Falou da estética, dos grandes artistas, da vida grega, do mármore grego, da alma
grega. Era um grego, um puro grego, que ali me aparecia e transportava de uma rua estreita para diante do
Pártenon. A opa do Elisiário transformou-se em clâmide, a língua devia ser a da Hélade, conquanto eu
nada soubesse a tal respeito, nem então, nem agora. Mas era feiticeiro o diabo do homem.
Saímos; fomos até o Campo da Aclamação, que ainda não possuía o parque de hoje, nem tinha outra
polícia além da natureza, que fazia brotar o capim, e das lavadeiras, que batiam e ensaboavam a roupa
defronte do quartel. Eu ia cheio do discurso do Elisiário, ao lado dele, que levava a cabeça baixa e os
olhos pensativos. De repente, ouvi dizer baixinho:
— Adeus, Ioiô!
Era uma quitandeira de doces, uma crioula baiana, segundo me pareceu pelos bordados e crivos da saia e
da camisa. Vinha da Cidade Nova e atravessava o campo. Elisiário respondeu à saudação:
— Adeus, Zeferina.
Estacou e olhou para mim, rindo sem riso, e, depois de alguns segundos:
— Não se espante, menino. Há muitas espécies de Vênus. O que ninguém dirá é que a esta lhe faltem
braços, continuou olhando para os braços da quitandeira, mais negros ainda pelo contraste da manga curta
e alva da camisa.
Eu, de vexado, não achei resposta.
Não contei esse episódio na Rua do Lavradio; podiam meter à bulha o Elisiário, e não queria parecer
indiscreto. Tinha-lhe não sei que veneração particular, que a familiaridade não enfraquecia. Chegamos a
jantar juntos algumas vezes, e uma noite fomos ao teatro. O que mais lhe custava no teatro era estar muito
tempo na mesma cadeira, apertado entre duas pessoas, com gente adiante e atrás de si. Nas noites de
enchente, em que eram precisas travessas na platéia, ficava aflito com a idéia de não poder sair no meio
de um ato, se quisesse. Naquela, acabado o terceiro ato (a peça tinha cinco), disse-me que não podia mais
e que ia embora.
Fomos tomar chá ao botequim próximo, e deixei-me estar, esquecido do espetáculo. Ficamos até o fechar
das portas. Tínhamos falado de viagens; eu contei-lhe a vida do sertão cearense, ele ouviu e projetou mil
jornadas ao sertão do Brasil inteiro, por serras, campos e rios, de mula e de canoa. Colheria tudo, plantas,
lendas, cantigas, locuções. Narrou a vida do caipira, falou de Enéias, citou Virgílio e Camões, com grande
espanto dos criados, que paravam boquiabertos.
— Você era capaz de ir daqui a pé, até S. Cristóvão, agora? perguntou-me na rna.
— Pode ser.
— Não, você está cansado.
— Não estou, vamos.
— Está cansado, adeus; até depois, concluiu.
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