Agora, passado o calor da batalha, começou a sentir a fraqueza e exaustão devido à perda de sangue. Aquele último golpe havia passado perto; se ele não evitasse ser atingido em cheio com uma torcida de corpo, a lâmina do rival o teria transfixado. Da forma como foi, a espada atingiu de soslaio suas costelas e afundou nos músculos atrás das escápulas, causando uma ferida longa, mas superficial.

Kane olhou ao seu redor e viu que um pequeno córrego corria pela clareira na lateral mais distante. Ali, ele cometeu um erro, o único daquele tipo em toda a sua vida. Talvez estivesse aturdido por causa da perda de sangue ou ainda espantado por causa dos estranhos acontecimentos daquela noite. De qualquer maneira, ele deixou seu florete no chão e caminhou desarmado até a água. Lavou seus ferimentos e fez curativos da melhor forma que conseguiu, usando tiras feitas de sua própria roupa.

Então, quando se levantou prestes a refazer seus passos entre as árvores da clareira, voltando por onde havia vindo, algo chamou sua atenção. Uma enorme figura saiu da selva, e Kane reconheceu sua perdição. Era Gulka, o matador de gorilas. Kane lembrou-se de não ter visto o negro entre aqueles que prestaram homenagens a N’Longa. Como o ingês poderia compreender o ódio e a astúcia contidos naquele crânio crepuscular e enviesado que levaram o gigante a escapar da vingança da sua tribo, apenas para caçar o único homem que ele já chegou a temer? O Deus Negro foi gentil com seu neófito, guiando-o até sua vítima indefesa e desarmada. Agora, Gulka poderia matá-lo lentamente, em vez de, como no ataque de um leopardo, golpeá-lo de forma fatal, silenciosa e repentina como havia planejado.

Um amplo sorriso rasgou a face do gigante negro, e ele umedeceu os lábios. Kane, observando-o, pesava fria e deliberadamente as suas chances. Gulka já havia visto o florete, mais próximo dele do que de Kane. O inglês sabia que não teria chance de vencer uma repentina corrida até sua espada. Por isso, um ódio lento e mortal surgiu dentro dele – a fúria dos indefesos. O sangue se agitou nas têmporas, e seus olhos queimaram com uma terrível luz enquanto observava o adversário. Seus dedos se abriram e fecharam como garras. Eram fortes aquelas mãos; homens já haviam morrido sob sua esganadura. Até mesmo o pescoço rotundo de Gulka, duro como um pilar, quebraria como um galho podre naquelas mãos. Contudo, uma onda de fraqueza mostrou a futilidade daqueles pensamentos; mesmo se a luz da Lua não tivesse brilhado na lança que Gulka trazia em suas mãos, Kane não poderia sequer ter fugido, caso tivesse a intenção de fazê-lo – e ele jamais correria de inimigo algum.

O matador de gorilas moveu-se na planície. Maciço e terrível, ele era a personificação da primitiva Era da Pedra. Abriu a bocarra, um antro profundo e vermelho, portando-se com a arrogância altiva da poderosa selvageria.

Kane ficou tenso, porque só havia uma maneira de a luta acabar. Esforçou-se para reagrupar suas forças minguadas. Era inútil; havia perdido sangue demais. Ao menos, encontraria a morte de pé. De algum modo, enrijeceu os joelhos bambos e ficou ereto, embora a planície tremulasse diante dele em ondas incertas, e a luz do luar se tornasse bruma rubra no meio da qual ele divisava turvamente a aproximação do gigante negro.

Kane inclinou-se, e o próprio esforço fez seu rosto arfar. Apanhou água nas mãos em forma de concha e molhou o rosto. Isso o reviveu, e ele se endireitou, esperando que Gulka o atacasse e acabasse com aquilo tudo antes que sua fraqueza o levasse ao chão.

Gulka ocupava o centro da planície, movendo-se com o caminhar lento e suave de um grande felino, espreitando sua vítima. Não estava com pressa alguma para consumar seu propósito.