Capuleto
Filha, na quinta-feira, de manhã,
O guapo e muito nobre cavalheiro
Conde Páris, na igreja de São Pedro,
A fará sua noiva radiosa.

Julieta
Pela igreja de São Pedro e de São Paulo,
Ele não vai me fazer noiva alguma.
Só me espanta essa pressa pr’eu casar,
Antes que esse marido faça a corte.
Por favor, diga a meu pai e senhor
Que não me caso ainda. E se casasse
Seria antes com Romeu, que odeio,
Que com Páris. Então a nova é essa?
Sra. Capuleto
Lá vem seu pai. Então, diga isso a ele,
Pra ver se ele o escuta, de você.

(Entram Capuleto e a Ama.)

Capuleto
Ao pôr do sol o orvalho cobre a terra,
Mas para o enterro deste meu sobrinho
Foi chuva que tivemos.
O que é isso, menina: virou bica?
Só chora e pinga? Em miniatura
Você já virou casco, mar e vento,
Pois seus olhos são mar que desce e sobe
Com choro de maré. Seu corpo é a nau
Que ali navega; os ventos, seus suspiros
Que rugem e sacodem suas lágrimas,
Que se não se acalmarem vão levar
Seu corpo a naufragar. Então, mulher,
Já lhe contou nossa decisão?
Sra. Capuleto
Eu, já. Ela agradece, mas não quer.
Melhor casar a tonta com uma cova.
Capuleto
Um momento, mulher. Que foi que disse?
Como? Não quer? E não nos agradece?
É orgulhosa? Não vê que é uma bênção,

Tendo tão poucos méritos, que nós
A demos como noiva a um tal homem?
Julieta
Não sinto orgulho e sou agradecida.
Não posso ter orgulho do que odeio,
Mas sou grata pelo ódio que é amor.
Capuleto
O quê? O quê? Tem lógica de hospício?
“Orgulhosa”, “Agradecida”, “Não quero”,
Mais “não sou orgulhosa”? Menininha,
Nada de agradecimentos nem de orgulhos;
É só juntar os ossos pra, na quinta,
Ir com Páris à igreja de São Pedro,
Ou a arrasto até lá pessoalmente.
Verme anêmico! Lixo, passa fora!
Cara de vela!
Sra. Capuleto
O que é isso? Está louco?
Julieta
Meu bom pai, eu imploro, de joelhos;

(Ajoelha-se.)

Ouça com paciência uma palavra.
Capuleto
Vá pra forca, rebelde de uma figa!
Pois ouça: vais pra igreja quinta-feira
Ou nunca mais verás este meu rosto.
Não fale, não replique, não responda.
A palma ’stá coçando. Nós, mulher,
Julgamos pouca bênção a que Deus dera
Com esta filha única; mas hoje
Percebo que essa única é demais.
E que fomos malditos ao gerá-la.
Sai, vagabunda.

Ama
Deus a abençoe.
Faz muito mal, senhor, dizendo isso.
Capuleto
Por que, “sua” Sabe-Tudo? Cale a boca,
Vá fazer seus fuxicos na cozinha!
Ama
Não faltei com o respeito.
Capuleto
Santo Deus!
Ama
Não se pode falar?
Capuleto
Chega, idiota!
Vá pregar em conversa de comadres;
Aqui não é preciso.
Sra. Capuleto
Não se exalte.
Capuleto
Exaltar-me? Mas Deus é testemunha
Que dia e noite, em luta e em lazer,
Só ou acompanhado, sonhei sempre
Com casar bem a filha. Pois agora,
Ofereço-lhe um nobre cavalheiro,
De grandes posses, jovem, de linhagem,
Coalhado, como dizem, de virtudes,
Tão belo quanto calha bem a um homem,
E me aparece essa maldita idiota,
Choramingando diante de tal sorte,
E a dizer: “Não me caso”, “Eu não o amo”,
“Sou jovem, por favor, peço perdão!”
Pois não case, pra ver que perdão tem!
Pode ir pastar, que aqui não come mais.
Pense bem, que eu não sou de brincadeiras.
Quinta está aí. Use a mente e o coração.
Ou é minha pr’eu dá-la ao meu amigo
Ou enforque-se, então! Morra nas ruas!
Pois juro por minh’alma renegá-la
E impedir que o que é meu venha a ser seu.
Acredite e reflita. Eu juro e cumpro. (Sai.)
Julieta
Será que o céu não tem misericórdia
Que veja até o fundo a minha dor?
Não me renegue, minha mãe querida,
Adie a boda um mês, uma semana,
Se não, prepare o leito nupcial
Na tumba escura onde jaz Teobaldo.
Sra. Capuleto
Não me digas nada, porque eu não respondo.
Faça o que bem quiser. Eu lavo as mãos. (Sai.)
Julieta
Ama, meu Deus, como evitar tudo isso?
Com o marido na terra, as juras feitas,
Como hei de ter na terra votos santos
Senão com meu marido já no céu,
Longe da terra? O que diz? Me aconselhe!
Como é possível que o céu brinque assim
Com súdita tão fraca quanto eu?
Que diz? Nem um traço de alegria?
Não há consolo, Ama?
Ama
Certo que há.
Romeu está banido; aposto o mundo
Que não ousa voltar pra reclamá-la.
Se o fizer, há de ser às escondidas.
Então, as coisas ’stando como ’stão,
Eu creio que é melhor casar com o conde.
Que bonito que ele é!
Romeu, ao lado dele, é um rebotalho.
Nem águia tem olhar tão verde e esperto
Quanto Páris. De coração lhe digo
Que teve sorte nesta nova união:
É melhor que a primeira, e se não fosse,
Seu marido está morto, ou é se como
Viesse aqui sem você o querer.
Julieta
Fala de coração?
Ama
De alma também; que eu me dane se não.
Julieta
Amém.
Ama
O quê?
Julieta
O seu consolo foi maravilhoso.
Vá dizer a mamãe que eu já saí,
Por desgostar meu pai, pra ir à igreja,
Pra confessar-me e ter absolvição.
Ama
Que bom, já vou; está sendo ajuizada. (Sai.)
Julieta
Velha maldita! Monstro de maldade!
Peca mais quem me quer assim perjura,
Ou quem ofende assim ao meu senhor,
Com a mesma língua com que tantas vezes
O colocou no céu? Vá, conselheira.
Doravante seguimos dois caminhos.
Frei Lourenço dirá o que fazer;
Se tudo mais falhar, posso morrer. (Sai.)

Ato IV
Cena I

(Entram Frei Lourenço e Páris.)

Frei
Quinta, senhor? O tempo é muito curto.
Páris
O meu pai Capuleto assim o quer
E não me oponho a essa sua pressa.
Frei
Diz que não sabe a opinião da moça;
É mau começo e eu não gosto disso.
Páris
Ela chora Teobaldo como louca:
Por isso não falei do meu amor,
Pois Vênus não sorri em meio a lágrimas.
Seu pai, senhor, julgando perigoso
Ela entregar-se de tal modo à dor,
Apressou sabiamente o casamento,
Pra represar a inundação de lágrimas
Que aumentam sempre quando está sozinha,
Mas talvez cessem tendo companhia.
Conhece assim o porquê desta pressa.
Frei
Quisera não saber por que atrasá-las —
Mas eis que a jovem chega à minha cela.

(Entra Julieta.)

Páris
Que bom vê-la, minha senhora-esposa.
Julieta
Talvez seja, se um dia eu for esposa.
Páris
O que será, amor, na quinta-feira.
Julieta
O que será, será.
Frei
Boas palavras.
Páris
’Stá aqui pra confessar-se com este frade?
Julieta
Responder o fará meu confessor.
Páris
Por favor, não lhe negue que me ama.
Julieta
Ao senhor só confesso que amo a ele.
Páris
E a ele que me ama, com certeza.
Julieta
Se assim for, sempre será melhor
Dizê-lo às suas costas que a seu rosto.
Páris
Seu rosto foi marcado pelas lágrimas.
Julieta
Não foi grande vitória para elas;
Não era grande coisa antes da dor.
Páris
Só dizer isso ofende mais que o pranto.
Julieta
Senhor, não é calúnia, é só verdade
Que digo frente a frente com meu rosto.
Páris
Mas o seu rosto é meu — e assim o ofende.
Julieta
Pode até ser, pois ele não é meu.
Meu santo pai, vai ficar livre agora
Ou é melhor à noite, após a missa?
Frei
Eu tenho tempo agora, triste filha.
Devemos ficar sós, senhor, agora.
Páris
Sabe Deus que não impeço devoções.
Julieta, quinta cedo eu a desperto;
Até então adeus, e um beijo santo. (Sai.)
Julieta
Feche a porta, e depois de a ter trancado,
Vamos chorar, sem cura ou esperança!

Frei
Ah, Julieta, eu sei da sua dor,
Que me arrasta aos limites da razão.
Soube que tem — sem nada que o adie —
De se casar na quinta com esse conde.
Julieta
Meu pai, não diga que já sabe disso,
Se não for pra dizer como evitá-lo.
Se todo o seu saber não me ajudar,
É só julgar que ’stou agindo certo
E esta faca me ajuda, num momento.
Romeu e eu por Deus fomos unidos,
E antes que a mão pelo senhor unida
Seja marcada por um outro voto,
Ou que o meu coração em vil traição
Se entregue a outro, essa mão mata os dois.
Portanto, usando a sua experiência,
Diga-me o que fazer, ou testemunhe
Entre mim e a minha dor, este punhal
Servir de árbitro e solucionar
O que nem sua idade ou sua arte
Puderam resolver pra mim com honra.
Mas chega de falar. Quero morrer,
Se o que diz não me trouxer remédio.
Frei
Espere, pois vislumbro uma esperança,
Que exige execução desesperada,
Pois é o desespero que ela evita.
Se, antes de casar com o conde Páris,
Você tem forças para se matar,
Então creio que há de enfrentar bem
Morte falsa que evita essa vergonha.
Se pra escapar pensava em se matar,
Se quiser arriscar, dou-lhe o remédio.

Julieta
Ah, mande-me saltar, pra não casar,
Da mais alta das torres, ou andar
No meio de bandidos, ou pisar
Em serpentes. Acorrente-me a ursos,
Esconda-me de noite num ossário,
Repleto de esqueletos de mil mortos,
Pedaços fedorentos ou caveiras;
Ou peça-me que eu entre em tumba nova
Pra esconder-me com alguém numa
mortalha —
Outrora tudo isso me assustava —
Mas hoje o faço sem temor ou dúvida,
Pra manter-me fiel ao meu amor.
Frei
Pois vá pra casa alegre, e diga sim,
Que aceita Páris. Amanhã é quarta;
Pois à noite, amanhã, durma sozinha,
Não permita que a Ama a acompanhe.
Tome este vidro e, quando já deitada,
Tome o líquido todo que contém.
Sentirá logo correr por suas veias
Um gélido torpor, pois o seu pulso
Não bate mais, por ser então suspenso:
Nem calor nem arfar mostrarão vida.
A rosa de seus lábios vai sumir,
Virando cinza, e a janela dos olhos
Se fechará ao dia, como em morte,
Co’esse falso aspecto de cadáver
Você há de manter-se por dois dias,
Pra depois despertar, como de um sono.
Quando o noivo chegar, pela manhã,
Pra tirá-la da cama, a verá morta;
E segundo os costumes do país,
Com seu melhor vestido e descoberta,
Será levada pra capela antiga

Na qual repousam sempre os Capuletos.
No meio-tempo, e antes que desperte,
Romeu, por carta minha, é informado
E, assim que chegue, juntos — ele e eu —
Iremos acordá-la. E nessa noite
Romeu há de levá-la para Mântua,
Livrando-a da vergonha deste instante,
Se tolice ou temores femininos
Não a impedem de o levar avante.
Julieta
Oh, dê-me o vidro, e não me fale em medo.
Frei
Tome aqui. Vá. E seja resoluta
Na decisão.