À primeira vista era um volume semelhante ao das botinas monstruosas embora de linhas regulares: parecia uma ligeira almofada preta sobre a qual se elevasse uma botina de senhora, muito elegante apesar de comprida. O tubo cinzento ficava oculto sob frocos de cetim escarlate. Do rosto ao bico descia um galho de rosas, cujas hastes cingiam graciosamente, como uma grinalda, toda a volta do pé até o calcanhar.

Uma das botinas ainda tinha dentro a fôrma; enquanto a outra já estava sem ela. Naturalmente o Matos procedia àquela operação quando foi distraído pelos fregueses e compradores; deixara-a pois em meio, deitando em cima da obra, para encobri-la, uma folha de papel.

A fôrma não podia passar despercebida ao observador. Vendo pouco antes a botina disforme, Leopoldo a tinha considerado o modelo exato do pé monstruoso, que ele avistara. Enganara-se: a botina era já o disfarce, a máscara do aleijão. Sua cópia ali estava em horrível nudez, no grosseiro toco de pau, cheio de buracos e protuberâncias.

Mas se essa observação acabou de esmagar o coração do mancebo, levou insensivelmente seu espírito a apreciar pela primeira vez a superioridade do Matos em sua arte. Ali estava a imagem do aleijão, o calçado que outros sapateiros lhe fariam para cobrir a monstruosidade, sem a dissimular. Entretanto, o mestre fluminense conseguira, por um esforço feliz, desvanecer a deformidade sob a aparência de uma botina elegante.

A almofada sobre que parecia descansar a botina, era um solado alto porém oco, onde as carnes moles do pé monstruoso, comprimidas pela botina superior, podiam abrigar-se.

Os frocos de cetim e as grinaldas de rosas enchiam as covas e desvaneciam as protuberâncias ósseas, com muita delicadeza, sem avolumar o tamanho do coturno. Na sola negra se debuxava, em proporção à botina superior, a alva palmilha com seus contornos harmoniosos; de modo que olhando-se andar a pessoa, não se perceberia facilmente o tamanho do calçado.

Acabara o Matos de aviar os fregueses, e chegando-se para o balcão, incomodou-se com ver o moço a observar a obra; ia talvez interrompê-lo rispidamente, quando percebeu em seu rosto uma expressão viva de ardente admiração. O artista ficou lisonjeado com esse elogio tão eloqüente em sua mudez; e à contrariedade sucedeu a satisfação do amor-próprio.

Foi Leopoldo, que, percebendo junto de si o sapateiro parado, afastou-se do balcão, receando ter sido indiscreto. Ia sair, quando entrou na loja um lacaio de libré azul com vivos de escarlate e branco. O mancebo o reconheceu pelas feições; era o mesmo que o impedira de chegar à portinhola do carro, na Rua do Ouvidor.

— Ah! exclamou o Matos, avistando o criado. Está quase pronto.

— Não posso esperar! replicou o lacaio com a insolência do rafeiro de casa rica.

— É só embrulhar.

Leopoldo disfarçava; fingindo olhar o calçado exposto na vidraça, viu de esguelha o sapateiro tirar a fôrma da outra botina, bater o ponto e dar o último polimento à sua obra; feito o que arranjou o embrulho.

— Está bem amarrado? perguntou o lacaio. Olhe que da outra vez já se perdeu uma botina por sua causa, e eu é que levei a culpa.

— Não tenha susto; desta vez está bem seguro, respondeu o Matos.

Foi-se o lacaio; e Leopoldo com o semblante carregado de tristeza, despediu-se, arrependido de ter ido à loja. Que saudades tinha da sua dúvida!

— A dúvida, pensava ele, é ainda um raio de esperança!

VII

 

A esse tempo Horácio, sentado em uma poltrona na casa de Bernardo, fumava o seu conchita, com o olhar, ora na calçada, ora no espelho fronteiro, à espreita do menor vulto de mulher.

O leão pensava:

— Choveu; as ruas ainda estão molhadas. Qual é a senhora que tendo um pé mimoso e uma perna bonita, não aproveita um destes dias para atravessar a Rua do Ouvidor? Se deixarem escapar estes pretextos de mostrar semelhantes maravilhas, morrerão elas desconhecidas, apenas vistas por um dono avaro, mas nunca admiradas, porque a admiração é sentimento que precisa da luz plena, da grande expansão. Se a Vênus de Praxíteles existisse, mas só para mim, palavra de honra que sua beleza não excitaria em minha alma o menor entusiasmo.

Nessa ocasião Amélia passava diante da loja, e voltando-se recebeu a cortesia do leão, a quem respondeu com um sorriso amável. Parando na vidraça, achou ela pretexto para entrar, e comprou uma galanteria Durante esse tempo Horácio recebeu por diversas vezes o olhar e o sorriso da moça.

Acompanhando com a vista o passo airoso e sutil de Amélia, Horácio exclamou, dirigindo-se ao caixeiro do Bernardo:

— Que passo gracioso! É o andar da garça!

Estas palavras foram ditas em voz bastante alta, para que a moça ouvisse; um ligeiro estremecimento que se notou na suave ondulação do talhe revelou que o leão lograra seu desejo. A moça ouvira com efeito a fineza.

Recostado de novo na poltrona o leão continuou a pensar:

— Realmente, que elegância no andar! Eu seria capaz de apostar que esse andar era do pezinho, do meu adorado pezinho, se já não tivesse descoberto a dona do primor. Mas Laura não vem!... O criado me disse que ao meio-dia, e é quase uma hora! Terá mudado de resolução?... Não duvido, com aquele zelo feroz que tem por sua jóia, talvez não quisesse vir para não ser obrigada a mostrá-la. Um avaro não fecha com mais cuidado a burra, do que ela esconde seu tesouro. Que pecado! Subtrair ao mundo essa maravilha que Deus fez para ser admirada! Ah! eu desejava ser uma nação; assim como há demônios-legiões, por que não pode haver homens-povos? Se o fosse, daria um trono a essa mulher, somente para que ela instituísse o beija-pé. Como eu seria cortesão! Como eu a beijaria por minhas cem bocas de súdito!

O mancebo sobressaltou-se; vira uma sombra que assomava no espelho fronteiro. Era Laura. Que devia fazer? Correr à porta para ser visto pela moça ou deixar-se ficar na poltrona para melhor descobrir o pé adorado?

A atitude do leão revelava a hesitação de seu espírito; com o corpo lançado à frente parecia fazer um esforço para se conservar sentado. Laura, que de seu lado já o tinha avistado no espelho, ficara em um estado de perturbação indizível.

— Que tem, prima? perguntou-lhe um senhor que a acompanhava.

— Nada! balbuciou a moça.

A princípio Laura fizera um movimento para recuar, mas arrependendo-se avançou com afoiteza, e passou rapidamente pela frente da loja, sem volver um olhar para dentro. Por mais que o leão se derreasse na poltrona, não logrou ver coisa alguma; a senhora arrastava a fímbria do vestido pela calçada coberta de lama, com o mesmo descuido que teria se caminhasse sobre rico tapete.

— Está zangada comigo; está furiosa! Desde a noite do teatro que não me pode ver; e parece que preparou-se para o assalto, porque achei as avenidas da praça já tomadas e vigorosamente defendidas.