedaçadas e ossos humanos, uma vasta e sólida cabana se destacava, enfeitada no alto por uma grande bandeira vermelha, com a cabeça de um tigre no centro.

Um quarto daquela habitação está iluminado, as paredes, cobertas de pesados tecidos vermelhos, de veludos e brocados de grande valor, mas, aqui e ali, amassados, rasgados e manchados; o piso se esconde sob outra camada de tapetes persas, fulgurantes de ouro, mas também eles lacerados e sujos.

No meio do quarto há uma mesa de ébano marchetada com madrepérola e enfeitada com linhas de prata, coberta de garrafas e copos do cristal mais raro; nos cantos, erguem-se grandes prateleiras parcialmente arruinadas, abarrotadas de recipientes entulhados de braceletes de ouro, brincos, anéis, medalhões, preciosas peças sacras contorcidas ou amassadas, pérolas provenientes sem dúvida dos famosos pesqueiros do Ceilão, esmeraldas, rubis e diamantes que cintilam como estrelas sob o reflexo de uma lâmpada dourada suspensa no teto.

Em um dos cantos há um divã turco com franjas arrancadas em alguns lugares; em outro, uma harmônica de ébano com o teclado deformado e, ao redor, em uma confusão indescritível, estão espalhados tapetes enrolados, vestes esplêndidas, quadros provavelmente de pintores célebres, lâmpadas derramadas, garrafas em pé ou caídas, copos inteiros ou em cacos e, em seguida, carabinas indianas entalhadas, bacamartes da Espanha, sabres, cimitarras, machados, punhais e pistolas.

Naquele quarto tão extraordinariamente mobiliado, um homem está sentado em uma poltrona manca; tem estatura alta e longilínea, musculatura potente, e feições enérgicas, másculas, orgulhosas e de uma estranha beleza.

Longos cabelos caem sobre seus ombros e uma barba negríssima lhe emoldura o rosto ligeiramente bronzeado.

Sua fronte é ampla, sombreada por duas sobrancelhas estupendas, arqueadas em um ângulo insolente, a boca pequena mostra dentes pontudos como os de uma fera e cintilantes como pérolas; os dois olhos negros têm um brilho que fascina, incendeia e faz baixar o olhar de qualquer outra pessoa.

Estava sentado há alguns minutos, com o olhar fixo na lâmpada e as mãos fechadas nervosamente em torno da rica cimitarra que pendia de uma larga faixa de seda vermelha, apertada em volta de um jaquetão de veludo azul com frisos de ouro.

Um aguaceiro formidável que sacudiu a grande cabana até a base o arrancou bruscamente daquela imobilidade. Jogou para trás os cabelos longos e cacheados, prendeu na cabeça o turbante enfeitado com um diamante esplêndido, grande como uma noz, e se levantou de um salto, lançando em torno um olhar no qual se lia um não sei quê de sinistro e ameaçador.

— É meia-noite — murmurou. — Meia-noite e ele ainda não voltou!

Esvaziou lentamente o copo cheio de um líquido cor de âmbar, depois abriu a porta, avançou com passo firme pelas trincheiras que defendiam a cabana e se deteve na extremidade do grande penhasco, em cuja base o mar rugia furiosamente.

Ficou ali alguns minutos com os braços cruzados, firme como o rochedo que o sustentava, aspirando com volúpia as tremendas rajadas da tempestade e olhando para o mar agitado. Em seguida se retirou lentamente, entrou na cabana e parou diante da harmônica.

— Que contraste! — exclamou. — Lá fora, a tempestade e aqui dentro, eu! Qual de nós é o mais assustador?

Deslizou os dedos sobre o teclado, tirando acordes rápidos, com uma entonação estranha e selvagem, que depois ficaram mais lentos até se dispersarem em meio aos rugidos dos trovões e ao assobio dos ventos. De repente voltou vivamente a cabeça em direção à porta que ficara entreaberta. Permaneceu um momento à escuta, com o corpo inclinado, ouvidos tensos, e então saiu rapidamente, avançando para a extremidade do penhasco.

No rápido clarão de um raio, viu uma pequena embarcação, com as velas praticamente recolhidas, entrar na baía e se confundir no meio dos navios ancorados.

O nosso homem aproximou dos lábios um apito de ouro e emitiu três notas estridentes: um apito agudo respondeu um momento depois.

— É ele! — murmurou com viva emoção. — Já era tempo!

Após cinco minutos, um ser humano, envolto em um amplo casaco do qual escorria muita água, surgia diante da cabana.

— Yanez! — exclamou o homem de turbante, abraçando-o.

— Sandokan! — respondeu o recém-chegado, com um sotaque estrangeiro muito acentuado. — Brr! Que noite infernal, irmãozinho.

— Venha!

Atravessaram rapidamente as trincheiras e entraram no quarto iluminado, fechando bem a porta.

Sandokan encheu dois copos e, oferecendo um deles ao estrangeiro que retirara o casaco e se desembaraçara da carabina que levava a tiracolo, disse com uma entonação quase afetuosa:

— Beba, meu bom Yanez.

— À sua saúde, Sandokan.

— À sua.

Esvaziaram os copos e se sentaram à mesa.

O recém-chegado era um homem entre trinta e quarenta anos, ou seja, um pouco mais velho que o companheiro. Tinha estatura média e robusta, pele claríssima, feições harmoniosas, olhos cinzentos e astutos, lábios zombeteiros e finos, sinal de uma vontade de ferro. À primeira vista percebia-se não apenas que era um europeu, mas que devia pertencer a alguma raça meridional.

— E então, Yanez — perguntou Sandokan com alguma emoção —, viu a jovem de cabelos de ouro?

— Não, mas já sei o que queria saber.

— Você não foi a Labuan?

— Fui, mas você precisa entender que naquela costa, vigiada pelos cruzadores ingleses, é muito difícil o desembarque de gente da nossa espécie.

— Fale dessa jovem. Quem é ela?

— Posso dizer que é uma criatura maravilhosamente bela, tão bela que é capaz de enfeitiçar o mais assustador dos piratas.

— Ah! — exclamou Sandokan.

— Disseram que tem cabelos louros como o ouro, os olhos mais azuis do que o mar, a pele branca como o alabastro. Soube que Alamba, um de nossos piratas mais violentos, uma noite a viu passeando no bosque da ilha e ficou tão impressionado por aquela beleza que deteve seu navio para contemplá-la melhor, arriscando-se a ser massacrado pelos cruzadores ingleses.

— Mas a quem pertence?

— Alguns dizem que é filha de um colono, outros, de um lorde, outros ainda, que é nada menos do que parente do governador de Labuan.

— Estranha criatura — murmurou Sandokan, comprimindo a cabeça com as mãos.

— E agora?...