Penetralia

Falei tanto de amor!... de galanteio,

Vaidade e brinco, passatempo e graça,

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Ou desejo fugaz, que brilha e passa

No relâmpago breve com que veio...

O verdadeiro amor, honra ou desgraça,

Gozo ou suplício, no íntimo fechei-o:

Nunca o entreguei ao publico recreio,

Nunca o expus indiscreto ao sol da praça.

Não proclamei os nomes, que, baixinho,

Rezava... E ainda hoje, tímido, mergulho

Em funda sombra o meu melhor carinho.

Quando amo, amo e deliro sem barulho;

E, quando sofro, calo-me, e definho

Na ventura infeliz do meu orgulho.

Prece

Durma, de tuas mãos nas palmas sacrossantas,

O meu remorso. Velho e pobre, como Jó,

Perdendo-te, a melhor de tantas posses, tantas,

Malsinado de Deus, perdi... Tu foste a só!

Ao céu, por teu perdão, a minha alma, que encantas,

Suba, como por uma escada de Jacó.

Perdi-te... E eras a graça, alta entre as altas santas,

A sombra, a força, o aroma, a luz... Tu foste a só!

Tu foste a só!... Não valho a poeira que levantas,

Quando passas. Não valho a esmola do teu dó!

- Mas deixa-me chorar, beijando as tuas plantas,

Mas deixa-me clamar, humilhado no pó:

Tu, que em misericórdia as Madonas suplantas,

Acolhe a contrição do mau... Tu foste a só!

Oração a Cibele

Deitado sobre a terra, em cruz, levanto o rosto

Ao céu e às tuas mãos ferozes e esmoleres.

Mata-me! Abençoarei teu coração, composto,

Ó mãe, dos corações de todas as mulheres!

Tu, que me dás amor e dor, gosto e desgosto,

Glória e vergonha, tu, que me afagas e feres,

Aniquila-me! E doura e embala o meu sol posto,

Fonte! berço! mistério! Ísis! Pandora! Ceres!

Que eu morra assim feliz, tudo de ti querendo:

Mal e bem, desespero e ideal, veneno e pomo,

Pecados e perdões, beijos puros e impuros!

E os astros sobre mim caiam de ti, chovendo,

Como os teus crimes, como as tuas bênçãos, como

A doçura e o travor de teus cachos maduros!,

Eutanásia

Antes que o meu espírito no espaço

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Fuja em suspiro etéreo e vago fumo,

Em versos e esperanças me consumo,

E espalho sonhos pelo bem que faço.

Até no instante em que seguir o rumo

Para o sono final do teu regaço,

Ó terra, sorverei, no extremo passo,

Da vida em febre o capitoso sumo.

Seja a minha agonia uma centelha

De glória! E a morte, no meu grande dia,

Pairando sobre mim, como uma abelha,

Sugue o meu grito de última alegria,

O meu beijo supremo, - flor vermelha

Embalsamando a minha boca fria!

Introibo!

Sinto às vezes, à noite, o invisível cortejo

De outras vidas, num caos de clarões e gemidos:

Vago tropel, voejar confuso, hálito e beijo

De cousas sem figura e seres escondidos...

Miserável, percebo, em tortura e desejo,

Um perfume, um sabor, um tacto incompreendidos,

E vozes que não ouço, e cores que não vejo,

Um mundo superior aos meus cinco sentidos.

Ardo, aspiro, por ver, por saber, longe, acima,

Fora de mim, além da dúvida e do espanto!

E na sideração, que, um dia, me redima,

Liberto flutuarei, feliz, no seio etéreo,

E, ó Morte, rolarei no teu piedoso manto,

Para o deslumbramento augusto do mistério!

Vulnerant Omnes, Ultima Necat

Rio perpétuo e surdo, as serras esboroas,

Serras e almas, ó Tempo! e, em mudas cataratas,

As tuas horas vão mordendo, aluindo, à toa...

Todas ferem, passando: e a derradeira mata.

Mas a vida é um favor! De crepe, ou de ouro e prata,

Da injúria ou do perdão, do opróbrio ou da coroa,

Todas as horas, para o martírio, são gratas!

Todas, para a esperança e para a fé, são boas!

Primeira, que, em meu ninho, os primeiros arrulhos

Me deste, e a minha Mãe deste um grito e um orgulho,

Bendita! E todas vós, benditas, na ânsia triste

Ou no clamor triunfal, que todas me feristes!

E bendita, que sobre a minha cova aberta

Pairas, última, ó tu que matas e libertas!

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Frutidoro

Fruto, depois de ser semente humilde e flor,

Na alta árvore nutriz da Vida amadureço.

Gozei, sofri, — vivi! Tenho no mesmo apreço

O que o gozo me deu e o que me deu a dor.

Venha o inverno, depois do outono benfeitor!

Feliz porque nasci, feliz porque envelheço,

Hei de ter no meu fim a glória do começo:

Não me verão chorar no dia em que me for.

Não me amedrontas, Morte! o teu apelo escuto,

Conto sem mágoa os sóis que me acercam de ti,

E sem tremer à porta ouço o teu passo astuto.

Leva-me! Após a luta, o sono me sorri:

Cairei, beijando o galho em que fui flor e fruto,

Bendizendo a sazão em que amadureci!

Os Sinos

Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta...

Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes,

Ardemos numa louca aspiração mais casta,

Para trasmigrações, para metempsicoses!

Cantai, sinos! Daqui por onde o horror se arrasta,

Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,

Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!

Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!

Em repiques de febre, em dobres a finados,

Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos

Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados!

Dizei, sinos da terra, em clamores supremos,

Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos,

Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!

Sinfonia

Meu coração, na incerta adolescência, outrora,

Delirava e sorria aos raios matutinos,

Num prelúdio incolor, como o alegro da aurora,

Em sistros e clarins, em pífanos e sinos.

Meu coração, depois, pela estrada sonora

Colhia a cada passo os amores e os hinos,

E ia de beijo a beijo, em lasciva demora,

Num voluptuoso adágio em harpas e violinos.

Hoje, meu coração, num scherzo de ânsias, arde

Em flautas e oboés, na inquietação da tarde,

E entre esperanças foge e entre saudades erra...

E, heróico, estalará num final, nos clamores

Dos arcos, dos metais, das cordas, dos tambores,

Para glorificar tudo que amou na terra! Fim

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