D. Marcelina podia dizer-me tudo; mas como indagaria isso dela, se o doutor estava quase sempre em casa?
No terceiro dia apareceu-me em casa o Doutor Belém.
– Três dias! disse ele, há já três dias que eu não tenho a fortuna de o ver. Onde anda? Está mal conosco?
– Tenho andado doente, respondi eu, sem saber o que dizia.
– E não me mandou dizer nada, ingrato! Já não é meu amigo.
A doçura destas palavras dissipou os meus escrúpulos. Era singular como aquele homem, que por certos hábitos, maneiras e ideias, e até pela expressão física, assustava a muita gente e dava azo às fantasias da superstição popular, era singular, repito, como me falava às vezes com uma meiguice incomparável e um tom patriarcalmente benévolo.
Conversamos um pouco e fui obrigado a acompanhá-lo à casa. A mulher ainda me pareceu triste, mas um pouco menos que da outra vez. Ele tratava-a com muita ternura e consideração, e ela se não respondia alegre, ao menos falava com igual meiguice.
CAPÍTULO IV
No meio da conversa vieram dizer que o jantar estava na mesa.
– Agora há de jantar conosco, disse ele.
– Não posso, balbuciei eu, devo ir...
– Não deve ir a nenhuma parte, atalhou o doutor; parece-me que quer fugir de mim. Marcelina, pede ao Dr. Alberto que jante conosco.
D. Marcelina repetiu o pedido do marido, mas com um ar de constrangimento visível. Ia recusar de novo, mas o doutor teve a precaução de me agarrar no braço e foi impossível recusar.
– Deixe-me ao menos dar o braço a sua senhora, disse eu.
– Pois não.
Dei o braço a D. Marcelina que estremeceu. O doutor passou adiante. Eu inclinei a boca ao ouvido da pobre senhora e disse baixinho:
– Que mistério há?
D. Marcelina estremeceu outra vez e com um sinal impôs-me silêncio.
Chegamos à sala de jantar.
Apesar de já ter presenciado a cena do outro dia não pude resistir à impressão que me causou a vista do esqueleto que lá estava na cadeira em que o vira com os braços sobre a mesa.
Era horrível.
– Já lhe apresentei minha primeira mulher, disse o doutor para mim; são conhecidos antigos.
Sentamo-nos à mesa; o esqueleto ficou entre ele e D. Marcelina; eu fiquei ao lado desta. Até então não pude dizer palavra; era porém natural que exprimisse o meu espanto.
– Doutor, disse eu, respeito os seus hábitos; mas não me dará a explicação deste?
– Este qual? disse ele.
Com um gesto indiquei-lhe o esqueleto.
– Ah!... respondeu o doutor; um hábito natural; janto com minhas duas mulheres.
– Confesse ao menos que é um uso original.
– Queria que eu copiasse os outros?
– Não, mas a piedade com os mortos...
Atrevi-me a falar assim porque, além de me parecer aquilo uma profanação, a melancolia da mulher parecia pedir que alguém falasse duramente ao marido e procurasse trazê-lo a melhor caminho.
O doutor deu uma das suas singulares gargalhadas, e estendendo-me o prato de sopa, replicou:
– O senhor fala de uma piedade de convenção; eu sou pio à minha maneira. Não é respeitar uma criatura que amamos em vida, o trazê-la assim conosco, depois de morta?
Não respondi cousa nenhuma a estas palavras do doutor. Comi silenciosamente a sopa, e o mesmo fez a mulher, enquanto ele continuou a desenvolver as suas ideias a respeito dos mortos.
– O medo dos mortos, disse ele, não é só uma fraqueza, é um insulto, uma perversidade do coração. Pela minha parte dou-me melhor com os defuntos do que com os vivos.
E depois de um silêncio:
– Confesse, confesse que está com medo.
Fiz-lhe um sinal negativo com a cabeça.
– É medo, é, como esta senhora que está ali transida de susto, porque ambos são dois maricas. Que há entretanto neste esqueleto que possa meter medo? Não lhes digo que seja bonito; não é bonito segundo a vida, mas é formosíssimo segundo a morte. Lembrem-se que isto somos nós também; nós temos de mais um pouco de carne.
– Só? perguntei eu intencionalmente.
O doutor sorriu-se e respondeu:
– Só.
Parece que fiz um gesto de aborrecimento, porque ele continuou logo:
– Não tome ao pé da letra o que lhe disse. Eu também creio na alma; não creio só, demonstro-a, o que não é para todos. Mas a alma foi-se embora; não podemos retê-la; guardemos isto ao menos que é uma parte da pessoa amada.
Ao terminar estas palavras, o doutor beijou respeitosamente a mão do esqueleto. Estremeci e olhei para D. Marcelina. Esta fechara os olhos. Eu estava ansioso por terminar aquela cena que realmente me repugnava presenciar. O doutor não parecia reparar em nada. Continuou a falar no mesmo assunto, e por mais esforços que eu fizesse para o desviar dele era impossível.
Estávamos à sobremesa quando o doutor, interrompendo um silêncio que durava já havia dez minutos perguntou:
– E segundo me parece, ainda lhe não contei a história deste esqueleto, quero dizer a história de minha mulher?
– Não me lembra, murmurei.
– E a ti? disse ele voltando-se para a mulher.
– Já.
– Foi um crime, continuou ele.
– Um crime?
– Cometido por mim.
– Pelo senhor?
– É verdade.
O doutor concluiu um pedaço de queijo, bebeu o resto do vinho que tinha no copo, e repetiu:
– É verdade, um crime de que fui autor.
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