Outro conviva concordou com o primeiro a respeito das vantagens dela, dizendo que a aprendera com o Dr. Belém.
– Não conheceram o Dr. Belém? – perguntou ele.
– Não, responderam todos.
– Era um homem extremamente singular. No tempo em que me ensinou alemão usava uma grande casaca que lhe chegava quase aos tornozelos e trazia na cabeça um chapéu de chile de abas extremamente largas.
– Devia ser pitoresco, observou um dos rapazes. Tinha instrução?
– Variadíssima. Compusera um romance, um livro de teologia e descobrira um planeta...
– Mas esse homem?
– Esse homem vivia em Minas. Veio à corte para imprimir os dois livros, mas não achou editor e preferiu rasgar os manuscritos. Quanto ao planeta comunicou a notícia à Academia das Ciências de Paris; lançou a carta no correio e esperou a resposta; a resposta não veio porque a carta foi parar a Goiás.
Um dos convivas sorriu maliciosamente para os outros, com ar de quem dizia que era muita desgraça junta. A atitude, porém, do narrador tirou-lhe o gosto do riso. Alberto (era o nome do narrador) tinha os olhos no chão, olhos melancólicos de quem se rememora com saudade de uma felicidade extinta. Efetivamente suspirou depois de algum tempo de muda e vaga contemplação, e continuou:
– Desculpem-me este silêncio, não me posso lembrar daquele homem sem que uma lágrima teime em rebentar-me dos olhos. Era um excêntrico, talvez não fosse, não era decerto um homem completamente bom; mas era meu amigo; não direi o único mas o maior que jamais tive na minha vida.
Como era natural, estas palavras de Alberto alteraram a disposição de espírito do auditório. O narrador ainda esteve silencioso alguns minutos. De repente sacudiu a cabeça como se expelisse lembranças importunas do passado, e disse:
– Para lhes mostrar a excentricidade do Dr. Belém, basta contar-lhes a história do esqueleto.
A palavra esqueleto aguçou a curiosidade dos convivas; um romancista aplicou o ouvido para não perder nada da narração; todos esperaram ansiosamente o esqueleto do Dr. Belém. Batia justamente meia-noite; a noite, como disse, era escura; o mar batia funebremente na praia. Estava-se em pleno Hoffmann.
Alberto começou a narração.
CAPÍTULO II
O Dr. Belém era um homem alto e magro; tinha os cabelos grisalhos e caídos sobre os ombros; em repouso era reto como uma espingarda; quando andava curvava-se um pouco. Conquanto o seu olhar fosse muitas vezes meigo e bom, tinha lampejos sinistros, e às vezes, quando ele meditava, ficava com olhos como de defunto.
Representava ter sessenta anos, mas não tinha efetivamente mais de cinquenta. O estudo o abatera muito, e os desgostos também, segundo ele dizia, nas poucas vezes em que me falara do passado, e era eu a única pessoa com quem ele se comunicava a esse respeito. Podiam contar-se-lhe três ou quatro rugas pronunciadas na cara, cuja pele era fria como o mármore e branca como a de um morto.
Um dia, justamente no fim da minha lição, perguntei-lhe se nunca fora casado. O doutor sorriu sem olhar para mim. Não insisti na pergunta; arrependi-me até de lha ter feito.
– Fui casado, disse ele, depois de algum tempo, e daqui a três meses posso dizer outra vez: sou casado.
– Vai casar?
– Vou.
– Com quem?
– Com a D. Marcelina.
D. Marcelina era uma viúva de Ouro Preto, senhora de vinte e seis anos, não formosa, mas assaz simpática, possuía alguma cousa, mas não tanto como o doutor, cujos bens orçavam por uns sessenta contos.
Não me constava até então que ele fosse casar; ninguém falara nem suspeitara tal cousa.
– Vou casar, continuou o Doutor, unicamente porque o senhor me falou nisso. Até cinco minutos antes nenhuma intenção tinha de semelhante ato. Mas a sua pergunta faz-me lembrar que eu efetivamente preciso de uma companheira; lancei os olhos da memória a todas as noivas possíveis, e nenhuma me parece mais possível do que essa. Daqui a três meses assistirá ao nosso casamento. Promete?
– Prometo, respondi eu com um riso incrédulo.
– Não será uma formosura.
– Mas é muito simpática, decerto, acudi eu.
– Simpática, educada e viúva.
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