A vida viva

Vive a dar nomes ao que não se ativa,

Morre a pôr etiquetas ao grande ar…

Escancarado Furness, mais três dias

Te, aturarei, pobre engenheiro preso

A sucessibilíssimas vistorias…

Depois, ir-me-ei embora, eu e o desprezo

(E tu irás do mesmo modo que ias),

Qualquer, na gare, de cigarro aceso…

IV

Conclusão a sucata! … Fiz o cálculo,

Saiu-me certo, fui elogiado…

Meu coração é um enorme estrado

Onde se expõe um pequeno animálculo

A microscópio de desilusões

Findei, prolixo nas minúcias fúteis…

Minhas conclusões Dráticas, inúteis…

Minhas conclusões teóricas, confusões…

Que teorias há para quem sente

O cérebro quebrar-se, como um dente

Dum pente de mendigo que emigrou?

Fecho o caderno dos apontamentos

E faço riscos moles e cinzentos

Nas costas do envelope do que sou …

V

Há quanto tempo, Portugal, há quanto

Vivemos separados! Ah, mas a alma,

Esta alma incerta, nunca forte ou calma,

Não se distrai de ti, nem bem nem tanto.

Sonho, histérico oculto, um vão recanto…

O rio Furness, que é o que aqui banha,

Só ironicamente me acompanha,

Que estou parado e ele correndo tanto …

Tanto? Sim, tanto relativamente…

Arre, acabemos com as distinções,

As subtilezas, o interstício, o entre,

A metafísica das sensações —

Acabemos com isto e tudo mais …

Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!

Bicarbonato de Soda

Súbita, uma angústia…

Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!

Que amigos que tenho tido!

Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!

Que esterco metafísico os meus prpósitos todos!

Uma angústia,

Uma desconsolação da epiderme da alma,

Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço…

Renego.

Renego tudo.

Renego mais do que tudo.

Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.

Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na

circulação do sangue?

Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?

Não: vou existir. Arre! Vou existir.

E-xis-tir…

E--xis--tir …

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!

Renunciar de portas todas abertas,

Perante a paisagem todas as paisagens,

Sem esperança, em liberdade,

Sem nexo,

Acidente da inconseqüência da superfície das coisas,

Monótono mas dorminhoco,

E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!

Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!

Chega Através

Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento,

Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda.

Adormeço sem dormir, ao relento da vida.

É inútil dizer-me que as ações têm conseqüências.

É inútil eu saber que as ações usam conseqüências.

É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.

Através do dia de névoa não chega coisa nenhuma.

Tinha agora vontade

De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado,

De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.

Não vem com a tarde oportunidade nenhuma.

Clearly non-Campos!

Não sei qual é o sentimento, ainda inexpresso,

Que subitamente, como uma sufocação, me aflige

O coração que, de repente,

Entre o que vive, se esquece.

Não sei qual é o sentimento

Que me desvia do caminho,

Que me dá de repente

Um nojo daquilo que seguia,

Uma vontade de nunca chegar a casa,

Um desejo de indefinido.

Um desejo lúcido de indefinido.

Quatro vezes mudou a ’stação falsa

No falso ano, no imutável curso

Do tempo conseqüente;

Ao verde segue o seco, e ao seco o verde,

E não sabe ninguém qual é o primeiro,

Nem o último, e acabam.

Começa a Haver

Começa a haver meia-noite, e a haver sossego,

Por toda a parte das coisas sobrepostas,

Os andares vários da acumulação da vida…

Calaram o piano no terceiro andar…

Não oiço já passos no segundo andar…

No rés-do-chão o rádio está em silêncio…

Vai tudo dormir…

Fico sozinho com o universo inteiro.

Não quero ir à janela:

Se eu olhar, que de estrelas!

Que grandes silêncios maiores há no alto!

Que céu anticitadino! —

Antes, recluso,

Num desejo de não ser recluso,

Escuto ansiosamente os ruídos da rua…

Um automóvel — demasiado rápido! —

Os duplos passos em conversa falam-me…

O som de um portão que se fecha brusco dóí-me…

Vai tudo dormir…

Só eu velo, sonolentamente escutando,

Esperando

Qualquer coisa antes que durma…

Qualquer coisa.

Começo a conhecer-me. Não existo.

Começo a conhecer-me. Não existo.

Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,

ou metade desse intervalo, porque também há vida …

Sou isso, enfim …

Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.

Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.

É um universo barato.

Conclusão a sucata !… Fiz o cálculo

Conclusão a sucata !… Fiz o cálculo,

Saiu-me certo, fui elogiado…

Meu coração é um enorme estrado

Onde se expõe um pequeno animálculo…

A microscópio de desilusões

Findei, prolixo nas minúcias fúteis…

Minhas conclusões práticas, inúteis…

Minhas conclusões teóricas, confusões…

Que teorias há para quem sente

O cérebro quebrar-se, como um dente

Dum pente de mendigo que emigrou?

Fecho o caderno dos apontamentos

E faço riscos moles e cinzentos

Nas costas do envelope do que sou…

Contudo

Contudo, contudo,

Também houve gládios e flâmulas de cores

Na Primavera do que sonhei de mim.

Também a esperança

Orvalhou os campos da minha visão involuntária,

Também tive quem também me sorrisse.

Hoje estou como se esse tivesse sido outro.

Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.

Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo subitamente,

E até o som de cair era a gargalhada da queda.

Cada degrau era a testemunha importuna e dura

Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,

Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,

Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.

Sou imparcial como a neve.

Nunca preferi o pobre ao rico,

Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.

Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,

Mas isso era outro mundo.

Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.

Acima de tudo o mundo externo!

Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

Cruz na porta da tabacaria!

Cruz na porta da tabacaria!

Quem morreu? O próprio Alves? Dou

Ao diabo o bem-estar que trazia.

Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.

Todos os dias o via. Estou

Agora sem essa monotonia.

Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.

Um ponto de referência de quem sou

Eu passava ali de noite e de dia.

Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,

E isto diz que é morte aquilo onde estou.

Horror fechado da tabacaria!

Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,

Ele era fixo, eu, o que vou,

Se morrer, não falto, e ninguém diria.

Desde ontem a cidade mudou.

(14-10-1930)

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa

Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,

Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;

E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha

(Exceto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:

Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,

E romantismo, sim, mas devagar…).

Sinto uma simpatia por essa gente toda,

Sobretudo quando não merece simpatia.

Sim, eu sou também vadio e pedinte,

E sou-o também por minha culpa.

Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:

E’ estar ao lado da escala social,

E’ não ser adaptável às normas da vida,

’As normas reais ou sentimentais da vida -

Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,

Não ser pobre a valer, operário explorado,

Não ser doente de uma doença incurável,

Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,

Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas

Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lagrimas,

E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!

Tudo menos importar-se com a humanidade!

Tudo menos ceder ao humanitarismo!

De que serve uma sensação se ha uma razão exterior a ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,

Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:

E’ ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,

E’ ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.

Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.

E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente

Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,

E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!

Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!

Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!

Coitado dele, que com lagrimas (autenticas) nos olhos,

Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,

Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha olhos tristes por profissão

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!

Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!

Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,

Que são pedintes e pedem,

Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!

Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!

Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.

Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.

Nada de estéticas com coração: sou lúcido.

Merda! Sou lúcido.

Datilografia

Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,

Firmo o projeto, aqui isolado,

Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,

O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Que náusea da vida!

Que abjeção esta regularidade!

Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros

(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),

Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,

Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,

Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,

O tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:

A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,

E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;

A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,

Que é a prática, a útil,

Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,

Há só ilustrações de infância:

Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;

Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.

Na outra somos nós,

Na outra vivemos;

Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;

Neste momento, pela náusea, vivo na outra …

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,

Ergue a voz o tique-taque estalado das máquinas de escrever.

Dela Musique

Ah, pouco a pouco, entre as árvores antigas,

A figura dela emerge e eu deixo de pensar…

Pouco a pouco, da angústia de mim vou eu mesmo emergindo…

As duas figuras encontram-se na clareira ao pé do lago….

… As duas figuras sonhadas,

Porque isto foi só um raio de luar e uma tristeza minha,

E uma suposição de outra coisa,

E o resultado de existir…

Verdadeiramente, ter-se-iam encontrado as duas figuras

Na clareira ao pé do lago?

( … Mas se não existem?…)

… Na clareira ao pé do lago?…

Demogorgon

Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda.

Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.

Pressinto um acontecimento do lado de lá das frontarias e dos movimentos.

Não, não, isso não!

Tudo menos saber o que é o Mistério!

Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,

Não vos ergais nunca!

O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!

Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada!

A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,

Deve trazer uma loucura maior que os espaços

Entre as almas e entre as estrelas.

Não, não, a verdade não! Deixai-me estas casas e esta gente;

Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente…

Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados?

Não os quero abrir de viver! ó Verdade, esquece-te de mim!

Depus a Máscara

Depus a máscara e vi-me ao espelho. —

Era a criança de há quantos anos.

Não tinha mudado nada…

É essa a vantagem de saber tirar a máscara.

É-se sempre a criança,

O passado que foi

A criança.

Depus a máscara, e tornei a pô-la.

Assim é melhor,

Assim sem a máscara.

E volto à personalidade como a um términus de linha.

Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados

Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados

O esplendor do sentido nenhum da vida…

Toquem num arraial a marcha fúnebre minha!

Quero cessar sem conseqüências…

Quero ir para a morte como para uma festa ao crepúsculo.

Dobrada à morda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,

Serviram-me o amor como dobrada fria.

Disse delicadamente ao missionário da cozinha

Que a preferia quente,

Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.

Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.

Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,

E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?

Eu não sei, e foi comigo …

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,

Particular ou público, ou do vizinho.

Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.

E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,

Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram

Dobrada à moda do Porto fria?

Não é prato que se possa comer frio,

Mas trouxeram-mo frio.

Não me queixei, mas estava frio,

Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

Dois Excertos de Odes

(FINS DE DUAS ODES, NAIURALMENTE)

I

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,

Noite Rainha nascida destronada,

Noite igual por dentro ao silêncio, Noite

Com as estrelas lentejoulas rápidas

No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,

Vem, levemente,

Vem sozinha, solene, com as mãos caídas

Ao teu lado, vem

E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,

Funde num campo teu todos os campos que vejo,

Faze da montanha um bloco só do teu corpo,

Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,

Todas as estradas que a sobem,

Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.

Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,

E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,

Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,

Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora

Das coisas impossíveis que procuramos em vão,

Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,

Dos propósitos que nos acariciam

Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas

Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,

E que doem por sabermos que nunca os realizaremos…

Vem, e embala-nos,

Vem e afaga-nos.

Beija-nos silenciosamente na fronte,

Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam

Senão por uma diferença na alma.

E um vago soluço partindo melodiosamente

Do antiquíssimo de nós

Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha

Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos

Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima,

Soleníssima e cheia

De uma oculta vontade de soluçar,

Talvez porque a alma é grande e a vida pequena,

E todos os gestos não saem do nosso corpo

E só alcançamos onde o nosso braço chega,

E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,

Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,

Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,

Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes,

Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.

Vem, lá do fundo

Do horizonte lívido,

Vem e arranca-me

Do solo de angústia e de inutilidade

Onde vicejo.

Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,

Folha a folha lê em mim não sei que sina

E desfolha-me para teu agrado,

Para teu agrado silencioso e fresco.

Uma folha de mim lança para o Norte,

Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;

Outra folha de mim lança para o Sul,

Onde estão os mares que os Navegadores abriram;

Outra folha minha atira ao Ocidente,

Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,

Que eu sem conhecer adoro;

E a outra, as outras, o resto de mim

Atira ao Oriente,

Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,

Ao Oriente pomposo e fanático e quente,

Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,

Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,

Ao Oriente que tudo o que nós não temos,

Que tudo o que nós não somos,

Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,

Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo…

Vem sobre os mares,

Sobre os mares maiores,

Sobre os mares sem horizontes precisos,

Vem e passa a mão pelo dorso da fera,

E acalma-o misteriosamente,

ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,

Vem, maternal,

Pé ante pé enfermeira antiquíssima, que te sentaste

À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,

E que viste nascer Jeová e Júpiter,

E sorriste porque tudo te é falso é inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,

Vem envolver na noite manto branco

O meu coração…

Serenamente como uma brisa na tarde leve,

Tranqüilamente com um gesto materno afagando.

Com as estrelas luzindo nas tuas mãos

E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.

Todos os sons soam de outra maneira

Quando tu vens.

Quando tu entras baixam todas as vozes,

Ninguém te vê entrar.

Ninguém sabe quando entraste,

Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,

Que tudo perde as arestas e as cores,

E que no alto céu ainda claramente azul

Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem.

A lua começa a ser real.

II

Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades

E a mão de mistério que abafa o bulício,

E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe

Para uma sensação exata e precisa e ativa da Vida!

Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios

E que misterioso o fundo unânime das ruas,

Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,

Ó do “Sentimento de um Ocidental”!

Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,

Que nem são países, nem momentos, nem vidas,

Que desejo talvez de outros modos de estados de alma

Umedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,

Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas

Como um mendigo de sensações impossíveis

Que não sabe quem lhas possa dar …

Quando eu morrer,

Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,

Por aquele caminho cuja idéia se não pode encarar de frente,

Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos

Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,

Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,

Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,

Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,

Platão sonhando viu a idéia de Deus

Esculpir corpo e existência nitidamente plausível.

Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,

Por esta hora que eu não sei como viver,

Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,

Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva, Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas, Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível

Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.

Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio

A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,

Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria

— Tu que me conheces — quem eu sou …

Domingo Irei

Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,

Contente da minha anonimidade.

Domingo serei feliz — eles, eles…

Domingo…

Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo…

Nenhum domingo. —

Nunca domingo. —

Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.

Assim passa a vida,

Sutil para quem sente,

Mais ou menos para quem pensa:

Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,

Não no nosso domingo,

Não no meu domingo,

Não no domingo…

Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!

Encostei-me

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,

E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.

A minha vida passada misturou-se com a futura,

E houve no meio um ruído do salão de fumo,

Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.

Ah, balouçado

Na sensação das ondas,

Ah, embalado

Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,

De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,

De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,

Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.

Ah, afundado

Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,

Irrequieto tão sossegadamente,

Tão análogo de repente à criança que fui outrora

Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,

Nem as outras álgebras com x e y’s de sentimento.

Ah, todo eu anseio

Por esse momento sem importância nenhuma

Na minha vida,

Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos —

Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,

Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o

compreender

E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

Escrito Num Livro Abandonado em Viagem

Venho dos lados de Beja.

Vou para o meio de Lisboa.

Não trago nada e não acharei nada.

Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,

E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.

Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto:

Fui, como ervas, e não me arrancaram.

Esta Velha

Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim,

Transbordou da vasilha,

Em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,

Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que…,

Isto.

Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,

Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.

Estou doido a frio,

Estou lúcido e louco,

Estou alheio a tudo e igual a todos:

Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura

Porque não são sonhos.

Estou assim…

Pobre velha casa da minha infância perdida!

Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!

Que é do teu menino? Está maluco.

Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?

Está maluco.

Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!

Por exemplo, por aquele manipanso

Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.

Era feiíssimo, era grotesco,

Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.

Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —

Júpiter, Jeová, a Humanidade —

Qualquer serviria,

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

Estou

Estou tonto,

Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,

Ou de ambas as coisas.

O que sei é que estou tonto

E não sei bem se me devo levantar da cadeira

Ou como me levantar dela.

Fiquemos nisto: estou tonto.

Afinal

Que vida fiz eu da vida?

Nada.

Tudo interstícios,

Tudo aproximações,

Tudo função do irregular e do absurdo,

Tudo nada.

É por isso que estou tonto …

Agora

Todas as manhãs me levanto

Tonto …

Sim, verdadeiramente tonto…

Sem saber em mim e meu nome,

Sem saber onde estou,

Sem saber o que fui,

Sem saber nada.

Mas se isto é assim, é assim.

Deixo-me estar na cadeira,

Estou tonto.

Bem, estou tonto.

Fico sentado

E tonto,

Sim, tonto,

Tonto…

Tonto.

Estou Cansado

Estou cansado, é claro,

Porque, a certa altura, a gente tem que estar cansado.

De que estou cansado, não sei:

De nada me serviria sabê-lo,

Pois o cansaço fica na mesma.

A ferida dói como dói

E não em função da causa que a produziu.

Sim, estou cansado,

E um pouco sorridente

De o cansaço ser só isto —

Uma vontade de sono no corpo,

Um desejo de não pensar na alma,

E por cima de tudo uma transparência lúcida

Do entendimento retrospectivo…

E a luxúria única de não ter já esperanças?

Sou inteligente; eis tudo.

Tenho visto muito e entendido muito o que tenho visto,

E há um certo prazer até no cansaço que isto nos dá,

Que afinal a cabeça sempre serve para qualquer coisa.

Eu

Eu, eu mesmo…

Eu, cheio de todos os cansaços

Quantos o mundo pode dar. —

Eu…

Afinal tudo, porque tudo é eu,

E até as estrelas, ao que parece,

Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças…

Que crianças não sei…

Eu…

Imperfeito? Incógnito? Divino?

Não sei…

Eu…

Tive um passado? Sem dúvida…

Tenho um presente? Sem dúvida…

Terei um futuro? Sem dúvida…

A vida que pare de aqui a pouco…

Mas eu, eu…

Eu sou eu,

Eu fico eu,

Eu…

Faróis

Faróis distantes,

De luz subitamente tão acesa,

De noite e ausência tão rapidamente volvida,

Na noite, no convés, que conseqüências aflitas!

Mágoa última dos despedidos,

Ficção de pensar …

Faróis distantes…

Incerteza da vida…

Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,

No acaso do olhar perdido…

Faróis distantes…

A vida de nada serve…

Pensar na vida de nada serve…

Pensar de pensar na vida de nada serve…

Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande.

Faróis distantes …

Gazetilha

Dos LLOYD GEORGES da Babilônia

Não reza a história nada.

Dos Briands da Assíria ou do Egito,

Dos Trotskys de qualquer colônia

Grega ou romana já passada,

O nome é morto, inda que escrito.

Só o parvo dum poeta, ou um louco

Que fazia filosofia,

Ou um geômetra maduro,

Sobrevive a esse tanto pouco

Que está lá para trás no escuro

E nem a história já historia.

Ó grandes homens do Momento!

Ó grandes glórias a ferver

De quem a obscuridade foge!

Aproveitem sem pensamento!

Tratem da fama e do comer,

Que amanhã é dos loucos de hoje!

Gostava

Gostava de gostar de gostar.

Um momento… Dá-me de ali um cigarro,

Do maço em cima da mesa de cabeceira.

Continua… Dizias

Que no desenvolvimento da metafisica

De Kant a Hegel

Alguma coisa se perdeu.

Concordo em absoluto.

Estive realmente a ouvir.

Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).

Que coisa curiosa estas associações de idéias!

Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.

Obrigado. Deixa-me acender. Continua. Hegel…

Grandes

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto

Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.

Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes

Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,

Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Grandes são os desertos, minha alma!

Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,

Errei a porta do sentimento,

Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.

Hoje não me resta, em vésperas de viagem,

Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,

Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,

Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)

Senão saber isto:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar

Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)

Acendo o cigarro para adiar a viagem,

Para adiar todas as viagens.

Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!

Basta por hoje, gentes!

Adia-te, presente absoluto!

Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,

E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar mala,

Tenho por força que arrumar a mala,

A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.

Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.

Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,

A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.

Tenho que existir a arrumar malas.

A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.

Olho para o lado, verifico que estou a dormir.

Sei só que tenho que arrumar a mala,

E que os desertos são grandes e tudo é deserto,

E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.

Vou definitivamente arrumar a mala.

Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;

Hei de vê-la levar de aqui,

Hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,

Salvo erro, naturalmente.

Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.

Fim.

Há Mais

Há mais de meia hora

Que estou sentado à secretária

Com o único intuito

De olhar para ela.

(Estes versos estão fora do meu ritmo.

Eu também estou fora do meu ritmo.)

Tinteiro grande à frente.

Canetas com aparos novos à frente.

Mais para cá papel muito limpo.

Ao lado esquerdo um volume da “Enciclopédia Britânica". Ao lado direito —

Ah, ao lado direito

A faca de papel com que ontem

Não tive paciência para abrir completamente

O livro que me interessava e não lerei.

Quem pudesse sintonizar tudo isto!

Insônia

Não durmo, nem espero dormir.

Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insônia da largura dos astros,

E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,

Não posso escrever quando acordo de noite,

Não posso pensar quando acordo de noite —

Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,

E o meu sentimento é um pensamento vazio.

Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam

— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;

Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam

— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;

Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,

E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.

Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.

Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.

Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,

Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —

Versos a dizer que não tenho nada que dizer, Versos a teimar em dizer isso,

Versos, versos, versos, versos, versos…

Tantos versos…

E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.

Sou uma sensação sem pessoa correspondente,

Uma abstração de autoconsciência sem de quê,

Salvo o necessário para sentir consciência,

Salvo — sei lá salvo o quê…

Não durmo. Não durmo. Não durmo.

Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!

Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto… Vem…

Vem, inutilmente,

Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta…

Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,

Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,

Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.

O meu cansaço entra pelo colchão dentro.

Doem-me as costas de não estar deitado de lado.

Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.

Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.

Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,

Não tenho energia para nada, para mais nada…

Só para estes versos, escritos no dia seguinte.

Sim, escritos no dia seguinte.

Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.

Paz em toda a Natureza.

A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.

Exatamente.

A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.

Costuma dizer-se isto.

A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,

Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.

Exatamente. Mas não durmo.

 

Marinetti Acadêmico

Véspera de viagem, campainha…

Não me sobreavisem estridentemente!

Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho

Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro

Do comboio definitivo,

Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,

Antes de pôr no estribo um pé

Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir.

Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,

Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.

Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela?

Que importa?

Todo o Universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.

Sabe-me a náusea próxima o cigarro. O comboio já partiu da outra estação…

Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir-se de mim,

Minha família abstrata e impossível…

Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!

Ficar como um volume rotulado esquecido,

Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.

Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida —

“E esta? Então não houve um tipo que deixou isto aqui?" —

Ficar só a pensar em partir,

Ficar e ter razão,

Ficar e morrer menos …

Vou para o futuro como para um exame difícil.

Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim?

Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.

Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.

Vê-se — dizem — que tenho vivido no estrangeiro.

Os meus modos são de homem educado, evidentemente.

Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vicio vil.

E a mão com que pego na mala treme-me e a ela.

Partir!

Nunca voltarei,

Nunca voltarei porque nunca se volta.

O lugar a que se volta é sempre outro,

A gare a que se volta é outra.

Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.

Partir! Meu Deus, partir! Tenho medo de partir!…

Lisboa

Lisboa com suas casas

De várias cores,

Lisboa com suas casas

De várias cores,

Lisboa com suas casas

De várias cores …

À força de diferente, isto é monótono.

Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto,

Na lucidez inútil de não poder dormir,

Quero imaginar qualquer coisa

E surge sempre outra (porque há sono,

E, porque há sono, um bocado de sonho),

Quero alongar a vista com que imagino

Por grandes palmares fantásticos,

Mas não vejo mais,

Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,

Que Lisboa com suas casas

De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.

A força de monótono, é diferente.

E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,

Lisboa com suas casas

De várias cores.

Lisbon Revisited (l923)

NÃO: Não quero nada.

Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!

A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!

Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!

Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas

Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —

Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.

Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.

Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?

Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?

Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.

Assim, como sou, tenham paciência!

Vão para o diabo sem mim,

Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!

Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!

Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.

Já disse que sou sozinho!

Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —

Eterna verdade vazia e perfeita!

Ó macio Tejo ancestral e mudo,

Pequena verdade onde o céu se reflete!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Lisbon revisited (1926)

Nada me prende a nada.

Quero cinqüenta coisas ao mesmo tempo.

Anseio com uma angústia de fome de carne

O que não sei que seja -

Definidamente pelo indefinido…

Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto

De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstratas e necessárias.

Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.

Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.

Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.

Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.

Até a vida só desejada me farta - até essa vida…

Compreendo a intervalos desconexos;

Escrevo por lapsos de cansaço;

E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;

Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;

ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…

E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,

Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa

(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),

Nas estradas e atalhos das florestas longínquas

Onde supus o meu ser,

Fogem desmantelados, últimos restos

Da ilusão final,

Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,

As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,

Cidade da minha infância pavorosamente perdida…

Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,

E aqui tornei a voltar, e a voltar.

E aqui de novo tornei a voltar?

Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,

Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,

Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,

Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,

Transeunte inútil de ti e de mim,

Estrangeiro aqui como em toda a parte,

Casual na vida como na alma,

Fantasma a errar em salas de recordações,

Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem

No castelo maldito de ter que viver…

Outra vez te revejo,

Sombra que passa através das sombras, e brilha

Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,

E entra na noite como um rastro de barco se perde

Na água que deixa de se ouvir…

Outra vez te revejo,

Mas, ai, a mim não me revejo!

Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,

E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -

Um bocado de ti e de mim!…

Magnificat

Quando é que passará esta noite interna, o universo,

E eu, a minha alma, terei o meu dia?

Quando é que despertarei de estar acordado?

Não sei. O sol brilha alto,

Impossível de fitar.

As estrelas pestanejam frio,

Impossíveis de contar.

O coração pulsa alheio,

Impossível de escutar.

Quando é que passará este drama sem teatro,

Ou este teatro sem drama,

E recolherei a casa?

Onde? Como? Quando?

Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?

É esse! É esse!

Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;

E então será dia.

Sorri, dormindo, minha alma!

Sorri, minha alma, será dia!

Marinetti Acadêmico

Lá chegam todos, lá chegam todos…

Qualquer dia, salvo venda, chego eu também…

Se nascem, afinal, todos para isso…

Não tenho remédio senão morrer antes,

Não tenho remédio senão escalar o Grande Muro…

Se fico cá, prendem-me para ser social…

Lá chegam todos, porque nasceram para Isso,

E só se chega ao Isso para que se nasceu…

Lá chegam todos…

Marinetti, acadêmico…

As Musas vingaram-se com focos elétricos, meu velho,

Puseram-te por fim na ribalta da cave velha,

E a tua dinâmica, sempre um bocado italiana, f-f-f-f-f-f-f-f…

Mas Eu

Mas eu, em cuja alma se refletem

As forças todas do universo,

Em cuja reflexão emotiva e sacudida

Minuto a minuto, emoção a emoção,

Coisas antagônicas e absurdas se sucedem —

Eu o foco inútil de todas as realidades,

Eu o fantasma nascido de todas as sensações,

Eu o abstrato, eu o projetado no écran,

Eu a mulher legítima e triste do Conjunto

Eu sofro ser eu através disto tudo como ter sede sem ser de água.

Mestre

Mestre, meu mestre querido!

Coração do meu corpo intelectual e inteiro!

Vida da origem da minha inspiração!

Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,

Alma abstrata e visual até aos ossos,

Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,

Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,

Espírito humano da terra materna,

Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva…

Mestre, meu mestre!

Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,

Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,

Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,

Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!

A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,

Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,

Natural como um dia mostrando tudo,

Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.

Meu coração não aprendeu nada.

Meu coração não é nada,

Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.

Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!

Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,

Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,

Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,

Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.

Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento

Pela indiferença de toda a vila.

Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,

Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.

Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,

E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.

Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,

Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?

Por que é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?

Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela

Como quem está carregado de ouro num deserto,

Ou canta com voz divina entre ruínas?

Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,

Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele

Poeta decadente, estupidamente pretensioso,

Que poderia ao menos vir a agradar,

E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.

Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano

Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,

Que tem a sua vida usual,

Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,

Que dorme sono,

Que come comida,

Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.

Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.

Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

Na Casa Defronte

Na casa defronte de mim e dos meus sonhos,

Que felicidade há sempre!

Moram ali pessoas que desconheço, que já vi mas não vi.

São felizes, porque não sou eu.

As crianças, que brincam às sacadas altas,

Vivem entre vasos de flores,

Sem dúvida, eternamente.

As vozes, que sobem do interior do doméstico,

Cantam sempre, sem dúvida.

Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.

Assim tem que ser onde tudo se ajusta —

O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu!

Mas os outros não sentirão assim também?

Quais outros? Não há outros.

O que os outros sentem é uma casa com a janela fechada,

Ou, quando se abre,

É para as crianças brincarem na varanda de grades,

Entre os vasos de flores que nunca vi quais eram.

Os outros nunca sentem.

Quem sente somos nós,

Sim, todos nós,

Até eu, que neste momento já não estou sentindo nada.

Nada! Não sei…

Um nada que dói …

Na Noite Terrivel

Na noite terrível, substância natural de todas as noites,

Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,

Relembro, velando em modorra incômoda,

Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.

Relembro, e uma angústia

Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.

O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!

Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.

Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.

Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,

Na ilusão do espaço e do tempo,

Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;

O que só agora vejo que deveria ter feito,

O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —

Isso é que é morto para além de todos os Deuses,

Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver …

Se em certa altura

Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita; Se em certo momento

Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;

Se em certa conversa

Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —

Se tudo isso tivesse sido assim,

Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro

Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,

Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;

Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;

Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,

Claras, inevitáveis, naturais,

A conversa fechada concludentemente,

A matéria toda resolvida…

Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem sperança nenhuma

Em sistema metafísico nenhum.

Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,

Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?

Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.

Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca

Como uma verdade de que não partilho,

E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.

Na Véspera

Na véspera de não partir nunca

Ao menos não há que arrumar malas

Nem que fazer planos em papel,

Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,

Para o partir ainda livre do dia seguinte.

Não há que fazer nada

Na véspera de não partir nunca.

Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!

Grande tranqüilidade a que nem sabe encolher ombros

Por isto tudo, ter pensado o tudo

É o ter chegado deliberadamente a nada.

Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,

Como uma oportunidade virada do avesso.

Há quantas vezes vivo

A vida vegetativa do pensamento!

Todos os dias sine linea

Sossego, sim, sossego…

Grande tranqüilidade…

Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!

Que prazer olhar para as malas fítando como para nada!

Dormita, alma, dormita!

Aproveita, dormita!

Dormita!

É pouco o tempo que tens! Dormita!

É a véspera de não partir nunca!

Não Estou

Não estou pensando em nada

E essa coisa central, que é coisa nenhuma,

É-me agradável como o ar da noite,

Fresco em contraste com o verão quente do dia,

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada

É ter a alma própria e inteira.

Pensar em nada

É viver intimamente

O fluxo e o refluxo da vida…

Não estou pensando em nada.

E como se me tivesse encostado mal.

Uma dor nas costas, ou num lado das costas,

Há um amargo de boca na minha alma:

É que, no fim de contas,

Não estou pensando em nada,

Mas realmente em nada,

Em nada…

Não

Não, não é cansaço…

É uma quantidade de desilusão

Que se me entranha na espécie de pensar,

E um domingo às avessas

Do sentimento,

Um feriado passado no abismo…

Não, cansaço não é…

É eu estar existindo

E também o mundo,

Com tudo aquilo que contém,

Como tudo aquilo que nele se desdobra

E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?

É uma sensação abstrata

Da vida concreta —

Qualquer coisa como um grito

Por dar,

Qualquer coisa como uma angústia

Por sofrer,

Ou por sofrer completamente,

Ou por sofrer como…

Sim, ou por sofrer como…

Isso mesmo, como…

Como quê?…

Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,

Que formidável realejo

Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.

Confesso: é cansaço!…

Não

Não: devagar.

Devagar, porque não sei

Onde quero ir.

Há entre mim e os meus passos

Uma divergência instintiva.

Há entre quem sou e estou

Uma diferença de verbo

Que corresponde à realidade.

Devagar…

Sim, devagar…

Quero pensar no que quer dizer

Este devagar…

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.

Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.

Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima…

Talvez isso tudo…

Mas o que me preocupa é esta palavra devagar…

O que é que tem que ser devagar?

Se calhar é o universo…

A verdade manda Deus que se diga.

Mas ouviu alguém isso a Deus?

Nas Praças

Nas praças vindouras — talvez as mesmas que as nossas —

Que elixires serão apregoados?

Com rótulos diferentes, os mesmos do Egito dos Faraós;

Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos.

E as metafisicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte,

As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,

As idéias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém —

Um dia talvez, em fluido abstrato, e substância implausível,

Formem um Deus, e ocupem o mundo.

Mas a mim, hoje, a mim

Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,

Nos destinos que não desvendo,

Na minha própria metafisica, que tenho porque penso e sinto

Não há sossego,

E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente!

Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito.

Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.

O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,

Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.

O que é feito dos propósitos perdidos, e dos sonhos impossíveis?

E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?

Nos dias de chuva lenta, contínua, monótona, uma,

Custa-me levantar-me da cadeira onde não dei por me ter sentado,

E o universo é absolutamente oco em torno de mim.

O tédio que chega a constituir nossos ossos encharcou-me o ser,

E a memória de qualquer coisa de que me não lembro esfria-me a alma.

Sem dúvida que as ilhas dos mares do sul têm possibilidades para o sonho,

E que os areais dos desertos todos compensam um pouco a imaginação;

Mas no meu coração sem mares nem desertos nem ilhas sinto eu,

Na minha alma vazia estou,

E narro-me prolixamente sem sentido, como se um parvo estivesse com febre.

Fúria fria do destino,

Interseção de tudo,

Confusão das coisas com as suas causas e os seus efeitos,

Conseqüência de ter corpo e alma,

E o som da chuva chega até eu ser, e é escuro.

No Fim

No fim de tudo dormir.

No fim de quê?

No fim do que tudo parece ser…,

Este pequeno universo provinciano entre os astros,

Esta aldeola do espaço,

E não só do espaço visível, mas até do espaço total.

No lugar dos palácios desertos

No lugar dos palácios desertos e em ruínas

À beira do mar,

Leiamos, sorrindo, os segredos das sinais

De quem sabe amar.

Qualquer que ele seja, o destino daqueles

Que o amor levou

Para a sombra, ou na luz se fez a sombra deles,

Qualquer fosse o vôo.

Por certo eles foram mais reais e felizes.

Nunca, por Mais

Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça

O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido,

Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,

A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea —

Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma,

Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem —

Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração.

Nuvens

No dia triste o meu coração mais triste que o dia…

Obrigações morais e civis?

Complexidade de deveres, de conseqüências?

Não, nada…

O dia triste, a pouca vontade para tudo…

Nada…

Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol

(Também estive ao sol, ou supus que estive).

Todos têm razão, ou vida, ou ignorância simétrica,

Vaidade, alegria e sociabilidade,

E emigram para voltar, ou para não voltar,

Em navios que os transportam simplesmente.

Não sentem o que há de morte em toda a partida,

De mistério em toda a chegada,

De horrível em iodo o novo…

Não sentem: por isso são deputados e financeiros,

Dançam e são empregados no comércio,

Vão a todos os teatros e conhecem gente…

Não sentem: para que haveriam de sentir?

Gado vestido dos currais dos Deuses,

Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício

Sob o sol, álacre, vivo, contente de sentir-se…

Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda

Para o mesmo destino!

Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho,

Vou com ele sem desconhecer…

No dia triste o meu coração mais triste que o dia…

No dia triste todos os dias…

No dia tão triste…

O Binômio de Newton

O Binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo.

O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó

(O vento lá fora.)

O Descalabro

O descalabro a ócio e estrelas…

Nada mais…

Farto…

Arre…

Todo o mistério do mundo entrou para a minha vida econômica.

Basta!…

O que eu queria ser, e nunca serei, estraga-me as ruas.

Mas então isto não acaba?

É destino?

Sim, é o meu destino

Distribuido pelos meus conseguimentos no lixo

E os meus propósitos à beira da estrada —

Os meus conseguimentos rasgados por crianças,

Os meus propósitos mijados por mendigos,

E toda a minha alma uma toalha suja que escorregou para o chão.

O horror do som do relógio à noite na sala de jantar dê uma casa de

província —

Toda a monotonia e a fatalidade do tempo…

O horror súbito do enterro que passa

E tira a máscara a todas as esperanças.

Ali…

Ali vai a conclusão.

Ali, fechado e selado,

Ali, debaixo do chumbo lacrado e com cal na cara

Vai, que pena como nós,

Vai o que sentiu como nós,

Vai o nós!

Ali, sob um pano cru acro é horroroso como uma abóbada de cárcere

Ali, ali, ali… E eu?

O Esplendor

E o esplendor dos mapas, caminho abstrato para a imaginação concreta,

Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,

Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.

(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte,

O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,

O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,

Tudo o que diz o que não diz,

E a alma sonha, diferente e distraída.

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!

O Florir

O florir do encontro casual

Dos que hão sempre de ficar estranhos…

O único olhar sem interesse recebido no acaso

Da estrangeira rápida …

O olhar de interesse da criança trazida pela mão

Da mãe distraída…

As palavras de episódio trocadas

Com o viajante episódico

Na episódica viagem …

Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados…

Caminho sem fim…

O Frio Especial

O frio especial das manhãs de viagem,

A angústia da partida, carnal no arrepanhar

Que vai do coração à pele,

Que chora virtualmente embora alegre.

O Mesmo

O mesmo Teucro duce et auspice Teucro

É sempre cras — amanhã — que nos faremos ao mar.

Sossega, coração inútil, sossega!

Sossega, porque nada há que esperar,

E por isso nada que desesperar também…

Sossega… Por cima do muro da quinta

Sobe longínquo o olival alheio.

Assim na infância vi outro que não era este:

Não sei se foram os mesmos olhos da mesma alma que o viram.

Adiamos tudo, até que a morte chegue.

Adiamos tudo e o entendimento de tudo,

Com um cansaço antecipado de tudo,

Com uma saudade prognóstica e vazia.

O Que Há

O que há em mim é sobretudo cansaço —

Não disto nem daquilo,

Nem sequer de tudo ou de nada:

Cansaço assim mesmo, ele mesmo,

Cansaço.

A sutileza das sensações inúteis,

As paixões violentas por coisa nenhuma,

Os amores intensos por o suposto em alguém,

Essas coisas todas —

Essas e o que falta nelas eternamente —;

Tudo isso faz um cansaço,

Este cansaço,

Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,

Há sem dúvida quem deseje o impossível,

Há sem dúvida quem não queira nada —

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:

Porque eu amo infinitamente o finito,

Porque eu desejo impossivelmente o possível,

Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,

Ou até se não puder ser…

E o resultado?

Para eles a vida vivida ou sonhada,

Para eles o sonho sonhado ou vivido,

Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto…

Para mim só um grande, um profundo,

E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,

Um supremíssimo cansaço,

Íssimno, íssimo, íssimo,

Cansaço…

O Sono

O sono que desce sobre mim,

O sono mental que desce fisicamente sobre mim,

O sono universal que desce individualmente sobre mim —

Esse sono

Parecerá aos outros o sono de dormir,

O sono da vontade de dormir,

O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:

E o sono da soma de todas as desilusões,

É o sono da síntese de todas as desesperanças,

É o sono de haver mundo comigo lá dentro

Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim

É contudo como todos os sonos.

O cansaço tem ao menos brandura,

O abatimento tem ao menos sossego,

A rendição é ao menos o fim do esforço,

O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,

Viro indiferente a cabeça para a esquerda

Por sobre o ombro que a sente,

Olho pela janela entreaberta:

A rapariga do segundo andar de defronte

Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.

De quem?,

Pergunta a minha indiferença.

E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono! …

O ter deveres, que prolixa coisa!

O ter deveres, que prolixa coisa!

Agora tenho eu que estar à uma menos cinco

Na Estação do Rocio, tabuleiro superior — despedida

Do amigo que vai no “Sud Express" de toda a gente

Para onde toda a gente vai, o Paris …

Tenho que lá estar

E acreditem, o cansaço antecipado é tão grande

Que, se o “Sud Express" soubesse, descarrilava…

Brincadeira de crianças?

Não, descarrilava a valer…

Que leve a minha vida dentro, arre, quando descarrile!…

Tenho desejo forte,

E o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo.

O Tumulto

O tumulto concentrado da minha imaginação intelectual …

Fazer filhos à razão prática, como os crentes enérgicos…

Minha juventude perpétua

De viver as coisas pelo lado das sensações e não das responsabilidades.

(Álvaro de Campos, nascido no Algarve, educado por um tio-avô, padre,

que lhe instilou um certo amor às coisas clássicas.) (Veio para Lisboa muito novo …)

A capacidade de pensar o que sinto, que me distingue do homem vulgar

Mais do que ele se distingue do macaco.

(Sim, amanhã o homem vulgar talvez me leia e compreenda a substância do meu ser,

Sim, admito-o,

Mas o macaco já hoje sabe ler o homem vulgar e lhe compreende a substância do ser.)

Se alguma coisa foi por que é que não é

Ser nao é ser?

As flores do campo da minha infância, não as terei eternamente,

Em outra maneira de ser?

Perderei para sempre os afetos que tive, e até os afetos que pensei ter?

Há algum que tenha a chave da porta do ser, que não tem porta,

E me possa abrir com razões a inteligência do mundo?

Ode Marcial

Inúmero rio sem água — só gente e coisa,

Pavorosamente sem água!

Soam tambores longínquos no meu ouvido

E eu não sei se vejo o rio se ouço os tambores,

Como se não pudesse ouvir e ver ao mesmo tempo

Helahoho! Helahoho!

A máquina de costura da pobre viúva morta à baioneta…

Ela cosia à tarde indeterminadamente…

A mesa onde jogavam os velhos,

Tudo misturado, tudo misturtado com os corpos, com sangues,

Tudo um só rio, uma só onda, um só arrastado horror

Helahoho! Helahoho!

Desenterrei o comboio de lata da criança calcado no meio da estrada,

E chorei como todas as mães do mundo sobre o horror da vida.

Os meus pés panteístas tropeçaram na máquina de costura da viúva que mataram à baioneta

E esse pobre instrumento de paz meteu uma lança no meu coração

Sim, fui eu o culpado de tudo, fui eu o soldado todos eles

Que matou, violou, queimou e quebrou,

Fui eu e a minha vergonha e o meu remorso com uma sombra disforme

Passeiam por todo o mundo como Ashavero,

Mas atrás dos meus passos soam passos do tamanho do infinito.

E um pavor físico de encontrar Deus faz-me fechar os olhos de repente.

Cristo absurdo da expiação de todos os crimes e de todas as violências,

A minha cruz está dentro de mim, hirta, a escaldar, a quebrar

E tudo dói na minha alma extensa como um Universo.

Arranquei o pobre brinquedo das mãos da criança e batil-lhe.

Os seus olhos assustados do meu filho que talvez terei e que matarão também

Pediram-me sem saber como toda a piedade por todos.

Do quarto da velha arranquei o retrato do filho e rasguei-o,

Ela, cheia de medo, chorou e não fez nada…

Senti de repente que ela era minha mãe e pela espinha abaixo passou me o sopro de Deus.

Quebrei a máquina de costura da viúva pobre.

Ela chorava a um canto sem pensar na máquina de costura.

Haverá outro mundo onde eu tenha que ter uma filha que enviúve e a quem aconteça isto?

Mandei, capitão, fuzilar os camponeses trêmulos,

Deixei violar as filhas de todos os pais atados a árvores,

Agora vi que foi dentro de meu coração que tudo isto se passou,

E tudo escalda e sufoca e eu não me posso mexer sem que tudo seja o mesmo

Deus tenha piedade de mim que a não tive a ninguém!

Ode Marítima

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,

Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,

Olho e contenta-me ver,

Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.

Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.

Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.

Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,

Aqui, acolá, acorda a vida marítima,

Erguem-se velas, avançam rebocadores,

Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.

Há uma vaga brisa.

Mas a minh’alma está com o que vejo menos,

Com o paquete que entra,

Porque ele está com a Distância, com a Manhã,

Com o sentido marítimo desta Hora,

Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,

Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,

E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,

Os paquetes que entram de manhã na barra

Trazem aos meus olhos consigo

O mistério alegre e triste de quem chega e parte.

Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos

Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.

Todo o atracar, todo o largar de navio,

É — sinto-o em mim como o meu sangue -

Inconscientemente simbólico, terrivelmente

Ameaçador de significações metafísicas

Que perturbam em mim quem eu fui…

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!

E quando o navio larga do cais

E se repara de repente que se abriu um espaço

Entre o cais e o navio,

Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,

Uma névoa de sentimentos de tristeza

Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas

Como a primeira janela onde a madrugada bate,

E me envolve como uma recordação duma outra pessoa

Que fosse misteriosamente minha.

Ah, quem sabe, quem sabe,

Se não parti outrora, antes de mim,

Dum cais; se não deixei, navio ao sol

Oblíquo da madrugada,

Uma outra espécie de porto?

Quem sabe se não deixei, antes de a hora

Do mundo exterior como eu o vejo

Raiar-se para mim,

Um grande cais cheio de pouca gente,

Duma grande cidade meio-desperta,

Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,

Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?

Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material,

Real, visível como cais, cais realmente,

O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado

Insensivelmente evocado,

Nós os homens construímos

Os nossos cais de pedra atual sobre água verdadeira,

Que depois de construídos se anunciam de repente

Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedra-Almas,

A certos momentos nossos de sentimento-raiz

Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta

E, sem que nada se altere,

Tudo se revela diverso.

Ah o Grande Cais donde partimos em Navios-Nações!

O Grande Cais Anterior, eterno e divino!

De que porto? Em que águas? E porque penso eu isto?

Grandes Cais como os outros cais, mas o Único.

Cheio como eles de silêncios rumorosos nas antemanhãs,

E desabrochando com as manhãs num ruído de guindastes

E chegadas de comboios de mercadorias,

E sob a nuvem negra e ocasional e leve

Do fundo das chaminés das fábricas próximas

Que lhe sombreia o chão preto de carvão pequenino que brilha,

Como se fosse a sombra duma nuvem que passasse sobre água sombria.

Ah, que essencialidade de mistério e sentido parados

Em divino êxtase revelador

Às horas cor de silêncios e angústias

Não é ponte entre qualquer cais e O Cais!

Cais negramente refletido nas águas paradas,

Bulício a bordo dos navios,

Ó alma errante e instável da gente que anda embarcada,

Da gente simbólica que passa e com quem nada dura,

Que quando o navio volta ao porto

Há sempre qualquer alteração a bordo!

Ó fugas contínuas, idas, ebriedade do Diverso!

Alma eterna dos navegadores e das navegações!

Cascos refletidos devagar nas águas,

Quando o navio larga do porto!

Flutuar como alma da vida, partir como voz,

Viver o momento tremulamente sobre águas eternas.

Acordar para dias mais diretos que os dias da Europa,

Ver portos misteriosos sobre a solidão do mar,

Virar cabos longínquos para súbitas vastas paisagens

Por inumeráveis encostas atônitas…

Ah, as praias longínquas, os cais vistos de longe,

E depois as praias próximas, os cais vistos de perto.

O mistério de cada ida e de cada chegada,

A dolorosa instabilidade e incompreensibilidade

Deste impossível universo

A cada hora marítima mais na própria pele sentido!

O soluço absurdo que as nossas almas derramaram

Sobre as extensões de mares diferentes com ilhas ao longe,

Sobre as ilhas longínquas das costas deixadas passar,

Sobre o crescer nítido dos portos, com as suas casas e a sua gente,

Para o navio que se aproxima.

Ah, a frescura das manhãs em que se chega,

E a palidez das manhãs em que se parte,

Quando as nossas entranhas se arrepanham

E uma vaga sensação parecida com um medo

- O medo ancestral de se afastar e partir,

O misterioso receio ancestral à Chegada e ao Novo -

Encolhe-nos a pele e agonia-nos,

E todo o nosso corpo angustiado sente,

Como se fosse a nossa alma,

Uma inexplicável vontade de poder sentir isto doutra maneira:

Uma saudade a qualquer coisa,

Uma perturbação de afeições a que vaga pátria?

A que costa? a que navio? a que cais?

Que se adoece em nós o pensamento,

E só fica um grande vácuo dentro de nós,

Uma oca saciedade de minutos marítimos,

E uma ansiedade vaga que seria tédio ou dor

Se soubesse como sê-lo…

A manhã de Verão está, ainda assim, um pouco fresca.

Um leve torpor de noite anda ainda no ar sacudido.

Acelera-se ligeiramente o volante dentro de mim.

E o paquete vem entrando, porque deve vir entrando sem dúvida,

E não porque eu o veja mover-se na sua distância excessiva.

Na minha imaginação ele está já perto e é visível

Em toda a extensão das linhas das suas vigias.

E treme em mim tudo, toda a carne e toda a pele,

Por causa daquela criatura que nunca chega em nenhum barco

E eu vim esperar hoje ao cais, por um mandado oblíquo.

Os navios que entram a barra,

Os navios que saem dos portos,

Os navios que passam ao longe

(Suponho-me vendo-os duma praia deserta) -

Todos estes navios abstratos quase na sua ida,

Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa

E não apenas navios, navios indo e vindo.

E os navios vistos de perto, mesmo que se não vá embarcar neles,

Vistos de baixo, dos botes, muralhas altas de chapas,

Vistos dentro, através das câmaras, das salas, das despensas,

Olhando de perto os mastros, afilando-se lá pró alto,

Roçando pelas cordas, descendo as escadas incômodas,

Cheirando a untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo –

Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa,

Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.

Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!

Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina

E eu cismo indeterminadamente as viagens.

Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!

Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!

As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico

Em que não sei por que sugestão aprendida na escola

Se sente pesar sobre os nervos o fato de que aquele é o maior dos oceanos

E o mundo e o sabor das coisas tornam-se um deserto dentro de nós!

A extensão mais humana, mais salpicada, do Atlântico!

O indico, o mais misterioso dos oceanos todos!

O Mediterrâneo, doce, sem mistério nenhum, clássico, um mar para bater

De encontro a esplanadas olhadas de jardins próximos por estátuas brancas!

Todos os mares, todos os estreitos, todas as baías, todos os golfos,

Queria apertá-los ao peito, senti-los bem e morrer!

E vós, ó coisas navais, meus velhos brinquedos de sonho!

Componde fora de mim a minha vida interior!

Quilhas, mastros e velas, rodas do leme, cordagens,

Chaminés de vapores, hélices, gáveas, flâmulas,

Galdropes, escotilhas, caldeiras, coletores, válvulas;

Caí por mim dentro em montão, em monte,

Como o conteúdo confuso de uma gaveta despejada no chão!

Sede vós o tesouro da minha avareza febril,

Sede vós os frutos da árvore da minha imaginação,

Tema de cantos meus, sangue nas veias da minha inteligência,

Vosso seja o laço que me une ao exterior pela estética,

Fornecei-me metáforas imagens, literatura,

Porque em real verdade, a sério, literalmente,

Minhas sensações são um barco de quilha pro ar,

Minha imaginação uma ancora meio submersa,

Minha ânsia um remo partido,

E a tessitura dos meus nervos uma rede a secar na praia!

Soa no acaso do rio um apito, só um.

Treme já todo o chão do meu psiquismo.

Acelera-se cada vez mais o volante dentro de mim.

Ah, os paquetes, as viagens, o não-se-saber-o-paradeiro

De Fulano-de-tal, marítimo, nosso conhecido!

Ah, a glória de se saber que um homem que andava conosco

Morreu afogado ao pé duma ilha do Pacífico!

Nós que andamos com ele vamos falar nisso a todos,

Com um orgulho legítimo, com uma confiança invisível

Em que tudo isso tenha um sentido mais belo e mais vasto

Que apenas o ter-se perdido o barco onde ele ia

E ele ter ido ao fundo por lhe ter entrado água pros pulmões!

Ah, os paquetes, os navios-carvoeiros, os navios de vela!

Vão rareando - ai de mim! - os navios de vela nos mares!

E eu, que amo a civilização moderna, eu que beijo com a alma as máquinas,

Eu o engenheiro, eu o civilizado, eu o educado no estrangeiro,

Gostaria de ter outra vez ao pé da minha vista só veleiros e barcos de madeira,

De não saber doutra vida marítima que a antiga vida dos mares!

Porque os mares antigos são a Distância Absoluta,

O Puro Longe, liberto do peso do Atual…

E ah, como aqui tudo me lembra essa vida melhor,

Esses mares, maiores, porque se navegava mais devagar.

Esses mares, misteriosos, porque se sabia menos deles.

Todo o vapor ao longe é um barco de vela perto.

Todo o navio distante visto agora é um navio no passado visto próximo.

Todos os marinheiros invisíveis a bordo dos navios no horizonte

São os marinheiros visíveis do tempo dos velhos navios,

Da época lenta e veleira das navegações perigosas,

Da época de madeira e lona das viagens que duravam meses.

Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas,

Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera,

O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos,

E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das águas,

Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh’alma

E a aceleração do volante sacode-me nitidamente.

Chamam por mim as águas,

Chamam por mim os mares,

Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes,

As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar.

Tu, marinheiro inglês, Jim Barns meu amigo, foste tu

Que me ensinaste esse grito antiquíssimo, inglês,

Que tão venenosamente resume

Para as almas complexas como a minha

O chamamento confuso das águas,

A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar,

Dos naufrágios, das viagens longínquas, das travessias perigosas.

Esse teu grito inglês, tornado universal no meu sangue,

Sem feitio de grito, sem forma humana nem voz,

Esse grito tremendo que parece soar

De dentro duma caverna cuja abóbada é o céu

E parece narrar todas as sinistras coisas

Que podem acontecer no Longe, no Mar, pela Noite…

(Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas,

E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca,

Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras:

Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyy…

Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-oò -yyy…)

Escuto-te de aqui, agora, e desperto a qualquer coisa.

Estremece o vento. Sobe a manhã. O calor abre.

Sinto corarem-me as faces.

Meus olhos conscientes dilatam-se.

O êxtase em mim levanta-se, cresce, avança,

E com um ruído cego de arruaça acentua-se

O giro vivo do volante.

Ó clamoroso chamamento

A cujo calor, a cuja fúria fervem em mim

Numa unidade explosiva todas as minhas ânsias,

Meus próprios tédios tornados dinâmicos, todos!…

Apelo lançado ao meu sangue

Dum amor passado, não sei onde, que volve

E ainda tem força para me atrair e puxar,

Que ainda tem força para me fazer odiar esta vida

Que passo entre a impenetrabilidade física e psíquica

Da gente real com que vivo!

Ah seja como for, seja por onde for, partir!

Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.

Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata,

Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,

Levado, como a poeira, plos ventos, plos vendavais!

Ir, ir, ir, ir de vez!

Todo o meu sangue raiva por asas!

Todo o meu corpo atira-se pra frente!

Galgo pla minha imaginação fora em torrentes!

Atropelo-me, rujo, precipito-me

Estoiram em espuma as minhas ânsias

E a minha carne é uma onda dando de encontro a rochedos!

Pensando nisto - ó raiva! pensando nisto - ó fúria!

Pensando nesta estreiteza da minha vida cheia de ânsias,

Subitamente, tremulamente extraorbitadamente,

Com uma oscilação viciosa, vasta, violenta,

Do volante vivo da minha imaginação.

Rompe, por mim, assobiando, silvando, vertiginando,

O cio sombrio e sádico da estrídula vida marítima.

Eh marinheiros, gajeiros! eh tripulantes, pilotos!

Navegadores, mareantes, marujos, aventureiros!

Eh capitães de navios! homens ao leme e em mastros!

Homens que dormem em beliches rudes!

Homens que dormem co’o Perigo a espreitar plas vigias!

Homens que dormem co’a Morte por travesseiro!

Homens que têm tombadilhos, que têm pontes donde olhar

A imensidade imensa do mar imenso!

Eh manipuladores dos guindastes de carga!

Eh amainadores de velas, fagueiros, criados de bordo!

Homens que metem a carga nos porões!

Homens que enrolam cabos no convés!

Homens que limpam os metais das escotilhas!

Homens do leme! homens das máquinas! homens dos mastros!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Gente de boné de pala! Gente de camisola de malha!

Gente de âncoras e bandeiras cruzadas bordadas no peito!

Gente tatuada! gente de cachimbo! gente de amurada!

Gente escura de tanto sol, crestada de tanta chuva,

Limpa de olhos de tanta imensidade diante deles,

Audaz de rosto de tantos ventos que lhes bateram a valer!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Homens que vistes a Patagônia!

Homens que passasses pela Austrália!

Que enchesses o vosso olhar de costas que nunca verei!

Que fostes a terra em terras onde nunca descerei!

Que comprastes artigos toscos em colônias à proa de sertões!

E fizestes tudo isso como se não fosse nada,

Como se isso fosse natural,

Como se a vida fosse isso,

Como nem sequer cumprindo um destino!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Homens do mar atual! homens do mar passado!

Comissários de bordo! escravos das galés! combatentes de Lepanto!

Piratas do tempo de Roma! Navegadores da Grécia!

Fenícios! Cartagineses! Portugueses atirados de Sagres

Para a aventura indefinida, para o Mar Absoluto, para realizar o Impossível!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Homens que erguestes padrões, que destes nomes a cabos!

Homens que negociastes pela primeira vez com pretos!

Que primeiro vendesses escravos de novas terras!

Que destes o primeiro espasmo europeu às negras atônitas

Que trouxesses ouro, miçanga, madeiras cheirosas, setas,

De encostas explodindo em verde vegetação!

Homens que saqueasses tranqüilas povoações africanas

Que fizestes fugir com o ruído de canhões essas raças

Que matastes, roubastes, torturastes, ganhastes

Os prêmios de Novidade de quem, de cabeça baixa

Arremete contra o mistério de novos mares! Eh-eh-eh eh-eh!

A vós todos num, a vós todos em vós todos como um,

A vós todos misturados, entrecruzados.

A vós todos sangrentos, violentos, odiados, temidos, sagrados,

Eu vos saúdo, eu vos saúdo, eu vos saúdo!

Eh-eh-eh-eh eh! Eh eh-eh-eh eh! Eh-eh-eh eh-eh-eh eh!

Eh lahô-lahô laHO-lahá-á-á-à-à!

Quero ir convosco, quero ir convosco,

Ao mesmo tempo com vós todos

Pra toda a parte pr’onde fostes!

Quero encontrar vossos perigos frente a frente,

Sentir na minha cara os ventos que engelharam as vossa

Cuspir dos lábios o sal dos mares que beijaram os vossos

Ter braços na vossa faina, partilhar das vossas tormentas

Chegar como vós, enfim, a extraordinários portos!

Fugir convosco à civilização!

Perder convosco a noção da moral!

Sentir mudar-se no longe a minha humanidade!

Beber convosco em mares do Sul

Novas selvajarias, novas balbúrdias da alma,

Novos fogos centrais no meu vulcânico espírito!

Ir convosco, despir de mim - ah! põe-te daqui pra fora! -

O meu traje de civilizado, a minha brandura de ações,

Meu medo inato das cadeias,

Minha pacífica vida,

A minha vida sentada, estática, regrada e revista!

No mar, no mar, no mar, no mar,

Eh! pôr no mar, ao vento, às vagas,

A minha vida!

Salgar de espuma arremessada pelos ventos

Meu paladar das grandes viagens.

Fustigar de água chicoteante as carnes da minha aventura,

Repassar de frios oceânicos os ossos da minha existência,

Flagelar, cortar, engelhar de ventos, de espumas, de sóis,

Meu ser ciclônico e atlântico,

Meus nervos postos como enxárcias,

Lira nas mãos dos ventos!

Sim, sim, sim… Crucificai-me nas navegações

E as minhas espáduas gozarão a minha cruz!

Atai-me às viagens como a postes

E a sensação dos postes entrará pela minha espinha

E eu passarei a senti-los num vasto espasmo passivo!

Fazei o que quiserdes de mim, logo que seja nos mares,

Sobre conveses, ao som de vagas,

Que me rasgueis, mateis, fira-os!

O que quero é levar pra Morte

Uma alma a transbordar de Mar,

Ébria a cair das coisas marítimas,

Tanto dos marujos como das âncoras, dos cabos,

Tanto das costas longínquas como do ruído dos ventos,

Tanto do Longe como do Cais, tanto dos naufrágios

Como dos tranqüilos comércios,

Tanto dos mastros como das vagas,

Levar pra Morte com dor, voluptuosamente,

Um copo cheio de sanguessugas, a sugar, a sugar,

De estranhas verdes absurdas sanguessugas marítimas!

Façam enxárcias das minhas veias!

Amarras dos meus músculos!

Atranquem-me a pele, preguem-na às quilhas.

E possa eu sentir a dor dos pregos e nunca deixar de sentir!

Façam do meu coração uma flâmula de almirante

Na hora de guerra aos velhos navios!

Calquem aos pés nos conveses meus olhos arrancados!

Quebrem-me os ossos de encontro às amuradas!

Fustiguem-me atado aos mastros, fustiguem-me!

A todos os ventos de todas as latitudes e longitudes

Derramem meu sangue sobre as águas arremessadas

Que atravessam o navio, o tombadilho, de lado a lado,

Nas vascas bravas das tormentas!

Ter a audácia ao vento dos panos das velas!

Ser, como as gáveas altas, o assobio dos ventos!

A velha guitarra do Fado dos mares cheios de perigos,

Canção para os navegadores ouvirem e não repetirem!

Os marinheiros que se sublevaram

Enforcaram o capitão numa verga.

Desembarcaram um outro numa ilha deserta.

Morooned!

O sol dos trópicos pôs a febre da pirataria antiga

Nas minhas veias intensivas.

Os ventos da Patagônia tatuaram a minha imaginação

De imagens trágicas e obscenas.

Fogo, fogo, fogo, dentro de mim!

Sangue! sangue! sangue! sangue!

Explode todo o meu cérebro!

Parte-se-me o mundo em vermelho!

Estoiram-me com o som de amarras as veias!

E estala em mim, feroz, voraz,

A canção do Grande Pirata,

A morte berrada do Grande Pirata a cantar

Até meter pavor plas espinhas dos seus homens abaixo.

Lá da ré a morrer, e a berrar, a cantar:

Fifteen men on the Dead Man’s Chest.

Yo-ho ho and a bottle of rum I

E depois a gritar, numa voz já irreal, a estoirar no ar:

Darby M’Graw-aw-aw-aw-aw!

Darby M’Graw-aw-aw-aw-aw-aw-aw-aw!

Fetch a-a-aft th ru-u-u-u-u-u-u-u-u-um, Darby,

Eia,, que vida essa! essa era a vida, eia!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Eh-lahô-lahô-laFIO-Iahá-á-á-à-à!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares

Conveses cheios de sangue, fragmentos de corpos!

Dedos decepados sobre amuradas!

Cabeças de crianças, aqui, acolá!

Gente de olhos fora, a gritar, a uivar!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Embrulho-me em tudo isto como uma capa no frio!

Roço-me por tudo isto como uma gata com cio por um muro!

Rujo como um leão faminto para tudo isto!

Arremeto como um toiro louco sobre tudo isto!

Cravo unhas, parto garras, sangro dos dentes sobre isto!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

De repente estala-me sobre os ouvidos

Como um clarim a meu lado,

O velho grito, mas agora irado, metálico,

Chamando a presa que se avista,

A escuna que vai ser tomada:

Ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy..

Schooner ahó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó-ó - yyyy…

O mundo inteiro não existe para mim! Ardo vermelho!

Rujo na fúria da abordagem!

Pirata-mór! César-Pirata!

Pilho, mato, esfacelo, rasgo!

Só sinto o mar, a presa, o saque!

Só sinto em mim bater, baterem-me

As veias das minhas fontes!

Escorre sangue quente a minha sensação dos meus olhos!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh!

Ah piratas, piratas, piratas!

Piratas, amai-me e odiai-me!

Misturai-me convosco, piratas!

Vossa fúria, vossa crueldade corno falam ao sangue

Dum corpo de mulher que foi meu outrora e cujo cio sobrevive!

Eu queria ser um bicho representativo de todos os vossos gestos,

Um bicho que cravasse dentes nas amuradas, nas quilhas

Que comesse mastros, bebesse sangue e alcatrão nos conveses,

Trincasse velas, remos, cordame e poleame,

Serpente do mar feminina e monstruosa cevando-se nos crimes!

E há uma sinfonia de sensações incompatíveis e análogas,

Há uma orquestrarão no meu sangue de balbúrdias de crimes,

De estrépitos espasmados de orgias de sangue nos mares,

Furlbundamente, como um vendaval de calor pelo espírito,

Nuvem de poeira quente anuviando a minha lucidez

E fazendo-me ver e sonhar isto tudo só com a pele e as veias!

Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora,

Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas,

E o terror dos apresados foge pra loucura - essa hora,

No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens,

Brisa, latitude, longitude, vozearia,

Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo, sofrendo,

Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho,

Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!

Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes

Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações!

Ser quanto foi no lugar dos saques!

Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue!

Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge,

E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo!

Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres

Que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas pelos piratas!

Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles

E sentir tudo isso -- todas estas coisas duma só vez - pela espinha!

Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do crime!

Minhas marítimas feras, maridos da minha imaginação!

Amantes casuais da obliqüidade das minhas sensações!

Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,

A vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos sonhos!

Porque ela teria convosco, mas só em espírito, raivado

Sobre os cadáveres nus das vítimas que fazeis no mar!

Porque ela teria acompanhado vosso crime, e na orgia oceânica

Seu espírito de bruxa dançaria invisível em volta dos gestos

Dos vossos corpos, dos vossos cutelos, das vossas mãos estranguladores!

E ela em terra, esperando-vos, quando viésseis, se acaso viésseis,

Iria beber nos rugidos do vosso amor todo o vasto,

Todo o nevoento e sinistro perfume das vossas vitórias,

E através dos vossos espasmos silvaria um sabbat de vermelho e amarelo!

A carne rasgada, a carne aberta e estripada, o sangue correndo!

Agora, no auge conciso de sonhar o que vós fazíeis,

Perco-me todo de mim, já não vos pertenço, sou vós,

A minha feminilidade que vos acompanha é ser as vossas almas!

Estar por dentro de toda a vossa ferocidade, quando a praticáveis!

Sugar por dentro a vossa consciência das vossas sensações

Quando tingíeis de sangue os mares altos,

Quando de vez em quando atiráveis aos tubarões

Os corpos vivos ainda dos feridos, a carne rosada das crianças

E leváveis as mães às amuradas para verem o que lhes acontecia!

Estar convosco na carnagem, na pilhagem!

Estar orquestrado convosco na sinfonia dos saques!

Ah, não sei quê, não sei quanto queria eu ser de vós!

Não era só ser-vos a fêmea, ser-vos as fêmeas, ser-vos as vítimas,

Ser-vos as vítimas - homens, mulheres, crianças, navios -,

Não era só ser a hora e os barcos e as ondas,

Não era só ser vossas almas, vossos corpos, vossa fúria, vossa posse,

Não era só ser concretamente vosso ato abstrato de orgia,

Não era só isto que eu queria ser - era mais que isto o Deus-isto!

Era preciso ser Deus, o Deus dum culto ao contrário,

Um Deus monstruoso e satânico, um Deus dum panteísmo de sangue,

Para poder encher toda a medida da minha fúria imaginativa,

Para poder nunca esgotar os meus desejos de identidade

Com o cada, e o tudo, e o mais-que-tudo das vossas vitórias!

Ah, torturai-me para me curardes!

Minha carne - fazei dela o ar que os vossos cutelos atravessam

Antes de caírem sobre as cabeças e os ombros!

Minhas veias sejam os fatos que as facas trespassam!

Minha imaginação o corpo das mulheres que violais!

Minha inteligência o convés onde estais de pé matando!

Minha vida toda, no seu conjunto nervoso, histérico, absurdo,

O grande organismo de que cada ato de pirataria que se cometeu

Fosse uma célula consciente - e todo eu turbilhonasse

Como uma imensa podridão ondeando, e fosse aquilo tudo!

Com tal velocidade desmedida, pavorosa,

A máquina de febre das minhas visões transbordantes

Gira agora que a minha consciência, volante,

E apenas um nevoento círculo assobiando no ar.

Fifteen men on tbe Dead Man’s Chest.

Yo-ho-ho and a bottle of rum!

Eh-lahô-lahô-laHO - lahá-á-ááá - ààà…

Ah! a selvajaria desta selvajaria! Merda

Pra toda a vida como a nossa, que não é nada disto!

Eu pr’àqui engenheiro, pratico à força, sensível a tudo,

Pr’àqui parado, em relação a vós, mesmo quando ando;

Mesmo quando ajo, inerte; mesmo quando me imponho, débil;

Estático, quebrado, dissidente cobarde da vossa Glória,

Da vossa grande dinâmica estridente, quente e sangrenta!

Arre! por não poder agir de acordo com o meu delírio!

Arre! por andar sempre agarrado às saias da civilização!

Por andar com a douceur des moeurs às costas, como um fardo de rendas!

Moços de esquina - todos nós o somos - do humanitarismo moderno!

Estupores de tísicos, de neurastênicos, de linfáticos,

Sem coragem para ser gente com violência e audácia,

Com a alma como uma galinha presa por uma perna!

Ah, os piratas! os piratas!.

A ânsia do ilegal unido ao feroz,

A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis,

Que rói como um cio abstrato os nossos corpos franzimos,

Os nossos nervos femininos e delicados,

E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios!

Obrigai-me a ajoelhar diante de vós!

Humilhai-me e batei-me!

Fazei de mim o vosso escravo e a vossa coisa!

E que o vosso desprezo por mim nunca me abandone,

Ó meus senhores! ó meus senhores!

Tomar sempre gloriosamente a parte submissa

Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!

Desabai sobre mim, como grandes muros pesados,

Ó bárbaros do antigo mar!

Rasgai-me e feri-me!

De leste a oeste do meu corpo

Riscai de sangue a minha carne!

Beijai com cutelos de bordo e açoites e raiva

O meu alegre terror carnal de vos pertencer.

A minha ânsia masoquista em me dar à vossa fúria,

Em ser objeto inerte e sentiente da vossa omnívora crueldade,

Dominadores, senhores, imperadores, corcéis!

Ah, torturai-me,

Rasgai-me e abri-me!

Desfeito em pedaços conscientes

Entornai-me sobre os conveses,

Espalhal-me nos mares, deixai-me

Nas praias ávidas das ilhas!

Cevai sobre mim todo o meu misticismo de vós!

Cinzelai a sangue a minh’alma

Cortai, riscai!

Ó tatuadores da minha imaginação corpórea!

Esfoladores amados da minha cama submissão!

Submetei-me como quem mata um cão a pontapés!

Fazei de mim o poço para o vosso desprezo de domínio!

Fazei de mim as vossas vítimas todas!

Como Cristo sofreu por todos os homens, quero sofrer

Por todas as vossas vítimas às vossas mãos,

Às vossas mãos calosas, sangrentas e de dedos decepados

Nos assaltos bruscos de amuradas!

Fazei de mim qualquer, cousa como se eu fosse

Arrastado - ó prazer, o beijada dor! -

Arrastado à cauda de cavalos chicoteados por vós…

Mas isto no mar, isto no ma-a-a-ar, isto no MA-A-A-AR!

Eh-eh-eh-eh-eh! Eh--.h-eh-eh-eh-eh-eh! EH-EH-EHEH-EH-EH-EH! No MA-A-A-A-AR!

Yeh eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eheh-eh-eh-eh-eh’

Grita tudo! tudo a gritar! ventos, vagas, barcos,

Marés, gáveas, piratas, a minha alma, o sangue, e o ar, e o ar!

Eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh! Yeh-eh-eh-eh-eh-eh! Tudo canta a gritar!

FIFTEEN MEN ON THE DEAD MAN’S CHEST.

YO-HO-HO AND A BOTTLE OF RUM!

Eh-eh eh-eh -eh-eh-eh! Eh-eh-eh-eh-eheh-eh! Eh eheh eh-eh-eh-eh!

Eh-lahô-lahô-laHO-O-O-ôô-lahá-á à - ààà!

AHÓ-Ó-Ó Ó Ó Ó-Ó Ó Ó Ó Ó - yyyj…

SCHOONER AHÓ-ó-ó-ó-ó-ó-ó-o-o-o - yyyy! …

Darby M’Graw-aw-aw-aw-aw-aw!

DA.RBY M’GRAW-AW AW-AW-AW-AW-AW!

FETCH A-A-AFT THE RU-U-U-U-U-UM, DARBY!

Eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh-eh eh-eh-eh!

EH-EH EH-EH-EH EH-EH EH-EH EH-EH-EH!

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH EH EH-EH!

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EFI-EH-EH-EH-EHI

EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH-EH!

Parte-se em mim qualquer coisa. O vermelho anoiteceu.

Senti demais para poder continuar a sentir.

Esgotou-se-me a alma, ficou só um eco dentro de mim.

Decresce sensivelmente a velocidade do volante.

Tiram-me um pouco as mãos dos olhos os meus sonhos.

Dentro de mim há um só vácuo, um deserto, um mar noturno.

E logo que sinto que há um mar noturno dentro de mim,

Sabe dos longes dele, nasce do seu silêncio,

Outra vez, outra vez o vasto grito antiquíssimo.

De repente, como um relâmpago de som, que não faz barulho mas ternura,

Subitamente abrangendo todo o horizonte marítimo

Úmido e sombrio marulho humano noturno,

Voz de sereia longínqua chorando, chamando,

Vem do fundo do Longe, do fundo do Mar, da alma dos Abismos,

E à tona dele, como algas, bóiam meus sonhos desfeitos…

Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy…

Schooner a Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yy…

Ah, o orvalho sobre a minha excitação!

O frescor noturno no meu oceano interior!

Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar

Cheia de enorme mistério humaníssimo das ondas noturnas

A lua sobe no horizonte

E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim.

O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo

Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção

Que fosse chamar ao meu passado

Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter.

Era na velha casa sossegada ao pé do rio

(As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar também,

Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo,

Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo

Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas.

Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto… )

Unia inexplicável ternura,

Um remorso comovido e lacrimoso,

Por todas aquelas vítimas - principalmente as crianças -

Que sonhei fazendo ao sonhar-me pirata antigo,

Emoção comovida, porque elas foram minhas vítimas;

Terna e suave, porque não o foram realmente;

Uma ternura confusa, como um vidro embaciado, azulada,

Canta velhas canções na minha pobre alma dolorida.

Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas coisas?

Que longe estou do que fui há uns momentos!

Histeria das sensações - ora estas, ora as opostas!

Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe

As cousas de acordo com esta emoção - o marulho das águas.

O marulho leve das águas do rio de encontro ao cais….

A vela passando perto do outro lado do rio,

Os montes longínquos, dum azul japonês,

As casas de Almada,

E o que há de suavidade e de infância na hora matutina!…

Uma gaivota que passa,

E a minha ternura é maior.

Mas todo este tempo não estive a reparar para nada.

Tudo isto foi uma impressão só da pele, com uma carícia

Todo este tempo não tirei os olhos do meu sonho longínquo,

Da minha casa ao pé do rio,

Da minha infância ao pé do rio,

Das janelas do meu quarto dando para o rio de noite,

E a paz do luar esparso nas águas! …

Minha velha tia, que me amava por causa do filho que perdeu…,

Minha velha tia costumava adormecer-me cantando-me

(Se bem que eu fosse já crescido demais para isso)…

Lembro-me e as lágrimas caem sobre o meu coração e lavam-no da vida,

E ergue-me uma leve brisa marítima dentro de mim.

As vezes ela cantava a “Nau Catrineta”:

Lá vai a Nau Catrineta

Por sobre as águas do mar …

E outras vezes, numa melodia muito saudosa e tão medieval,

Era a “Bela Infanta”… Relembro, e a pobre velha voz ergue-se dentro de mim

E lembra-me que pouco me lembrei dela depois, e ela amava-me tanto!

Como fui ingrato para ela - e afinal que fiz eu da vida?

Era a “Bela Infanta”… Eu fechava os olhos, e ela cantava:

Estando a Bela Infanta

No seu Jardim assentada…

Eu abria um pouco os olhos e via a janela cheia de luar

E depois fechava os olhos outra vez, e em tudo isto era feliz.

Estando a Bela Infanta

No seu jardim assentada,

Seu pente de ouro na mão,

Seus cabelos penteava

Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!

Não poder viajar pra o passado, para aquela casa e aquela afeição,

E ficar lá sempre, sempre criança e sempre contente!

Mas tudo isto foi o Passado, lanterna a uma esquina de rua velha.

Pensar isto faz frio, faz fome duma cousa que se não pode obter.

Dá-me não sei que remorso absurdo pensar nisto.

Oh turbilhão lento de sensações desencontradas!

Vertigem tênue de confusas coisas na alma!

Fúrias partidas, ternuras como carrinhos de linha com que as crianças brincam,

Grandes desabamentos de imaginação sobre os olhos dos sentidos,

Lágrimas, lágrimas inúteis,

Leves brisas de contradição roçando pela face a alma…

Evoco, por um esforço voluntário, para sair desta emoção,

Evoco, com um esforço desesperado, seco, nulo,

A canção do Grande Pirata, quando estava a morrer:

Fifteen men on the Dead Man’s Chest.

Yo-ho-ho and a bottle of rum!

Mas a canção é uma linha reta mal traçada dentro de mim…

Esforço-me e consigo chamar outra vez ante os meus olhos na alma,

Outra vez, mas através duma imaginação quase literária,

A fúria da pirataria, da chacina, o apetite, quase do paladar, do saque,

Da chacina inútil de mulheres e de crianças,

Da tortura fútil, e só para nos distrairmos, dos passageiros pobres

E a sensualidade de escangalhar e partir as coisas mais queridas dos outros,

Mas sonho isto tudo com um medo de qualquer coisa a respirar-me sobre a nuca.

Lembro-me de que seria interessante

Enforcar os filhos à vista das mães

(Mas sinto-me sem querer as mães deles),

Enterrar vivas nas ilhas desertas as crianças de quatro anos

Levando os pais em barcos até lá para verem

(Mas estremeço, lembrando-me dum filho que não tenho

e está dormindo tranqüilo em casa).

Aguilhôo uma ânsia fria dos crimes marítimos,

Duma inquisição sem a desculpa da Fé,

Crimes nem sequer com razão de ser de maldade e de fúria,

Feitos a frio, nem sequer para ferir, nem sequer para fazer mal,

Nem sequer para nos divertirmos, mas apenas para passar o tempo,

Como quem faz paciências a uma mesa de jantar de província com a toalha

Atirada pra o outro lado da mesa depois de jantar,

Só pelo suave gosto de cometer crimes abomináveis e não os achar grande coisa,

De ver sofrer até ao ponto da loucura e da morte-pela-dor mas nunca deixar chegar lá…

Mas a minha imaginação recusa-se a acompanhar-me.

Um calafrio arrepia-me.

E de repente, mais de repente do que da outra vez, de mais longe, de mais fundo,

De repente - oh pavor por todas as minhas veias! -,

Oh frio repentino da porta para o Mistério

que se abriu dentro de mim e deixou entrar uma corrente de ar!

Lembro-me de Deus, do Transcendental da vida, e de repente

A velha voz do marinheiro inglês Jim Barris com quem eu falava,

Tornada voz das ternuras misteriosas dentro de mim,

das pequenas coisas de regaço de mãe e de fita de cabelo de irmã,

Mas estupendamente vinda de além da aparência das coisas,

A Voz surda e remota tornada A Voz Absoluta, a Voz Sem Boca,

Vinda de sobre e de dentro da solidão noturna dos mares,

Chama por mim, chama por mim, chama por mim …

Vem surdamente, como se fosse suprimida e se ouvisse,

Longinquamente, como se estivesse soando noutro lugar e aqui não se pudesse ouvir,

Como um soluço abafado, uma luz que se apaga, um hálito silencioso.

De nenhum lado do espaço, de nenhum local no tempo,

O grito eterno e noturno, o sopro fundo e confuso:

Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy……

Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy……

Schooner ah-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô ô - - yy…..

Tremo com frio da alma repassando-me o corpo

E abro de repente os olhos, que não tinha fechado.

Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez!

Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!

Ei-lo a esta hora matutina em que entram os paquetes que chegam cedo.

Já não me importa o paquete que entrava. Ainda está longe.

Só o que está perto agora me lava a alma.

A minha imaginação higiênica, forte, pratica,

Preocupa-se agora apenas com as coisas modernas e úteis,

Com os navios de carga, com os paquetes e os passageiros,

Com as fortes coisas imediatas, modernas, comerciais, verdadeiras.

Abranda o seu giro dentro de mim o volante.

Maravilhosa vida marítima moderna,

Toda limpeza, máquinas e saúde!

Tudo tão bem arranjado, tão espontaneamente ajustado,

Todas as peças das máquinas, todos os navios pelos mares,

Todos os elementos da atividade comercial de exportação e importação

Tão maravilhosamente combinando-se

Que corre tudo como se fosse por leis naturais,

Nenhuma coisa esbarrando com outra!

Nada perdeu a poesia. E agora há a mais as máquinas

Com a sua poesia também, e todo o novo gênero de vida

Comercial, mundana, intelectual, sentimental,

Que a era das máquinas veio trazer para as almas.

As viagens agora são tão belas como eram dantes

E um navio será sempre belo, só porque é um navio.

Viajar ainda é viajar e o longe está sempre onde esteve

Em parte nenhuma, graças a Deus!

Os portos cheios de vapores de muitas espécies!

Pequenos, grandes, de várias cores, com várias disposições de vigias,

De tão deliciosamente tantas companhias de navegação!

Vapores nos portos, tão individuais na separação destacada dos ancoramentos!

Tão prazenteiro o seu garbo quieto de cousas comerciais que andam no mar,

No velho mar sempre o homérico, ó Ulisses!

O olhar humanitário dos faróis na distância da noite,

Ou o súbito farol próximo na noite muito escura

(“Que perto da terra que estávamos passando!”

E o som da água canta-nos ao ouvido)! …

Tudo isto hoje é como sempre foi, mas há o comércio;

E o destino comercial dos grandes vapores

Envaidece-me da minha época!

A mistura de gente a bordo dos navios de passageiros

Dá-me o orgulho moderno de viver numa época onde é tão fácil

Misturarem-se as raças, transporem-se os espaços, ver com facilidade todas as coisas,

E gozar a vida realizando um grande número de sonhos.

Limpos, regulares, modernos como um escritório com guichets em redes de arame amarelo!

Meus sentimentos agora, naturais e comedidos como, gentlemen,

São práticos, longe de desvairamentos, enchem de ar marítimo os pulmões,

Como gente perfeitamente consciente de como é higiênico respirar o ar do mar.

O dia é perfeitamente já de horas de trabalho.

Começa tudo a movimentar-se, a regularizar-se.

Com um grande prazer natural e direto percorro a alma

Todas as operações comerciais necessárias a um embarque de mercadorias.

A minha época é o carimbo que levam todas as faturas

E sinto que todas as cartas de todos os escritórios

Deviam ser endereçadas a mim.

Um conhecimento de bordo tem tanta individualidade,

E uma assinatura de comandante de navio é tão bela e moderna!

Rigor comercial do princípio e do fim das cartas:

Dear Sirs - Messieurs - Amigos e Srs.,

Yours faithfully - …nos salutations empressées…

Tudo isto não é só humano e limpo, mas também belo,

E tem ao fim um destino marítimo, um vapor onde embarquem

As mercadorias de que as cartas e as faturas tratam.

Complexidade da vida! As faturas são feitas por gente

Que tem amores, ódios, paixões políticas, às vezes crimes -

E são tão bem escritas, tão alinhadas, tão independentes de tudo isso!

Há quem olhe para uma fatura e não sinta isto.

Com certeza que tu, Cesário Verde, o sentias.

Eu é até às lágrimas que o sinto humanissimamente.

Venham dizer-me que não há poesia no comércio, nos escritórios!

Ora, ela entra por todos os poros… Neste ar marítimo respiro-a,

Por tudo isto vem a propósito dos vapores, da navegação moderna,

Porque as faturas e as cartas comerciais são o princípio da história

E os navios que levam as mercadorias pelo mar eterno são o fim.

Ah, e as viagens, as viagens de recreio, e as outras,

As viagens por mar, onde todos somos companheiros dos outros

Duma maneira especial, como se um mistério marítimo

Nos aproximasse as almas e nos tornasse um momento

Patriotas transitórios duma mesma pátria incerta,

Eternamente deslocando-se sobre a imensidade das água,,

Grandes hotéis do Infinito, oh transatlânticos meus!

Com o cosmopolitismo perfeito e total de nunca pararem num ponto

E conterem todas as espécies de trajes, de caras, de raças!

As viagens, os viajantes - tantas espécies deles!

Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente!

Tanto destino diverso que se pode dar à vida,

À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma!

Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas

E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.

A fraternidade afinal não é uma idéia revolucionária.

É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo,

E passa a achar graça ao que tem que tolerar,

E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou!

Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado

Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses.

Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes!

A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.

Pobre gente! pobre gente toda a gente!

Despeço-me desta hora no corpo deste outro navio

Que vai agora saindo. É um tramp-steamer inglês,

Muito sujo, como se fosse um navio francês,

Com um ar simpático de proletário dos mares,

E sem dúvida anunciado ontem na última página das gazetas.

Enternece-me o pobre vapor, tão humilde vai ele e tão natural.

Parece ter um certo escrúpulo não sei em quê, ser pessoa honesta,

Curnpridora duma qualquer espécie de deveres.

Lá vai ele deixando o lugar defronte do cais onde estou.

Lá vai ele tranqüilamente, passando por onde as naus estiveram

Outrora, outrora…

Para Cardiff? Para Liverpool? Para Londres? Não tem importância.

Ele faz o seu dever. Assim façamos nós o nosso. Bela vida!

Boa viagem! Boa viagem!

Boa viagem, meu pobre amigo casual, que me fizeste o favor

De levar contigo a febre e a tristeza dos meus sonhos,

E restituir-me à vida para olhar para ti e te ver passar.

Boa viagem! Boa viagem! A vida é isto…

Que aprumo tão natural, tão inevitavelmente matutino

Na tua saída do porto de Lisboa, hoje!

Tenho-te uma afeição curiosa e grata por isso…

Por isso quê? Sei lá o que é!… Vai… Passa…

Com um ligeiro estremecimento,

(T-t--t --- r ---- t----- r … )

O volante dentro de mim pára.

Passa, lento vapor, passa e não fiques…

Passa de mim, passa da minha vista,

Vai-te de dentro do meu coração,

Perde-te no Longe, no Longe, bruma de Deus,

Perde-te, segue o teu destino e deixa-me…

Eu quem sou para que chore e interrogue?

Eu quem sou para que te fale e te ame?

Eu quem sou para que me perturbe ver-te?

Larga do cais, cresce o sol, ergue-se ouro,

Luzem os telhados dos edifícios do cais,

Todo o lado de cá da cidade brilha…

Parte, deixa-me, torna-te

Primeiro o navio a meio do rio, destacado e nítido,

Depois o navio a caminho da barra, pequeno e preto

Depois ponto vago no horizonte (ó minha angústia!),

Ponto cada vez mais vago no horizonte….

Nada depois, e só eu e a minha tristeza,

E a grande cidade agora cheia de sol

E a hora real e nua como um cais já sem navios,

E o giro lento do guindaste que, como um compasso que gira,

Traça um semicírculo de não sei que emoção

No silêncio comovido da minh’alma…

ODE TRIUNFAL

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical -

Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força -

Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,

Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,

Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões

Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!

Promíscua fúria de ser parte-agente

Do rodar férreo e cosmopolita

Dos comboios estrénuos,

Da faina transportadora-de-cargas dos navios,

Do giro lúbrico e lento dos guindastes,

Do tumulto disciplinado das fábricas,

E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!

Horas europeias, produtoras, entaladas

Entre maquinismos e afazeres úteis!

Grandes cidades paradas nos cafés,

Nos cafés - oásis de inutilidades ruidosas

Onde se cristalizam e se precipitam

Os rumores e os gestos do Útil

E as rodas, e as rodas-dentadas e as chumaceiras do Progressivo!

Nova Minerva sem-alma dos cais e das gares!

Novos entusiasmos de estatura do Momento!

Quilhas de chapas de ferro sorrindo encostadas às docas,

Ou a seco, erguidas, nos planos-inclinados dos portos!

Actividade internacional, transatlântica, Canadian-Pacific!

Luzes e febris perdas de tempo nos bares, nos hotéis,

Nos Longchamps e nos Derbies e nos Ascots,

E Piccadillies e Avenues de L’Opéra que entram

Pela minh’alma dentro!

Hé-lá as ruas, hé-lá as praças, hé-lá-hô la foule!

Tudo o que passa, tudo o que pára às montras!

Comerciantes; vários; escrocs exageradamente bem-vestidos;

Membros evidentes de clubes aristocráticos;

Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes

E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete

De algibeira a algibeira!

Tudo o que passa, tudo o que passa e nunca passa!

Presença demasiadamente acentuada das cocotes

Banalidade interessante (e quem sabe o quê por dentro?)

Das burguesinhas, mãe e filha geralmente,

Que andam na rua com um fim qualquer;

A graça feminil e falsa dos pederastas que passam, lentos;

E toda a gente simplesmente elegante que passeia e se mostra

E afinal tem alma lá dentro!

(Ah, como eu desejaria ser o souteneur disto tudo!)

A maravilhosa beleza das corrupções políticas,

Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,

Agressões políticas nas ruas,

E de vez em quando o cometa dum regicídio

Que ilumina de Prodígio e Fanfarra os céus

Usuais e lúcidos da Civilização quotidiana!

Notícias desmentidas dos jornais,

Artigos políticos insinceramente sinceros,

Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes -

Duas colunas deles passando para a segunda página!

O cheiro fresco a tinta de tipografia!

Os cartazes postos há pouco, molhados!

Vients-de-paraître amarelos como uma cinta branca!

Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,

Como eu vos amo de todas as maneiras,

Com os olhos e com os ouvidos e com o olfacto

E com o tacto (o que palpar-vos representa para mim!)

E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!

Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!

Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!

Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!

Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,

Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,

Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!

Ó fazendas nas montras! Ó manequins! Ó últimos figurinos!

Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!

Olá grandes armazéns com várias secções!

Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!

Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!

Eh, cimento armado, beton de cimento, novos processos!

Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!

Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.

Amo-vos carnivoramente.

Pervertidamente e enroscando a minha vista

Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,

Ó coisas todas modernas,

Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parks,

Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes -

Na minha mente turbulenta e encandescida

Possuo-vos como a uma mulher bela,

Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,

Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!

Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!

Eh-lá-hô recomposições ministeriais!

Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,

Orçamentos falsificados!

(Um orçamento é tão natural como uma árvore

E um parlamento tão belo como uma borboleta).

Eh-lá o interesse por tudo na vida,

Porque tudo é a vida, desde os brilhantes nas montras

Até à noite ponte misteriosa entre os astros

E o mar antigo e solene, lavando as costas

E sendo misericordiosamente o mesmo

Que era quando Platão era realmente Platão

Na sua presença real e na sua carne com a alma dentro,

E falava com Aristóteles, que havia de não ser discípulo dele.

Eu podia morrer triturado por um motor

Com o sentimento de deliciosa entrega duma mulher possuída.

Atirem-me para dentro das fornalhas!

Metam-me debaixo dos comboios!

Espanquem-me a bordo de navios!

Masoquismo através de maquinismos!

Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,

Morder entre dentes o teu cap de duas cores!

(Ser tão alto que não pudesse entrar por nenhuma porta!

Ah, olhar é em mim uma perversão sexual!)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!

Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas.

E ser levado da rua cheio de sangue

Sem ninguém saber quem eu sou!

Ó tramways, funiculares, metropolitanos,

Roçai-vos por mim até ao espasmo!

Hilla! hilla! hilla-hô!

Dai-me gargalhadas em plena cara,

Ó automóveis apinhados de pândegos e de…,

Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,

Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como quereria!

Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!

Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,

As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,

Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto

E os gestos que faz quando ninguém pode ver!

Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,

Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome

Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos

Em crispações absurdas em pleno meio das turbas

Nas ruas cheias de encontrões!

Ah, e a gente ordinária e suja, que parece sempre a mesma,

Que emprega palavrões como palavras usuais,

Cujos filhos roubam às portas das mercearias

E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! -

Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada.

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa

Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.

Maravilhosamente gente humana que vive como os cães

Que está abaixo de todos os sistemas morais,

Para quem nenhuma religião foi feita,

Nenhuma arte criada,

Nenhuma política destinada para eles!

Como eu vos amo a todos, porque sois assim,

Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,

Inatingíveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa

O burro anda à roda, anda à roda,

E o mistério do mundo é do tamanho disto.

Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.

A luz do sol abafa o silêncio das esferas

E havemos todos de morrer,

Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,

Pinheirais onde a minha infância era outra coisa

Do que eu sou hoje…)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!

Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.

E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios

De todas as partes do mundo,

De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,

Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.

Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!

Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!

Eh-lá desabamentos de galerias de minas!

Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!

Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,

Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,

Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,

A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,

E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?

Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,

O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,

O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,

O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes

Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,

Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,

Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,

Engenhos brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!

Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!

Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!

Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!

Eia todo o passado dentro do presente!

Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!

Eia! eia! eia!

Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!

Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!

Nem sei que existo para dentro.