O teu silêncio é um leque –

Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,

Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

 

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...

Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...

O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,

E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

 

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...

Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...

Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir.

O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem....

 

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,

Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,

Endireitar à força a curva dos horizontes,

E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

 

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...

Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã – como nos desalegra!...

Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem

O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

 

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...

Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...

A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,

E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

 

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...

Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...

Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia batismal,

Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema – Vitória!

 

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma

Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...

Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma.

Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

 

 

04/07/1913 (Exílio, n.º1, abril de 1916)

CHUVA OBLÍQUA

 

Poemas Intersecionistas

 

I

 

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

 

O porto que sonho é sombrio e pálido

E esta paisagem é cheia de sol deste lado...

Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio

E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

 

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...

O vulto do cais é a estrada nítida e calma

Que se levanta e se ergue como um muro,

E os navios passam por dentro dos troncos das árvores

Com uma horizontalidade vertical,

E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

 

Não sei quem me sonho...

Súbito toda a água do mar do porto é transparente

E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,

Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto.

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa

Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem

E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,

E passa para o outro lado da minha alma...

 

II

 

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,

E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

 

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso.

E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

 

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes

Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça

E sente-se chiar a água no facto de haver coro...

 

A missa é um automóvel que passa

Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...

Súbito vento sacode em esplendor maior

A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo

Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe

Com o som de rodas de automóvel...

 

E apagam-se as luzes da igreja

Na chuva que cessa...

 

 

III

 

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...

Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente

E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

 

Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena

Ser o perfil do rei Cheops...

De repente paro...

Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro

E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

 

Ouço a Esfinge rir por dentro

O som da minha pena a correr no papel...

Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,

Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,

E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve

Jaz o cadáver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos,

E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo

E uma alegria de barcos embandeirados erra

Numa diagonal difusa

Entre mim e o que eu penso...

 

Funerais do rei Cheops em ouro velho e Mim!...

 

 

IV

 

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...

As paredes estão na Andaluzia

E há danças sensuais no brilho fixo da luz...

 

De repente todo o espaço para...

Para, escorrega, desembrulha-se...,

E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,

Abrem mãos brancas janelas secretas

E há ramos de violetas caindo

De haver uma noite de primavera lá fora

Sobre o eu estar de olhos fechados...

 

 

V

 

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carrossel

Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...

Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,

E as luzes todas da feira fazem ruído dos muros do quintal...

Ranchos de raparigas de bilha à cabeça

Que passam lá fora cheias de estar sob o sol,

Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,

Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,

E os dois grupos encontram-se e penetram-se

Até formarem só um que é os dois...

A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,

E a noite que pega na feira e a levanta no ar,

Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,

Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,

Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,

E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira,

E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

 

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira

E, misturado, o pó das duas realidades cai

Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos

Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...

Pó de ouro branco e negro sobre os meus dedos...

As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,

Sozinha e contente como o dia de hoje...

 

 

VI

 

O maestro sacode a batuta,

E lânguida e triste a música rompe...

 

Lembra-me a minha infância, aquele dia

Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal,

Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado

O deslizar de um cão verde, e do outro lado

Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...

 

Prossegue a música, e eis na minha infância

De repente entre mim e o maestro, muro branco,

Vai e vem a bola, ora um cão verde,

Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

 

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância

Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música

Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal

Vestida de cão verde, tornando-se jockey amarelo...

(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

 

Atiro-a de encontro à minha infância e ela

Atravessa o teatro todo que está aos meus pés

A brincar com um jockey amarelo e um cão verde

E um cavalo azul que aparece por cima do muro

Do meu quintal... E a música atira com bolas

À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos

De batuta e rotações confusas de cães verdes

E cavalos azuis e jockeys amarelos...

Todo o teatro é um muro branco de música

Por onde um cão verde corre atrás da minha saudade

Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

 

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,

Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa

Com orquestras a tocar música,

Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei

E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

 

E a música cessa como um muro que desaba,

A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,

E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se

Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,

E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,

Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

 

8 de março de 1914

 

 

(Orpheu, n.º2, abril-Maio-Junho de 1915)

 

PASSOS DA CRUZ

 

I

 

Esqueço-me das horas transviadas...

O outono mora mágoas nos outeiros

E põe um roxo vago nos ribeiros...

Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

 

Aconteceu-me esta paisagem, fadas

De sepulcros a orgíaco... Trigueiros

Os céus da tua face, e os derradeiros

Tons do poente segredam nas arcadas...

 

No claustro sequestrando a lucidez

Um espasmo apagado em ódio à ânsia

Põe dias de ilhas vistas do convés

 

No meu cansaço perdido entre os gelos,

E a cor do outono é um funeral de apelos

Pela estrada da minha dissonância...

 

 

II

 

Há um poeta em mim que Deus me disse...

A primavera esquece nos barrancos

As grinaldas que trouxe dos arrancos

Da sua efémera e espectral ledice...

 

Pelo prado orvalhado a meninice

Faz soar a alegria os seus tamancos...

Pobre de anseios teu ficar nos bancos

Olhando a hora como quem sorrisse...

 

Florir o dia a capitéis de Luz...

Violinos do silêncio enternecidos...

Tédio onde o só ter tédio nos seduz...

 

Minha alma beija o quadro que pintou...

Sento-me ao pé dos séculos perdidos

E cismo o seu perfil de inércia e voo...

 

 

III

 

Adagas cujas joias velhas galas...

Opalesci amar-me entre mãos raras,

E, fluido a febres entre um lembrar de aras,

O convés sem ninguém cheio de malas...

 

O íntimo silêncio das opalas

Conduz orientes até joias caras,

E o meu anseio vai nas rotas claras

De um grande sonho cheio de ócio e salas.  

 

Passa o cortejo imperial, e ao longe

O povo só pelo cessar das lanças

Sabe que passa o seu tirano, e estruge

 

Sua ovação, e erguem as crianças...

Mas no teclado as tuas mãos pararam

E indefinidamente repousaram...

 

 

IV

 

Ó tocador de harpa, se eu beijasse

Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,

E, beijando-o, descesse plos desvãos

Do sonho, até que enfim eu o encontrasse

 

Tornado Puro Gesto, gesto-face

Da medalha sinistra – reis cristãos

Ajoelhando, inimigos e irmãos,

Quando processional o andor passasse!...

 

Teu gesto que arrepanha e se extasia...

O gesto completo, lua fria

Subindo, e em baixo, negros, os juncais...

 

Caverna em estalactites o teu gesto...

Não poder eu prendê-lo, fazer mais

Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto.

 

 

V

 

Ténue, roçando sedas pelas horas,

Teu vulto ciciante passa e esquece,

E dia a dia adias para prece

O rito cujo ritmo só decoras...

 

Um mar longínquo e próximo humedece

Teus lábios onde, mais que em ti, descoras...

E, alada, leve, sobre a dor que choras,

Sem qu’rer saber de ti a tarde desce...

 

Erra no anteluar a voz dos tanques...

Na quinta imensa gorgolejam águas,

Na treva vaga ao meu ter dor estanques...

 

Meu império é das horas desiguais,

E dei meu gesto lasso às algas mágoas

Que há para além de sermos outonais...

 

 

VI

 

Venho de longe e trago no perfil,

Em forma nevoenta e afastada,

O perfil de outro ser que desagrada

Ao meu atual recorte humano e vil.

 

Outrora fui talvez, não Boabdil,

Mas o seu mero último olhar, da estrada

Dado ao deixado vulto de Granada,

Recorte frio sob o unido anil...

 

Hoje sou a saudade imperial

Do que já na distância de mim vi...

Eu próprio sou aquilo que perdi...

 

E nesta estrada para Desigual

Florem em esguia glória marginal

Os girassóis do império que morri...

 

 

VII

 

Fosse eu apenas, não sei onde ou como,

Uma coisa existente sem viver,

Noite de Vida sem amanhecer

Entre as sirtes do meu doirado assomo...

 

Fada maliciosa ou incerto gnomo

Fadado houvesse de não pertencer

Meu intuito gloriola com ter

A árvore do meu uso o único pomo...

 

Fosse eu uma metáfora somente

Escrita nalgum livro insubsistente

Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

 

Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,

Morrendo entre bandeiras desfraldadas

Na última tarde de um império em chamas...

 

 

VIII

 

Ignorado ficasse o meu destino

Entre pálios (e a ponte sempre à vista),

E anel concluso a chispas de ametista

A frase falha do meu póstumo hino...

 

Florescesse em meu glabro desatino

O himeneu das escadas da conquista

Cuja preguiça, arrecadada, dista

Almas do meu impulso cristalino...

 

Meus ócios ricos assim fossem, vilas

Pelo campo romano, e a toga traça

No meu soslaio anónimas (desgraça

 

A vida) curvas sob mãos intranquilas...

E tudo sem Cleópatra teria

Findado perto de onde raia o dia...

 

 

IX

 

Meu coração é um pórtico partido

Dando excessivamente sobre o mar.

Vejo em minha alma as velas vãs passar

E cada vela passa num sentido.

 

Um soslaio de sombras e ruído

Na transparente solidão do ar

Evoca estrelas sobre a noite estar

Em afastados céus o pórtico ido...

 

E em palmares de Antilhas entrevistas

Através de, com mãos eis apartados

Os sonhos, cortinados de ametistas,

 

Imperfeito o sabor de compensando

O grande espaço entre os troféus alçados

Ao centro do triunfo em ruído e bando...

 

 

X

 

Aconteceu-me do alto do infinito

Esta vida. Através de nevoeiros,

Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,

Vim ganhando, e através estranhos ritos

 

De sombra e luz ocasional, e gritos

Vagos ao longe, e assomos passageiros

De saudade incógnita, luzeiros

De divino, este ser fosco e proscrito...

 

Caiu chuva em passados que fui eu.

Houve planícies de céu baixo e neve

Nalguma coisa de alma do que é meu.

 

Narrei-me à sombra e não me achei sentido.

Hoje sei-me o deserto onde Deus teve

Outrora a sua capital de olvido...

 

 

XI

 

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela

E oculta mão colora alguém em mim.

Pus a alma no nexo de perdê-la

E o meu princípio floresceu em Fim.

 

Que importa o tédio que dentro em mim gela,

E o leve outono, e as galas, e o marfim,

E a congruência da alma que se vela

Com os sonhados pálios de cetim?

 

Disperso... E a hora como um leque fecha-se...

Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...

O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se...

 

E, abrindo as asas sobre Renovar,

A erma sombra do voo começado

Pestaneja no campo abandonado...

 

 

XII

 

Ela ia, tranquila pastorinha,

Pela estrada da minha imperfeição.

Seguia-a, como um gesto de perdão,

O seu rebanho, a saudade minha...

 

«Em longes terras hás de ser rainha»

Um dia lhe disseram, mas em vão...

Seu vulto perde-se na escuridão...

Só sua sombra ante meus pés caminha...

 

Deus te dê lírios em vez desta hora,

E em terras longe do que eu hoje sinto

Serás, rainha não, mas só pastora –

 

Só sempre a mesma pastorinha a ir,

E eu serei teu regresso, esse indistinto

Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...

 

 

XIII

 

Emissário de um rei desconhecido

Eu cumpro informes instruções de além,

E as bruscas frases que aos meus lábios vêm,

Soam-me a um outro e anómalo sentido...

 

Inconscientemente me divido

Entre mim e a missão que o meu ser tem,

E a glória do meu Rei dá-me o desdém

Por este humano povo entre quem lido...

 

Não sei se existe o Rei que me mandou.

Minha missão será eu a esquecer,

Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

 

Mas há! Eu sinto-me altas tradições

De antes de tempo e espaço e vida e ser...

Já viram Deus as minhas sensações...

 

 

XIV

 

Como uma voz de fonte que cessasse

(E uns para os outros nossos vãos olhares

Se admiraram), pra além dos meus palmares

De sonho, a voz que do meu tédio nasce

 

Parou... Apareceu já sem disfarce

De música longínqua, asas nos ares,

O mistério silente como os mares,

Quando morreu o vento e a calma pasce...

 

A paisagem longínqua só existe

Para haver nela um silêncio em descida

Pra o mistério, silêncio a que a hora assiste...

 

E, perto ou longe, grande lago mudo,

O mundo, o informe mundo onde há a vida...

E Deus, a Grande Ogiva ao fim de tudo...

 

 

(Centauro, n.º1, outubro-novembro-dezembro de 1916)

 

EPISÓDIOS

 

A MÚMIA

 

I

 

Andei léguas de sombra

Dentro em meu pensamento.

Floresceu às avessas

Meu ócio com sem-nexo,

E apagaram-me as lâmpadas

Na alcova cambaleante.

 

Tudo prestes se volve

Um deserto macio

Visto pelo meu tato

Dos veludos da alcova,

Não pela minha vista,

 

Há um oásis no Incerto

E, como uma suspeita

De luz por não-há-frinchas,

Passa uma caravana.

 

Esquece-me de súbito

Como é o espaço, e o tempo

Em vez de horizontal

É vertical.

 

        A alcova

Desce não sei por onde

Até não me encontrar.

Ascende um leve fumo

Das minhas sensações.

Deixo de me incluir

Dentro de mim. Não há

Cá-dentro nem lá-fora.

 

E o deserto está agora

Virado para baixo.

 

A noção de mover-me

Esqueceu-se do meu nome.

 

Na alma meu corpo pesa-me.

Sinto-me um reposteiro

Pendurado na sala

Onde jaz alguém morto.

 

Qualquer coisa caiu

E tiniu no infinito.

 

 

II

 

Na sombra Cleópatra jaz morta.

Chove.

 

Embandeiraram o barco de maneira errada.

Chove sempre.

 

Para que olhas tu a cidade longínqua?

Tua alma é a cidade longínqua.

Chove friamente.

 

E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto –

Todos nós embalamos ao colo um filho morto.

Chove, chove.

 

O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,

Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.

Porque é que chove?

 

 

III

 

De quem é o olhar

Que espreita por meus olhos?

Quando penso que vejo,

Quem continua vendo

Enquanto estou pensando?

Por que caminhos seguem,

Não os meus tristes passos,

Mas a realidade

De eu ter passos comigo?

 

Às vezes, na penumbra

Do meu quarto, quando eu

Para mim próprio mesmo

Em alma mal existo,

Toma um outro sentido

Em mim o Universo –

É uma nódoa esbatida

De eu ser consciente sobre

Minha ideia das coisas.

 

Se acenderem as velas

E não houver apenas

A vaga luz de fora –

Não sei que candeeiro

Aceso onde na rua –

Terei foscos desejos

De nunca haver mais nada

No Universo e na Vida

De que o obscuro momento

Que é minha vida agora

 

Um momento afluente

Dum rio sempre a ir

Esquecer-se de ser,

Espaço misterioso

Entre espaços desertos

Cujo sentido é nulo

E sem ser nada a nada.

E assim a hora passa

Metafisicamente.

 

 

IV

 

As minhas ansiedades caem

Por uma escada abaixo.

Os meus desejos balouçam-se

Em meio de um jardim vertical.

 

Na Múmia a posição é absolutamente exata.

 

Música longínqua,

Música excessivamente longínqua,

Para que a Vida passe

E colher esqueça aos gestos.

 

 

V

 

Porque abrem as coisas alas para eu passar?

Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.

Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara

Mas há sempre coisas atrás de mim.

Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.

Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.

Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.

Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.

 

Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis

A porta abrindo-se conscientemente

Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.

De onde é que estão olhando para mim?

Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?

Quem espreita de tudo?

 

As arestas fitam-me.

Sorriem realmente as paredes lisas.

 

Sensação de ser só a minha espinha.

 

As espadas.

 

 

(Portugal Futurista, n.º1, 1917)

FICÇÕES DO INTERLÚDIO

 

I

 

PLENILÚNIO

 

As horas pela alameda

Arrastam vestes de seda,

 

Vestes de seda sonhada

Pela alameda alongada

 

Sob o azular do luar...

E ouve-se no ar a expirar –

 

A expirar mas nunca expira –

Uma flauta que delira,

 

Que é mais a ideia de ouvi-la

Que ouvi-la quase tranquila

 

Pelo ar a ondear e a ir...

 

Silêncio a tremeluzir...

 

 

II

 

SAUDADE DADA

 

Em horas inda louras, lindas

Clorindas e Belindas, brandas,

Brincam no tempo das berlindas,

As vindas vendo das varandas.

De onde ouvem vir a rir as vindas

Fitam a fio as frias bandas.

 

Mas em torno à tarde se entorna

A atordoar o ar que arde

Que a eterna tarde já não torna!

E em tom de atoarda todo o alarde

Do adornado ardor transtorna

No ar de torpor da tarda tarde.

 

E  há nevoentos desencantos

Dos encantos dos pensamentos

Nos santos lentos dos recantos

Dos bentos cantos dos conventos...

Prantos de intentos, lentos, tantos

Que encantam os atentos ventos.

 

 

III

 

PIERROT BÊBEDO

 

Nas ruas da feira,

Da feira deserta,

Só a lua cheia

Branqueia e clareia

As ruas da feira

Na noite entreaberta.

 

Só a lua alva

Branqueia e clareia

A paisagem calva

De abandono e alva

Alegria alheia.

 

Bêbeda branqueia

Como pela areia

Nas ruas da feira.

Da feira deserta,

Na noite já cheia

De  sombra  entreaberta.

 

A lua branqueia

Nas ruas da feira

Deserta e incerta...

 

 

IV

 

MINUETE INVISÍVEL

 

Elas são vaporosas,

Pálidas sombras, as rosas

Nadas da hora lunar...

 

Vêm, aéreas, dançar

Com perfumes soltos

Entre os canteiros e os buxos...

Chora no som dos repuxos

O ritmo que há nos seus vultos...

 

Passam e agitam a brisa...

Pálida, a pompa indecisa

Da sua flébil demora

Paira em auréola à hora...

 

Passam nos ritmos da sombra...

Ora é uma folha que tomba,

Ora uma brisa que treme

Sua leveza solene...

 

E assim vão indo, delindo

Seu perfil único e lindo,

Seu vulto feito de todas,

Nas alamedas, em rodas,

No jardim lívido e frio...

 

Passam sozinhas, a fio,

Como um fumo indo, a rarear,

Pelo ar longínquo e vazio,

Sob o, disperso pelo ar,

Pálido pálio lunar...

 

 

V

 

HIEMAL

 

Baladas de uma outra terra, aliadas

Às saudades das fadas, amadas por gnomos idos,

Retinem lívidas ainda aos ouvidos

 

Dos luares das altas noites aladas

Pelos canais barcas erradas

Segredam-se rumos descridos...

 

E tresloucadas ou casadas com o som das baladas,

As fadas são belas, e as estrelas

São delas... Ei-las alheadas...

 

E são fumos os rumos das barcas sonhadas,

Nos canais fatais iguais de criadas,

As barcas parcas das fadas,

Das fadas aladas e hiemais

E caladas...

 

Toadas afastadas, irreais, de baladas...

Ais...

 

 

(Portugal Futurista, n.º1, 1917)

OUTROS POEMAS

 

 

Não sei, ama, onde era,

Nunca o saberei...

Sei que era primavera

E o jardim do rei...

(Filha, quem o soubera!...).

 

Que azul tão azul tinha

Ali o azul do céu!

Se eu não era a rainha,

Porque era tudo meu?

(Filha, quem o adivinha?)

 

E o jardim tinha flores

De que não me sei lembrar...

Flores de tantas cores...

Penso e fico a chorar...

(Filha, os sonhos são dores...).

 

Qualquer dia viria

Qualquer coisa a fazer

Toda aquela alegria

Mais alegria nascer

(Filha, o resto é morrer...).

 

Conta-me contos, ama...

Todos os contos são

Esse dia, e jardim e a dama

Que eu fui nessa solidão...

 

 

23/05/1916


 

Há no firmamento

Um frio lunar.

Um vento nevoento

Vem de ver o mar.

 

Quase maresia

A hora interroga,

E uma angústia fria

Indistinta voga.

 

Não sei o que faça,

Não sei o que penso,

O frio não passa

E o tédio é imenso.

 

Não tenho sentido,

Alma ou intenção...

Stou no meu olvido...

Dorme, coração...

 

 

11/03/1917


 

Súbita mão de algum fantasma oculto

Entre as dobras da noite e do meu sono

Sacode-me e eu acordo, e no abandono

Da noite não enxergo gesto ou vulto.

 

Mas um terror antigo, que insepulto

Trago no coração, como de um trono

Desce e se afirma meu senhor e dono

Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

 

E eu sinto a minha vida de repente

Presa por uma corda de Inconsciente

A qualquer mão noturna que me guia.

 

Sinto que sou ninguém salvo uma sombra

De um vulto que não vejo e que me assombra,

E em nada existo como a treva fria.

 

 

14/03/1917


O sol às casas, como a montes,

Vagamente doura.

Na cidade sem horizontes

Uma tristeza loura.

 

Com a sombra da tarde desce

E um pouco dói

Porque quanto é tarde

Tudo quanto foi.

 

Nesta hora mais que em outra choro

O que perdi.

Em cinza e ouro o rememoro

E nunca o vi.

 

Felicidade por nascer,

Mágoa a acabar,

Ânsia de só aquilo ser

Que há de ficar –

 

Sussurro sem que se ouça, palma

Da isenção.

Ó tarde, fica noite, e alma

Tenha perdão.

 

 

25/12/1918


 

Onde pus a esperança, as rosas

Murcharam logo.

Na casa, onde fui habitar,

O jardim, que eu amei por ser

Ali o melhor lugar,

E por quem essa casa amei –

Decerto o achei,

E, quando o tive, sem razão pra o ter.

 

Onde pus a feição, secou

A fonte logo.

Da floresta, que fui buscar

Por essa fonte ali tecer

Seu canto de rezar –

Quando na sombra penetrei,

Só o lugar achei

Da fonte seca, inútil de se ter.

 

Pra quê, pois, afeição, sperança,

Se tê-las sabe a não as ter?

Que as uso, a causa pra as usar,

Se tê-las sabe a não as ter?

Crer ou amar –

Até à raiz, do peito onde alberguei

Tais sonhos e os gozei,

O vento arranque e leve onde quiser

E eu os não possa achar!

 

 

16/02/1920


À MEMÓRIA DO PRESIDENTE-REI SIDÓNIO PAIS

 

Longe da fama e das espadas

Alheio às turbas ele dorme.

Em torno há claustros ou arcadas?

          Só a noite enorme.

 

Porque para ele, já virado

Para o lado onde está só Deus,

São mais que Sombra e que Passado

          A terra e os céus.

 

Ali o gesto, a astúcia, a lida,

São para ele, sem as ver,

Vácuo de ação sombra perdida,

          Sopro sem ser.

 

Só com sua alma e com a treva,

A alma gentil que nos amou

Inda esse amor e ardor conserva?

          Tudo acabou?

 

No mistério onde a Morte some

Aquilo a que a alma chama a vida.

Que resta dele a nós – só o nome

          E a fé perdida?

 

Se Deus o havia de levar,

Para que foi que no-lo trouxe –

Cavaleiro leal, do olhar

          Altivo e doce?

 

Soldado-rei que oculta sorte

Como em braços da Pátria ergueu,

E passou como o vento norte

          Sob o ermo céu.

 

Mas a alma acesa não aceita

Essa morte absoluta, o nada

De quem foi Pátria, e fé eleita,

          E ungida espada.

 

Se o amor crê que a Morte mente

Quando a quem quer leva de novo

Quão mais crê o Rei ainda existente

          O amor de um povo!

 

Quem ele foi sabe-o a Sorte.

Sabe-o o Mistério e a sua lei.

A Vida fê-lo herói, e a Morte

          O sagrou Rei!

 

Não é com fé que nós não cremos

Que ele não morra inteiramente.

Ah, sobrevive! Inda o teremos

          Em nossa frente.

 

No oculto para o nosso olhar,

No visível à nossa alma,

Inda sorri com o antigo ar

          De força calma.

 

Ainda de longe nos anima,

Indo na alma nos conduz –

Gládio de fé erguido acima

          Da nossa cruz!

 

Nada sabemos do que oculta

O véu igual de noite e dia.

Mesmo ante a Morte a Fé exulta:

          Chora e confia.

 

Apraz no que em nós quer que seja

Qual Deus quis nosso querer tosco.

Crer que ele vela, benfazeja

          Sombra connosco.

 

Não sai da nossa alma a fé

De que, alhures que o mundo e o fado,

Ele inda pensa em nós e é

          O bem-amado.

 

Tenhamos fé, porque ele foi.

Deus não quer mal a quem o deu.

Não passa como o vento o herói

          Sob o ermo céu.

 

E amanhã, quando queira a Sorte,

Quando findar a expiação,

Ressurreto da falsa morte,

          Ele já não.

 

Mas a ânsia nossa que encarnara,

A alma de nós de que foi braço,

Tornará, nova forma clara,

          Ao tempo e ao espaço.

 

Tornará feito qualquer outro,

Qualquer coisa de nós com ele;

Porque o nome do herói morto

          Inda compele;

 

Inda comanda, e a armada ida

Para os campos da Redenção,

Às vezes leva à frente, erguida

          Spada, a Ilusão.

 

E um raio só do ardente amor,

Que emana só do nome seu,

Dê sangue a um braço vingador,

          Se esmoreceu.

 

Com mais armas que com Verdade

Combate a alma por quem amo.

É lenha só a Realidade:

          A fé é a chama.

 

Mas ai, que a fé já não tem forma

Na matéria e na cor da Vida.

E, pensada, em dor se transforma

          A fé perdida!

 

Pra que deu Deus a confiança

A quem não ia dar o bem?

Morgado da nossa esperança,

          A Morte o tem!

 

Mas basta o nome e basta a glória

Para ele estar connosco, e ser

Carnal presença de memória

          A amanhecer;

 

Spectro real feito de nós,

Da nossa saudade e ânsia,

Que fala com oculta voz

          Na alma, a distância;

 

E a nossa própria dor se torna

Uma vaga ânsia, um sperar vago,

Como a erma brisa que transtorna

          Um ermo lago.

 

Não mente a alma ao coração.

Se Deus o deu, Deus nos amou.

Porque ele pôde ser, Deus não

          Nos desprezou.

 

Rei-nato, a sua realeza,

Por não podê-la herdar dos seus

Avós, com mística inteireza

          A herdou de Deus;

 

E, por direta consonância

Com a divina intervenção,

Uma hora ergueu-nos alta a ânsia

          De salvação.

 

Toldou-o a Sorte que o trouxera

Outra vez com noturno véu.

Deus pra que no-lo deu, se era

          Pra o tornar seu?

 

Ah, tenhamos mais fé que a esp’rança!

Mais vivo que nós somos, fita

Do Abismo onde não há mudança

          A terra aflita.

 

E se assim é, se, desde o Assombro

Aonde a Morte as vidas leva,

Vê esta pátria, escombro a escombro,

          Cair na treva;

 

Se algum poder do que tivera

Sua alma, que não vemos, tem,

De longe ou perto – por que espera?

          Por que não vem?

 

Em nova forma ou novo alento,

Que alheio pulso ou alma tome,

Regresse como um pensamento,

          Alma de um nome!

 

Regresse sem que a gente o veja,

Regresse só que a gente o sinta –

Impulso, luz, visão que reja

          E a alma pressinta!

 

E qualquer gládio adormecido,

Servo do oculto impulso, acorde,

E um novo herói se sinta erguido

          Porque o recorde!

 

Governa o servo e o jogral.

O que íamos a ser morreu.

Não teve aurora a matinal

          Strela do céu.

 

Vivemos só de recordar.

Na nossa alma entristecida

Há um som de reza a invocar

          A morta vida;

 

E um místico vislumbre chama

O que, no plaino trespassado,

Vive ainda em nós, longínqua chama –

          O DESEJADO.

 

Sim, só há a esp’rança, como aquela

– E quem sabe se a mesma? – quando

Se foi de Avis a última estrela

          No campo infando.

 

Novo Alcácer Quibir na noite!

Novo castigo e mal do Fado!

Por que pecado novo o açoite

          Assim é dado?

 

Só resta a fé, que a sua memória

Nos nossos corações gravou,

Que Deus não dá paga ilusória

          A quem amou.

 

Flor alta do paul da grei,

Antemanhã da Redenção,

Nele uma hora encarnou El-Rei

          Dom Sebastião.

 

O sopro de ânsia que nos leva

A querer ser o que já fomos,

E em nós vem como em uma treva,

          Em vãos assomos,

 

Bater à porta ao nosso gesto,

Fazer apelo no nosso braço,

Lembrar ao sangue nosso o doesto

          E o vil cansaço,

 

Nele um momento clareou,

A noite antiga se seguiu,

Mas que segredo é que ficou

          No escuro frio?

 

Que memória, que luz passada

Projeta, sombra, no futuro,

Dá na alma? Que longínqua espada

          Brilha no escuro?

 

Que nova luz virá raiar

Da noite em que jazemos vis?

Ó sombra amada, vem tornar

          A ânsia feliz.

 

Quem quer que sejas, lá no abismo

Onde a morte a vida conduz,

Sê para nós um misticismo

          A vaga luz

 

Com que a noite erma inda vazia

No frio alvor da antemanhã

Sente, da esp’rança que há no dia,

          Que não é vã.

 

E amanhã, quando houver a Hora,

Sendo Deus pago, Deus dirá

Nova palavra redentora

          Ao mal que há.

 

E um novo verbo ocidental

Encarnado em heroísmo e glória,

Traga por seu broquel real

          Tua memória!

 

Precursor do que não sabemos,

Passado de um futuro a abrir

No assombro de portais extremos

          Por descobrir,

 

Sê estrada, gládio, fé, fanal,

Pendão de glória em glória erguido!

Tornas possível Portugal

          Por teres sido!

 

Não era extinta a antiga chama

Se tu e o amor puderam ser.

Entre clarins te a glória aclama,

          Morto a vencer!

 

E, porque foste, confiando

EM QUEM SERÁ porque tu foste,

Ergamos a alma, e com o infando

          Sorrindo arroste,

 

Até que Deus o laço solte

Que prende à terra a asa que somos,

E a curva novamente volte

          Ao que já fomos,

 

E no ar de bruma que estremece

(Clarim longínquo matinal!)

O DESEJADO enfim regresse

          A Portugal!

 

(Ação, órgão do Núcleo de Ação Nacional, de 27/02/1920)

 


Ah, quanta vez, na hora suave

          Em que me esqueço,

Vejo passar um voo de ave

          E me entristeço!

 

Porque é ligeiro, leve, certo

          No ar de amavio?

Porque vai sob o céu aberto

          Sem um desvio?

 

Porque ter asas simboliza

          A liberdade

Que a vida nega e a alma precisa?

          Sei que me invade

 

Um horror de me ter que cobre

          Como uma cheia

Meu coração, e entorna sobre

          Minha alma alheia

 

Um desejo, não de ser ave,

          Mas de poder

Ter não sei quê do voo suave

          Dentro em meu ser.

 

 

05/08/1921


 

Feliz dia para quem é

          O igual do dia,

E no exterior azul que vê

          Simples confia!

 

O azul do céu faz pena a quem

          Não pode ser

Na alma um azul do céu também

          Com que viver

 

Ah, e se o verde com que estão

          Os montes quedos

Pudesse haver no coração

          E em seus segredos!

 

Mas vejo quem devia estar

          Igual do dia

Insciente e sem querer passar.

          Ah, a ironia

 

De só sentir a terra e o céu

          Tão belos ser

Quem de si sente que perdeu

          A alma pra os ter!

 

 

05/08/1921


No entardecer da terra

O sopro do longo outono

Amareleceu o chão.

Um vago vento erra,

Como um sonho mau num sono,

Na lívida solidão.

 

Soergue as folhas, e pousa

As folhas, e volve, e revolve,

E esvai-se inda outra vez.

Mas a folha não repousa,

E o vento lívido volve

E expira na lividez.

 

Eu já não sou quem era;

O que eu sonhei, morri-o;

E até do que hoje sou

Amanhã direi, quem dera

Volver a sê-lo!... Mais frio

O vento vago voltou.

 

 

(Athena, vol. I, n.º3, dezembro de 1924)


SACADURA CABRAL

 

No frio mar do alheio Norte,

    Morto quedou,

Servo da Sorte infiel que a Sorte

    Deu e tirou.

 

Brilha alto a chama que se apaga.

    A noite o encheu.

De estranho mar que estranha plaga,

    Nosso, o acolheu?

 

Floriu, murchou na extrema haste;

    Joia do ousar,

Que teve por eterno engaste

    O céu e o mar.

 

 

(Athena, vol. I, n.º3, dezembro de 1924)

 


Ó sino da minha aldeia,

Dolente na tarde calma,

Cada tua badalada

Soa dentro da minha alma.

 

E é tão lento o teu soar,

Tão como triste da vida,

Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.

 

Por mais que me tanjas perto

Quando passo, sempre errante,

És para mim como um sonho,

Soas-me na alma distante.

 

A cada pancada tua,

Vibrante no céu aberto,

Sinto mais longe o passado,

Sinto a saudade mais perto.

 

 

05/08/1921 (Athena, vol. I, n.º3, dezembro de 1924)


Leve, breve, suave,

Um canto de ave

Sobe no ar com que principia

o dia.

Escuto, e passou...

Parece que foi só porque escutei

Que parou.

 

Nunca, nunca, em nada,

Raie a madrugada,

Ou splenda o dia, ou doire no declive,

Tive

Prazer a durar

Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir

Gozar.

 

 

05/08/1921 (Athena, n.º3, dezembro de 1924)

 


 

Pobre velha música!

Não sei porque agrado,

Enche-se de lágrimas

Meu olhar parado.

 

Recordo outro ouvir-te.

Não sei se te ouvi

Nessa minha infância

Que me lembra em ti.

 

Com que ânsia tão raiva

Quero aquele outrora!

E eu era feliz? Não sei:

Fui-o outrora agora.

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


 

Dorme enquanto eu velo...

Deixa-me sonhar...

Nada em mim é risonho.

Quero-te para sonho,

Não para te amar.

 

A tua carne calma

É fria em meu querer.

Os meus desejos são cansaços.

Nem quero ter nos braços

Meu sonho do teu ser.

 

Dorme, dorme, dorme,

Vaga em teu sorrir...

Sonho-te tão atento

Que o sonho é encantamento

E eu sonho sem sentir.

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


 

Sol nulo dos dias vãos,

Cheios de lida e de alma,

Aquece ao menos as mãos

A quem não entras na alma!

 

Que ao menos a mão, roçando

A mão que por ela passe,

Com externo calor brando

O frio da alma disfarce!

 

Senhor, já que a dor é nossa

E a fraqueza que ela tem,

Dá-nos ao menos a força

De a não mostrar a ninguém!

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


Trila na noite uma flauta. É de algum

          Pastor? Que importa? Perdida

Série de notas vaga e sem sentido nenhum.

          Como a vida.

 

Sem nexo ou princípio ou fim ondeia

          A ária alada.

Pobre ária fora de música e de voz, tão cheia

          De não ser nada!

 

Não há nexo ou fio por que se lembre aquela

          Ária, ao parar;

E já ao ouvi-la sofro a saudade dela

          E o quando cessar.

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


 

Põe-me as mãos nos ombros...

Beija-me na fronte...

Minha vida é escombros,

A minha alma insonte.

 

Eu não sei porquê,

Meu desde onde venho,

Sou o ser que vê,

E vê tudo estranho.

 

Põe a tua mão

Sobre o meu cabelo...

Tudo é ilusão.

Sonhar é sabê-lo.

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


 

Manhã dos outros! Ó sol que dás confiança

          Só a quem já confia!

É só à dormente, e não à morta, sperança

          Que acorda o teu dia.

 

A quem sonha de dia e sonha de noite, sabendo

          Todo o sonho vão,

Mas sonha sempre, só para sentir-se vivendo

          E a ter coração.

 

A esses raias sem o dia que trazes, ou somente

          Como alguém que vem

Pela rua, invisível ao nosso olhar consciente,

          Por não ser-nos ninguém.

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


Treme em luz a água

Mal vejo. Parece

Que uma alheia mágoa

Na minha  alma  desce –

 

Mágoa erma de alguém

De algum outro mundo

Onde a dor é um bem

E o amor é profundo,

 

E só punge ver,

Ao longe, iludida,

A vida a morrer

O sonho da vida.

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


Dorme sobre o meu seio,

Sonhando de sonhar...

No teu olhar eu leio

Um lúbrico vagar.

Dorme no sonho de existir

E na ilusão de amar.

 

Tudo é nada, e tudo

Um sonho finge ser.

O spaço negro é mudo.

Dorme, e, ao adormecer,

Saibas do coração sorrir

Sorrisos de esquecer.

Dorme sobre o meu seio,

Sem mágoa nem amor...

 

No teu olhar eu leio

O íntimo torpor

De quem conhece o nada-ser

De vida e gozo e dor.

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


Ao longe, ao luar,

No rio uma vela

Serena a passar,

Que é que me revela?

 

Não sei, mas meu ser

Tornou-se-me estranho,

E eu sonho sem ver

Os sonhos que tenho.

 

Que angústia me enlaça?

Que amor não se explica?

É a vela que passa

Na noite que fica.

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


Em toda a noite o sono não veio. Agora

            Raia do fundo

Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.

            Que faço eu no mundo?

Nada que a noite acalme ou levante a aurora,

            Coisa séria ou vã.

 

Com olhos tontos da febre vã da vigília

            Vejo com horror

O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim

            Do mundo e da dor –

Um dia igual aos outros, da eterna família

            De serem assim.

 

Nem o símbolo ao menos vale, a significação

            Da manhã que vem

Saindo lenta da própria essência da noite que era,

            Para quem,

Por tantas vezes ter sempre sperado em vão,

         Já nada spera.

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)


 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões pra cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente stá pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

 

 

(Athena, n.º3, dezembro de 1924)

 


Não é ainda a noite

Mas é já frio o céu.

Do vento o ocioso açoite

Envolve o tédio meu.

 

Que vitórias perdidas

Por não as ter querido!

Quantas perdidas vidas!

E o sonho sem ter sido...

 

Ergue-te, ó vento, do ermo

Da noite que aparece!

Há um silêncio sem termo

Por trás do que estremece...

 

Pranto dos sonhos fúteis,

Que a memória acordou,

Inúteis, tão inúteis –

Quem me dirá quem sou?

 

 

27/05/1926


Pouco importa de onde a brisa

Traz o olor que nela vem.

O coração não precisa

De saber o que é o bem.

 

A mim me basta nesta hora

A melodia que embala.

Que importa se, sedutora,

As forças da alma cala?

 

Quem sou, pra que o mundo perca

Com o que penso a sonhar?

Se a melodia me cerca

Vivo só o me cercar...

 

 

29/09/1926


Paira à tona de água

Uma vibração,

Há uma vaga mágoa

No meu coração.

 

Não é porque a brisa

Ou o que quer que seja

Faça esta indecisa

Vibração que adeja,

 

Nem é porque eu sinta

Uma dor qualquer.

Minha alma é indistinta

Não sabe o que quer.

 

É uma dor serena,

Sofre porque vê.

Tenho tanta pena!

Soubesse eu de quê!...

 

 

14/03/1928


 

Natal... Na província neva.

Nos lares aconchegados,

Um sentimento conserva

Os sentimentos passados.

 

Coração oposto ao mundo,

Como a família é verdade!

Meu pensamento é profundo,

Stou só e sonho saudade.

 

E como é branca de graça

A paisagem que não sei,

Vista de trás da vidraça

Do lar que nunca terei!

 

 

(Notícias Ilustrado, n.º29, 30 de dezembro de 1928)


 

Um muro de nuvens densas

Põe na base do ocidente

Negras roxuras pretensas.

 

Com a noite tudo acaba.

O céu frio é transparente.

Nada de chuva desaba.

 

E não sei se tenho pena

Ou alegria da ausente

Chuva e da noite serena.

 

De resto, nunca sei nada.

Minha alma é a sombra presente

De uma presença passada.

 

Meus sentimentos são rastros.

Só meu pensamento sente...

A noite esfria-se de astros.

 

 

01/05/1929


Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

 

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio

Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;

O amor é um sonho que chega para o pouco ser que se é;

A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

 

Por isso na orla morena da praia calada e só,

Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,

E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

 

Deem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,

Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;

Deem-me um vago amor de quanto nunca terei,

Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

 

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,

Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

 

 

10/08/1929


Boiam leves, desatentos,

Meus pensamentos de mágoa,

Como, no sono dos ventos,

As algas, cabelos lentos

Do corpo morto das águas.

 

Boiam como folhas mortas

À tona de águas paradas.

São coisas vestindo nadas,

Pós remoinhando nas portas

Das casas abandonadas.

 

Sono de ser, sem remédio,

Vestígio do que não foi,

Leve mágoa, breve tédio,

Não sei se para, se flui;

Não sei se existe ou se dói.

 

 

04/08/1930

 


Contemplo o lago mudo

Que uma brisa estremece.

Não sei se penso em tudo

Ou se tudo me esquece.

 

O lago nada me diz,

Não sinto a brisa mexê-lo.

Não sei se sou feliz

Nem se desejo sê-lo.

 

Trémulos vincos risonhos

Na água adormecida.

Por que fiz eu dos sonhos

A minha única vida?

 

 

04/08/1930


 

Dá a surpresa de ser.

É alta, de um louro escuro.

Faz bem só pensar em ver

Seu corpo meio maduro.

 

Seus seios altos parecem

(Se ela estivesse deitada)

Dois montinhos que amanhecem

Sem ter que haver madrugada.

 

E a mão do seu braço branco

Assenta em palmo espalhado

Sobre a saliência do flanco

Do seu relevo tapado.

 

Apetece como um barco.

Tem qualquer coisa de gomo.

Meu Deus, quando é que eu embarco?

Ó fome, quando é que eu como?

 

 

10/09/1930


Lenta e quieta a sombra vasta

Cobre o que vejo menos já.

Pouco somos, pouco nos basta.

O mundo tira o que nos dá.

Que nos contente o pouco que há.

 

A noite, vindo como nada,

Lembra-me quem deixei de ser,

A curva anónima da estrada

Faz-me lembrar, faz-me esquecer,

Faz-me ter pena e ter de a ter.

 

Ó largos campos já cinzentos

Na noite, para além de mim,

Vou amanhã meus pensamentos

Enterrar onde estais assim.

Vou ter aí sossego e fim.

 

Poesia! Nada! A hora desce

Sem qualidade ou emoção.

Meu coração o que é que esquece?

Se é o que eu sinto que foi vão,

Porque me dói o coração?

 

 

17/11/1930


Chove. É dia de Natal.

Lá para o Norte é melhor:

Há a neve que faz mal.

E o frio que ainda é pior.

 

E toda a gente é contente

Porque é dia de o ficar.

Chove no Natal presente.

Antes isso que nevar.

 

Pois apesar de ser esse

O Natal da convenção,

Quando o corpo me arrefece

Tenho o frio e Natal não.

 

Deixo sentir a quem quadra

E o Natal a quem o fez,

Pois se escrevo ainda outra quadra

Fico gelado dos pés.

 

 

25/12/1930


Por trás daquela janela

Cuja cortina não muda

Que a alma em si mesma estuda

No desejo que a revela.

 

Não tenho falta de amor.

Quem me queira não me falta.

Mas teria outro sabor

Se isso fosse interior

Àquela janela alta.

 

Porquê? Se eu soubesse, tinha

Tudo o que desejo ter.

Amei outrora a Rainha,

E há sempre na alma minha

Um trono por preencher.

 

Sempre que posso sonhar,

Sempre que não vejo, ponho

O trono nesse lugar;

Além da cortina é o lar,

Além da janela o sonho.

 

Assim, passando, entreteço

O artifício do caminho

E um pouco de mim me esqueço.

Pois mais nada à vida peço

Do que ser o seu vizinho.

 

 

25/12/1930


Gato que brincas na rua

Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua

Porque nem sorte se chama.

 

Bom servo das leis fatais

Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais

E sentes só o que sentes.

 

És feliz porque és assim,

Todo o nada que és é teu

Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu.

 

 

Janeiro de 1931

 


Não: não digas nada!

Supor o que dirá

A tua boca velada

E ouvi-lo já,

 

É ouvi-lo melhor

Do que o dirias.

O que és não vem à flor

Das frases e dos dias.

 

És melhor do que tu.

Não digas nada: sê!

Graça do corpo nu

Que invisível se vê.

 

 

05-06/02/1931


De onde é quase o horizonte

Sobe uma névoa ligeira

E afaga o pequeno monte

Que para na dianteira.

 

E com braços de farrapo

Quase invisíveis e frios

Faz cair seu ser de trapo

Sobre os contornos macios.

 

Um pouco de alto medito

A névoa só com a ver.

A vida? Não acredito.

A crença? Não sei viver.

 

 

04/03/1931


Vaga, no azul amplo solta,

Vai uma nuvem errando.

O meu passado não volta.

Não é o que estou chorando.

 

O que choro é diferente.

Entra mais na alma da alma.

Mas como, no céu sem gente,

A nuvem flutua calma,

 

E isto lembra uma tristeza

E a lembrança é que entristece,

Dou à saudade a riqueza

De emoção que a hora tece.

 

Mas, em verdade, o que chora

Na minha amarga ansiedade

Mais alto que a nuvem mora,

Está para além da saudade.

 

Não sei o que é nem consinto

À alma que o saiba bem.

Visto da dor com que minto

Dor que a minha alma tem.

 

 

20/03/1931


Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,

E a noite chega sem que eu saiba bem,

Quero considerar-me e ver aquilo

Que sou, e o que sou o que é que tem.

 

Olho por todo o meu passado e vejo

Que fui quem foi aquilo em torno meu,

Salvo o que o vago e incógnito desejo

De ser eu mesmo de meu ser me deu.

 

Como a páginas já relidas, vergo

Minha atenção sobre quem fui de mim,

E nada de verdade em mim albergo

Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.

 

Como alguém distraído na viagem,

Segui por dois caminhos par a par.

Fui com o mundo, parte da paisagem;

Comigo fui, sem ver nem recordar.

 

Chegado aqui, onde hoje estou, conheço

Que sou diverso no que informe estou.

No meu próprio caminho me atravesso.

Não conheço quem fui no que hoje sou.

 

Serei eu, porque nada é impossível,

Vários trazidos de outros mundos, e

No mesmo ponto espacial sensível

Que sou eu, sendo eu por star aqui?

 

Serei eu, porque todo o pensamento

Podendo conceber, bem pode ser,

Um dilatado e múrmuro momento,

De tempos-seres de quem sou o viver?

 

 

01/08/1931


Guia-me a só razão.

Não me deram mais guia.

Alumia-me em vão?

Só ela me alumia.

 

Tivesse quem criou

O mundo desejado

Que eu fosse outro que sou,

Ter-me-ia outro criado.

 

Deu-me olhos para ver.

Olho, vejo, acredito.

Como ousarei dizer:

«Cego, fora eu bendito»?

 

Como o olhar, a razão

Deus me deu, para ver

Para além da visão –

Olhar de conhecer.

 

Se ver é enganar-me,

Pensar um descaminho,

Não sei. Deus os quis dar-me

Por verdade e caminho.

 

 

02/01/1932


Há quase um ano não screvo.

Pesada, a meditação

Torna-me alguém que não devo

Interromper na atenção.

 

Tenho saudades de mim,

De quando, de alma alheada,

Eu era não ser assim,

E os versos vinham de nada.

 

Hoje penso quanto faço,

Screvo sabendo o que digo...

Para quem desce do espaço

Este crepúsculo antigo?

 

 

23/05/1932


Fúria nas trevas o vento

Num grande som de alongar.

Não há no meu pensamento

Senão não poder parar.

 

Parece que a alma tem

Treva onde sopre a crescer

Uma loucura que vem

De querer compreender.

 

Raiva nas trevas o vento

Sem se poder libertar.

Estou preso ao meu pensamento

Como o vento preso ao ar.

 

 

23/05/1932


A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.

Se escuto, eu te ouço a passada

Existir como eu existo.

 

A terra é feita de céu.

A mentira não tem ninho.

Nunca ninguém se perdeu.

Tudo é verdade e caminho.

 

 

23/05/1932


Quem bate à minha porta

Tão insistentemente

Saberá que está morta

A alma que em mim sente?

 

Saberá que eu a velo

Desde que a noite é entrada

Com o vácuo e vão desvelo

De quem não vela nada?

 

Saberá que estou surdo?

Porque o sabe ou não sabe,

E assim bate, ermo e absurdo,

Até que o mundo acabe?

 

 

23/05/1932


Na sombra do Monte Abiegno

Repousei de meditar.

Vi no alto o alto Castelo

Onde sonhei de chegar.

Mas repousei de pensar

Na sombra  do  Monte Abiegno.

 

Quando fora amor ou vida,

Atrás de mim o deixei,

Quando fora desejá-los,

Porque esqueci não lembrei.

À sombra do Monte Abiegno

Repousei porque abdiquei.

 

Talvez um dia, mais forte

Da força ou da abdicação,

Tentarei o alto caminho

Por onde ao Castelo vão.

Na sombra do Monte Abiegno

Por ora repouso, e não.

 

Quem pode sentir descanso

Com o Castelo a chamar?

Está no alto, sem caminho

Senão o que há por achar.

Na sombra do Monte Abiegno

Meu sonho é de o encontrar.

 

Mas por ora estou dormindo,

Porque é sono o não saber.

Olho o Castelo de longe,

Mas não olho o meu querer.

Da sombra do Monte Abiegno

Quem me virá desprender?

 

 

03/10/1932


Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por casas, por prados.

Por quinta e por fonte,

Caminhais aliados.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por penhascos pretos,

Atrás e defronte,

Caminhais secretos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por plainos desertos

Sem ter horizontes,

Caminhais libertos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por ínvios caminhos,

Por rios sem ponte,

Caminhais sozinhos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por quanto é sem fim,

Sem ninguém que o conte,

Caminhais em mim.

 

 

24/10/1932

 


Cansa sentir quando se pensa.

No ar da noite a madrugar

Há uma solidão imensa

Que tem por corpo o frio do ar.

 

Neste momento insone e triste

Em que não sei quem hei de ser,

Pesa-me o informe real que existe

Na noite antes de amanhecer.

 

Tudo isto me parece tudo.

E é uma noite a ter um fim

Um negro astral silêncio surdo

E não poder viver assim.

 

(Tudo isto me parece tudo.

Mas noite, frio, negror sem fim,

Mundo mudo, silêncio mudo –

Ah, nada é isto, nada é assim!)

 

 

09/11/1932


Não meu, não meu é quanto escrevo,

          A quem o devo?

De quem sou o arauto nado?

          Porque, enganado,

Julguei ser meu o que era meu?

          Que outro mo deu?

Mas, seja como for, se a sorte

          For eu ser morte

De uma outra vida que em mim vive,

          Eu, o que estive

Em ilusão toda esta vida

          Aparecida,

Sou grato Ao que do pó que sou

          Me levantou.

(E me fez nuvem um momento

          De pensamento).

(Ao de quem sou, erguido pó,

          Símbolo só).

 

 

09/11/1932


Sorriso audível das folhas,

Não és mais que a brisa ali.

Se eu te olho e tu me olhas,

Quem primeiro é que sorri?

O primeiro a sorrir ri.

 

Ri, e olha de repente,

Para fins de não olhar,

Para onde nas folhas sente

O som do vento passar.

Tudo é vento e disfarçar.

 

Mas o olhar, de estar olhando

Onde não olha, voltou;

E estamos os dois falando

O que se não conversou.

Isto acaba ou começou?

 

 

27/11/1932


Passa uma nuvem pelo sol.

Passa uma pena por quem vê.

A alma é como um girassol:

Vira-se ao que não está ao pé.

 

Passou a nuvem; o sol volta.

A alegria girassolou.

Pendão latente de revolta,

Que hora maligna te enrolou?

 

 

14/08/1933


 

É brando o dia, brando o vento.

É brando o sol e brando o céu.

Assim fosse meu pensamento!

Assim fosse eu, assim fosse eu!

 

Mas entre mim e as brandas glórias

Deste céu limpo e este ar sem mim

Intervêm sonhos e memórias...

Ser eu assim, ser eu assim!

 

Ah, o mundo é quanto nós trazemos.

Existe tudo quanto existo.

Há porque vemos.

E tudo é isto, tudo é isto!

 

 

15/08/1933


Entre o luar e a folhagem,

Entre o sossego e o arvoredo,

Entre o ser noite e haver aragem

Passa um segredo.

Segue-o minha alma na passagem.

 

Ténue lembrança ou saudade,

Princípio ou fim do que não foi,

Não tem lugar, não tem verdade,

Atrai e dói.

Segue-o meu ser em liberdade.

 

Vazio encanto ébrio de si,

Tristeza ou alegria o traz?

O que sou dele a quem sorri?

Não é nem faz.

Só de segui-lo me perdi.

 

 

19/08/1933


Não sei se é sonho, se realidade,

Se uma mistura de sonho e vida,

Aquela terra de suavidade

Que na ilha extrema do sul se olvida.

É a que ansiamos. Ali, ali

A vida é jovem e o amor sorri.

 

Talvez palmares inexistentes,

Áleas longínquas sem poder ser,

Sombra ou sossego deem aos crentes

De que essa terra se pode ter.

Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,

Naquela terra, daquela vez.

 

Mas já sonhada se desvirtua,

Só de pensá-la cansou pensar,

Sob os palmares, à luz da lua,

Sente-se o frio de haver luar.

Ah, nesta terra também, também

O mal não cessa, não dura o bem.

 

Não é com ilhas do fim do mundo,

Nem com palmares de sonho ou não,

Que cura a alma seu mal profundo,

Que o bem nos entra no coração.

É em nós que é tudo. É ali, ali,

Que a vida é jovem e o amor sorri.

 

 

20/08/1933

 


Ouço, como se o cheiro

De flores me acordasse...

É música – um canteiro

De influência e disfarce.

 

Impalpável lembrança,

Sorriso de ninguém,

Com aquela esperança

Que nem esperança tem...

 

Que importa, se sentir

É não se conhecer?

Ouço, e sinto sorrir

O que em mim nada quer.

 

 

21/08/1933


Nuvens sobre a floresta...

Sombra com sombra a mais...

Minha tristeza é esta –

A das coisas reais.

 

A outra, a que pertence

Aos sonhos que perdi,

Nesta hora não me vence,

Se a há, não a há aqui.

 

Mas esta, a do arvoredo

Que o céu sem luz invade,

Faz-me receio e medo...

Quem foi minha saudade?

 

 

21/08/1933


Aqui onde se espera

– Sossego, só sossego –

Isso que outrora era,

 

Aqui onde, dormindo,

– Sossego, só sossego –

Se sente a noite vindo,

 

E nada importaria

– Sossego, só sossego –

Que fosse antes o dia,

 

Aqui, aqui estarei

– Sossego, só sossego –

Como no exílio um rei,

 

Gozando da ventura

– Sossego, só sossego –

De não ter a amargura

 

De reinar, mas guardando

– Sossego, só sossego –

O nome venerando...

 

Que mais quer quem descansa

– Sossego, só sossego –

Da dor e da esperança,

 

Que ter a negação

– Sossego, só sossego –

De todo o coração?

 

 

31/08/1933


Redemoinha o vento,

Anda à roda o ar.

Vai meu pensamento

Comigo a sonhar.

 

Vai saber na altura

Como no arvoredo

Se sente a frescura

Passar alta a medo.

 

Vai saber de eu ser

Aquilo que eu quis

Quando ouvi dizer

O que o vento diz.

 

 

01/09/1933


Momento impercetível,

Que coisa foste, que há

Já em mim qualquer coisa

Que nunca passará?

 

Sei que, passados anos,

O que isto é lembrarei,

Sem saber já o era,

Que até já o não sei.

 

Mas, nada só que fosse,

Fica dele um ficar

Que será suave ainda

Quando eu o não lembrar.

 

 

05/09/1933


Vai alto pela folhagem

Um rumor de pertencer,

Como se houvesse na aragem

Uma razão de querer.

 

Mas, sim, é como se o som

Do vento no arvoredo

Tivesse um intuito, ou bom

Ou mau, mas feito em segredo,

 

E que, pensando no abismo

Onde os ventos são ninguém,

Subisse até onde cismo,

E, alto, alado, num vaivém

 

De tormenta comovesse

As árvores agitadas

Até que delas me viesse

Este mau conto de fadas.

 

 

05/09/1933


Quando as crianças brincam

E eu as ouço brincar,

Qualquer coisa em minha alma

Começa a se alegrar

 

E toda aquela infância

Que não tive me vem,

Numa onda de alegria

Que não foi de ninguém.

 

Se quem fui é enigma,

E quem serei visão,

Quem sou ao menos sinta

Isto no meu coração.

 

 

05/09/1933


Passos tardam na relva

Entre o luar e o luar,

Tudo é eflúvio e selva.

Sente-se alguém passar.

 

Passa, pisando leve

O chão que o luar desmente,

Num pálido hausto leve

De pisar levemente.

 

É elfo, é gnomo, é fada

A forma que ninguém vê?

Lembro: não houve nada.

Sinto, e a saudade crê.

 

 

05/09/1933


O que me dói não é

O que há no coração

Mas essas coisas lindas

Que nunca existirão...

 

São as formas sem forma

Que passam sem que a dor

As possa conhecer

Ou as sonhar o amor.

 

São como se a tristeza

Fosse árvore e, uma a uma,

Caíssem suas folhas

Entre o vestígio e a bruma.

 

 

05/09/1933


Porque é que um sono agita

Em vez de repousar

O que em minha alma habita

E a faz não descansar?

 

Que externa sonolência,

Que absurda confusão,

Mas oprime sem violência,

Me faz ver sem visão?

 

Entre o que vivo e a vida,

Entre quem estou e sou,

Durmo numa descida,

Descida em que não vou.

 

E, num fiel regresso

Ao que já era bruma,

Sonolento me apresso

Para coisa nenhuma.

 

 

06/09/1933


Contemplo o que não vejo.

É tarde, é quase escuro,

E quando em mim desejo

Está parado ante o muro.

 

Por cima o céu é grande;

Sinto árvores além;

Embora o vento abrande,

Há folhas em vaivém.

 

Tudo é do outro lado,

No que há e no que penso.

Nem há ramo agitado

Que o céu não seja imenso.

 

Confunde-se o que existe

Com o que durmo e sou.

Não sinto, não sou triste,

Mas triste é o que estou.

 

 

07/09/1933


Entre o sono e o sonho,

Entre mim e o que em mim

É o quem eu me suponho,

Corre um rio sem fim.

 

Passou por outras margens,

Diversas mais além,

Naquelas várias viagens

Que todo o rio tem.

 

Chegou onde hoje habito

A casa que hoje sou.

Passa, se eu me medito;

Se desperto, passou.

 

E quem me sinto e morre

No que me liga a mim

Dorme onde o rio corre –

Esse rio sem fim.

 

 

11/09/1933


A morte chega cedo,

Pois breve é toda vida

O instante é o arremedo

De uma coisa perdida.

 

O amor foi começado,

O ideal não acabou,

E quem tenha alcançado

Não sabe o que alcançou.

 

E a tudo isto a morte

Risca por não estar certo

No caderno da sorte

Que Deus deixou aberto.

 

 

11/09/1933


Repousa sobre o trigo

Que ondula um sol parado.

Não me entendo comigo.

Ando sempre enganado.

 

Tivesse eu conseguido

Nunca saber de mim,

Ter-me-ia esquecido

De ser esquecido assim.

 

O trigo mexe leve

Ao sol alheio e igual.

Como a alma aqui é breve

Com o seu bem e mal!

 

 

12/09/1933


Tudo que faço ou medito

Fica sempre na metade.

Querendo, quero o infinito.

Fazendo, nada é verdade.

 

Que nojo de mim me fica

Ao olhar para o que faço!

Minha alma é lúcida e rica,

E eu sou um mar de sargaço –

 

Um mar onde boiam lentos

Fragmentos de um mar de além...

Vontades ou pensamentos?

Não o sei e sei-o bem.

 

 

13/09/1933


Se eu, ainda que ninguém,

Pudesse ter sobre a face

Aquele clarão fugace

Que aquelas árvores têm,

 

Teria aquela alegria

Que as coisas têm de fora,

Porque a alegria é da hora;

Vai com o sol quando esfria.

 

Qualquer coisa me valera

Melhor que a vida que tenho –

Ter esta vida de estranho

Que só do sol me viera!

 

 

16/09/1933


Tenho tanto sentimento

Que é frequente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

 

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

 

Qual porém é verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar.

 

 

18/09/1933


Durmo. Se sonho, ao despertar não sei

      Que coisas eu sonhei.

Durmo. Se durmo sem sonhar, desperto

      Para um espaço aberto

Que não conheço, pois que despertei

      Para o que inda não sei.

Melhor é nem sonhar nem não sonhar

      E nunca despertar.

 

 

19/09/1933


Viajar! Perder países!

Ser outro constantemente,

Por a alma não ter raízes

De viver de ver somente!

 

Não pertencer nem a mim!

Ir em frente, ir a seguir

A ausência de ter um fim,

E da ânsia de o conseguir!

 

Viajar assim é viagem.

Mas faço-o sem ter de meu

Mais que o sonho da passagem.

O resto é só terra e céu.

 

 

20/09/1933


Que coisa distante

Está perto de mim?

Que brisa fragrante

Me vem neste instante

De ignoto jardim?

 

Se alguém mo dissesse,

Não quisera crer.

Mas sinto-o, e é esse

O ar bom que me tece

Visões sem as ver.

 

Não sei se é dormindo

Ou alheado que estou:

Sei que estou sentindo

A boca sorrindo

Aos sonhos que sou.

 

 

02/10/1933


Na ribeira deste rio

Ou na ribeira daquele

Passam meus dias a fio.

Nada me impede, me impele,

Me dá calor ou dá frio.

 

Vou vendo o que o rio faz

Quando o rio não faz nada.

Vejo os rastros que ele traz,

Numa sequência arrastada,

Do que ficou para trás.

 

Vou vendo e vou meditando,

Não bem no rio que passa

Mas só no que estou pensando,

Porque o bem dele é que faça

Eu não ver que vai passando.

 

Vou na ribeira do rio

Que está aqui ou ali,

E do seu curso me fio,

Porque, se o vi ou não vi.

Ele passa e eu confio.

 

 

02/10/1933


No mal-estar em que vivo,

No mal pensar em que sinto,

Sou de mim mesmo cativo,

A mim mesmo minto.

 

Se fosse outro fora outro.

Se em mim houvesse certeza,

Não seria o fluido e neutro

Que ama a beleza.

 

Sim, que ama a beleza e a nega

Nesta vida sem bordão

Que contra si mesma alega

Que tudo é vão.

 

 

02/10/1933


Quando era criança

Vivi, sem saber,

Só para hoje ter

Aquela lembrança.

 

E hoje que sinto

Aquilo que fui.

Minha vida flui,

Feita do que minto.

 

Mas nesta prisão,

Livro único, leio

O sorriso alheio

De quem fui então.

 

 

02/10/1933


Chove.