Um Conto De Natal

Introdução
Um conto de Natal (A Christmas Carol), do britânico Charles Dickens (1812-1870), está, certamente, entre as histórias mais difundidas da literatura ocidental. O enredo nos traz a figura de Scrooge, um rabugento homem de negócios de Londres, sovina e solitário, que não demonstra um pingo de bons sentimentos e compaixão para com os outros. Não deixa que ninguém rompa sua carapaça e preocupa-se apenas com seus lucros. No frio natalino, ele é visitado pelo fantasma de Marley, seu sócio, morto há algum tempo. Esta visita muda a sua vida. A história foi escrita entre outubro e novembro de 1843, para ser publicada em capítulos de jornal, com ilustrações de John Leech, em dezembro do mesmo ano. O enredo é familiar a todos: foi filmado várias vezes, televisionado, adaptado para o teatro, para crianças, transformado em desenho animado e até em histórias em quadrinhos. Até mesmo a figura de Scrooge teve descendentes, já que o nome original do Tio Patinhas, personagem de Walt Disney, é Uncle Scrooge.
Se a história das aventuras natalinas de Scrooge é a mais conhecida de Dickens, também é verdade que o escritor figura entre os romancistas mais conhecidos no mundo inteiro, e que, na história da literatura ocidental, poucos autores gozaram em vida de tanto prestígio entre seus leitores, seus conterrâneos e seus contemporâneos quanto ele.
Charles Dickens nasceu no período de regência georgiana, mas foi do período vitoriano (1837-1901) que se tornou a mais alta e popular figura cultural. Em uma Inglaterra militarmente forte, politicamente avançada e comercialmente potente, os reflexos da Revolução Industrial penetravam no dia a dia das pessoas. Fábricas e manufaturas eram incrementadas, assim como as exportações britânicas; a distância entre o interior e a capital diminuía, graças às ferrovias que passaram a interligar o país; leis de livre-comércio incentivavam o capitalismo nascente; a taxa de analfabetismo era cada vez mais baixa, e as pessoas consumiam os inúmeros jornais que eram, afinal de contas, o principal e único meio de comunicação de massa em um mundo que ainda não conhecia nem a televisão e nem o rádio, e no qual a fotografia recém dava os primeiros passos.
A curiosidade por notícias a respeito de um mundo que se tornava cada vez mais rápido certamente atraía os leitores para os diversos tipos de publicações jornalísticas existentes, mas o crescimento da imprensa nessa época não se deve apenas a isto: o folhetim (formato no qual foi originalmente publicado Um conto de Natal) teve papel fundamental na fixação deste hábito de leitura. O livro era um artigo de luxo, que apenas cidadãos ricos podiam adquirir. Mas o jornal era barato e trazia sempre um romance-folhetim (uma história publicada em capítulos – geralmente semanais ou mensais – e às vezes ilustrada por desenhos). Antes, falava-se sobre a vida de vizinhos ou de visitantes de pequenas cidades; aos poucos as cidades foram crescendo e se foi dando preferência por falar sobre os personagens folhetinescos e especular sobre o destino destes. E os personagens dos folhetins de Dickens eram os preferidos entre os ingleses.
Para serem viáveis economicamente, os jornais precisavam vender muito, e uma maneira de manter a vendagem alta era, em cada número, oferecer ao público um capítulo de uma história apetitosa, com muitos acontecimentos, reviravoltas de enredo, casos de amor ou mistério, atiçando sempre a curiosidade do leitor. Dickens tornou-se um mestre em compor enredos tão bons e bem-escritos, tão repletos de personagens vivos e significativos dentro da realidade vitoriana que prolongavam-se por meses, às vezes anos, em capítulos que, reunidos em formato de livro, chegam a 600, 800 páginas.
A literatura de Dickens com certeza só obteve êxito na sua época porque bancários, banqueiros, funcionários e donos de fábricas, magistrados, homens de negócio e donas de casa, todos gostavam do modo como o escritor mostrava o mundo. Dickens celebrava, é certo, as maravilhas do mundo moderno e do capitalismo nascente, das quais ele mesmo usufruiu (pois, nascido em uma família miserável, galgou a carreira jornalística até tornar-se um rico romancista, coisa só permitida pela elasticidade social moderna), mas nunca deixou de apontar as chagas deste mesmo mundo.
Colocou-se sempre ao lado dos velhos, dos órfãos desamparados, das crianças desumanamente empregadas na indústria, dos pais de família desempregados. Percebeu o susto da família vitoriana com a realidade de uma Inglaterra possante, sim, mas também mutante, antes mesmo que ela o fizesse. Em sua literatura, lamentou sobre a simplicidade e a inocência perdidas e, de modo engajado e edificante – na melhor acepção do termo –, tentou trazer à tona os melhores sentimentos das pessoas, sem nunca deixar de lado o entretenimento.
São estes conflitos modernos da vida real, de perda de valores ancestrais e familiares, de degradação dos laços sociais, que Dickens resolve na literatura e, especificamente, em Um conto de Natal, mas sem jamais manchar, ofender ou criticar abertamente as instituições vitorianas. Tanto foi assim que famílias inteiras reuniam-se ao redor da mesa de jantar para acompanhar as peripécias dos personagens, cada vez que um periódico trazia um novo capítulo. Toda a obra de Dickens é um exercício de equilíbrio, realizado dentro dos estreitos limites da denúncia social e do otimismo e moralismo vitorianos (como apontar falhas na organização social do país mais rico e poderoso de então?). Dickens esteve entre os primeiros a detectar os males da sociedade moderna, ainda mais partindo do coração da poderosa Inglaterra vitoriana, e Scrooge, com sua ganância pelo lucro, é o seu símbolo maior para toda a crueldade do capitalismo selvagem. Deste modo, onde ainda houver sentimentos de solidariedade para com os excluídos, amor às reuniões familiares, vontade de congregação entre as pessoas e estranheza frente às frias relações de comércio e trabalho, Um conto de Natal continuará atual.
Um conto
de Natal

Capítulo I
O fantasma de Marley
Para começar a história, Marley estava morto. Não havia a menor dúvida quanto a isso. O atestado foi assinado pelo escrivão, pelo sacerdote, pelo agente funerário e pelo encarregado do enterro. Scrooge também assinou, e sua assinatura era sempre bem-vinda, tanto na Bolsa quanto em qualquer outro lugar.
Sim, o velho Marley estava tão morto quanto uma pedra.
Veja bem: não quero dizer com isso que eu saiba, por experiência própria, como é estar morto como uma pedra. Na verdade, se tivesse de fazer uma comparação, acho que não há nada mais morto do que a lápide de um túmulo. Quem inventou esta antiga expressão foram os
nossos sábios antepassados, e não serei eu quem vai querer mudá-la, senão, daqui a pouco, tudo estará de pernas para o ar. Deixe-me, portanto, repetir com toda ênfase: Marley estava tão morto quanto uma pedra.
Scrooge sabia que ele estava morto? Claro que sabia. Como não iria saber? Scrooge e ele foram sócios por não sei quantos anos. Scrooge era seu único testamenteiro, além de ser também seu único administrador, procurador, herdeiro, amigo e o único que chorou a sua morte.
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