“Desta vez não me escapa.”
Suspendeu as suas investigações e correu para sul, com a velocidade dum cavalo, e meia hora depois chegava a uma ampla clareira, no meio da qual, iluminado por um luar esplêndido, se erguia um grandioso pagode. Deu alguns passos em frente, mas voltou rapidamente para trás, voltando para os bambus.
Na clareira, dois homens se tinham mostrado, caminhando para a selva e transportando uma terceira pessoa, que parecia morta.
“Que quer isto dizer?”, murmurou o marata, que ia caindo de surpresa em surpresa. “Irão sepultar aquele cadáver na selva?”
Afastou-se ainda mais, escondendo-se numa densa moita, mas num lugar donde podia ver sem ser descoberto.
Os dois homens, que reconheceu como sendo dois indianos, atravessaram rapidamente a clareira, detendo-se junto dos bambus.
— Coragem, Sonephur—disse um deles.—façamo-lo bambolear e atiremo-lo ali para o meio. Estou certo de que amanhã de manhã só encontraremos os ossos se os tigres estiverem dispostos a deixá-los.
— Estás certo disso?—perguntou o outro.
— Sim, a nossa amada deusa se encarregará de lhe enviar meia dezena daqueles animais. Este indiano é um bom bocado de carne, e bastante jovem.
Os dois miseráveis soltaram uma sonora gargalhada àquela graça atroz.
— Agarra-o bem, Sonephur.
— Vamos, um, dois...
Os dois indianos fizeram oscilar o cadáver e atiraram com ele para o meio da selva.
— Boa sorte!—gritou um.
— Boa noite—disse o outro. Amanhã de manhã viremos fazer-te uma visita.
E os dois indianos afastaram-se, com uma risada de troça.
Kammamuri assistira àquela cena. Esperou que os dois indianos estivessem muito longe, depois saiu do esconderijo e, impelido por uma forte curiosidade, aproximou-se do cadáver.
Um grito sufocado escapou-se-lhe dos lábios.
“O patrão!”, exclamou, com voz dilacerante. “Oh! Os malditos!”
De facto, aquele cadáver era Tremal-Naik. Tinha os olhos fechados, o rosto horrivelmente alterado e no meio do peito, enterrado até ao punho, um cutelo. As vestes estavam pesadas de sangue, que continuava a jorrar da profunda ferida.
“Patrão! Meu pobre patrão!”, soluçou o marata.
Apoiou as duas mãos no corpo dele e estremeceu, como se tivesse sido tocado por uma corrente eléctrica. Parecia-lhe ter sentido o coração a bater.
Aproximou a orelha e escutou, sustendo a respiração. Não havia dúvida: Tremal-Naik ainda não estava morto, pois o seu coração batia debilmente.
“Talvez não esteja ferido de morte”, murmurou, tremendo de emoção.
“Calma, Kammamuri, e vamos agir sem perder tempo.”
Com precaução, tirou o kurty a Tremal-Naik, pondo a descoberto o amplo peito. O punhal fora enterrado entre a sexta e a sétima costelas, em direcção ao coração, mas não o tinha tocado.
A ferida era terrível, mas talvez não fosse mortal; Kammamuri, que naquelas coisas era mais entendido do que um médico, teve esperança de salvar o infeliz.
Tomou delicadamente a arma e, lentamente, sem solavancos, extraiu-a da ferida: um jacto de sangue quente e vermelho saiu dos lábios. Era um bom sinal.
“Curar-se-á”, disse o marata.
Rasgou um pedaço do kurty e susteve a hemorragia, que podia ser fatal para o ferido. Agora tratava-se de ter um pouco de água e algumas folhas de youma, para espremer sobre a chaga, a fim de acelerar a cicatrização.
“É preciso, a todo o custo, afastar-se daqui, a fim de encontrar água”, murmurou depois. “Tremal-Naik é forte, um verdadeiro homem de aço, e suportará o transporte sem agravar a ferida. Coragem, Kammamuri.”
Reuniu todas as suas forças, agarrou entre os braços o mais delicadamente que lhe foi possível e afastou-se cambaleando, dirigindo-se para oeste, ou seja, em direcção ao rio.
Descansando de cem em cem passos, para tomar fôlego e para ver se o patrão continuava a dar sinais de vida, alagado em suor e mal se agüentando nas pernas, percorreu mais de uma milha e deteve-se à beira dum lago de água limpidíssima, rodeado por uma tripla fieira de bananeiras e coqueiros.
Depôs o ferido numa densa camada de ervas e aplicou sobre a ferida sangrenta pedaços de pano molhados. Aquele contacto, um débil suspiro que parecia um gemido abafado saiu dos lábios de Tremal-Naik.
— Patrão! Patrão!—chamou o marata.
O ferido agitou as mãos e abriu os olhos, que giravam num círculo sangrento, fixando-os em Kammamuri.
Um raio de alegria iluminou o seu rosto bronzeado.
— Reconheces-me, patrão?—perguntou o marata.
O ferido fez com a cabeça um sinal afirmativo e mexeu os lábios, como para falar, mas apenas conseguiu articular um som confuso, incompreensível.
— Ainda não podes falar—disse Kammamuri—,mas depois hás-de contar-me tudo. Tem a certeza, patrão, de que nos vingaremos dos miseráveis que tão mal te trataram.
O olhar de Tremal-Naik brilhou com um lampejo sombrio e apertou os dedos, arrancando as ervas.
Tinha-o, sem dúvida, compreendido.
— Calma, calma, patrão. Agora vou arranjar algumas ervas que te farão muito bem e dentro de quatro ou cinco dias abandonaremos estes lugares e. levar-te-ei à cabana, para completar a cura.
Recomendou-lhe mais uma vez silêncio e imobilidade absoluta, bateu as ervas num raio de trinta ou quarenta passos, para se assegurar de que não escondiam nenhuma daquelas terríveis serpentes chamadas rubdira mandali, cuja mordedura, segundo se diz, faz suar sangue, e afastou-se rastejando.
Não precisou de andar muito para encontrar algumas pequenas plantas de youma, vulgarmente chamadas “língua de serpente”, cuja seiva é um bálsamo precioso para as feridas.
Fez delas uma boa colheita e dispunha-se a regressar, mas poucos passos tinha andado quando se deteve, com as mãos na coronha das pistolas.
Parecera-lhe ver uma massa negra esconder-se silenciosamente entre os bambus. Tinha mais forma de animal do que de ser humano. Aspirou repetidamente o ar e sentiu o odor marcadíssimo da fera.
“Atenção, Kammamuri”, murmurou. “Temos tigre perto.”
Meteu o punhal entre os dentes e avançou intrepidamente em direcção ao lago, olhando atentamente à sua volta. Esperava encontrar-se de um momento para o outro diante do feroz carnívoro, mas isso não aconteceu e chegou ao meio das árvores sem sequer o ter visto.
Tremal-Naik estava no mesmo sítio e parecia adormecido, com o que o corajoso marata se alegrou; colocou junto de si a carabina e as pistolas, para estar pronto a servir-se delas, mastigou as ervas, apesar de serem insuportavelmente amargas, e aplicou-as sobre a chaga.
“Ah, assim está bem”, disse ele, sacudindo alegremente as mãos. “Amanhã o patrão estará melhor e poderemos ir embora deste lugar, que não me parece muito seguro. Dentro de poucas horas, os indianos deverão ir à selva e, não encontrando o cadáver, pôr-se-ão em campo. Não podemos deixar-nos apanhar assim...”
Um rosnar de meter medo, habitual nos tigres, parecido com um rugido, cortou-lhe a frase. Voltou rapidamente a cabeça, estendendo instintivamente as mãos para as armas.
A quinze passos de distância, recolhido sobre si mesmo, como preparado para saltar, estava um enorme tigre real, que o fixava com dois olhos brilhantes que tinham os reflexos azulados do aço.
Capítulo 8 - Uma noite terrível
Ao rugido de guerra do felino, Tremal-Naik despertara subitamente, fazendo um movimento brusco, como se procurasse o seu fiel punhal. O moribundo reanimara-se, como o soldado ao ouvir a trombeta que dá o sinal da peleja.
— Kammamuri?—articulou, com supremo esforço.
— Não te mexas, patrão!—disse o marata, que fixava nos olhos a fera pronta a saltar.
— O ti...
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