Mas isso foi obra de pouco tempo; daí a uma hora voltara a ser o que sempre fora.

Passamos dois dias na pequena vila em que o doutor estava, dizia ele, para examinar umas plantas, porque também era botânico. Ao fim de dois dias dispúnhamos a voltar para a capital; ele porém pediu que nos demorássemos ainda vinte e quatro horas e voltaríamos todos juntos.

Acedemos.

No dia seguinte de manhã convidou a mulher a ir ver umas lindas parasitas no mato que ficava perto. A mulher estremeceu, mas não ousou recusar.

– Vem também? disse ele.

– Vou, respondi.

A mulher cobrou alma nova e deitou-me um olhar de agradecimento. O doutor sorriu à socapa. Não compreendi logo o motivo do riso; mas daí a pouco tempo tinha a explicação.

Fomos ver as parasitas, ele adiante com a mulher, eu atrás de ambos, e todos três silenciosos.

Não tardou que um riacho aparecesse aos nossos olhos; mas eu mal pude ver o riacho; o que eu vi, o que me fez recuar um passo, foi um esqueleto.

Dei um grito.

– Um esqueleto! exclamou D. Marcelina.

– Descansem, disse o doutor, é o de minha primeira mulher.

– Mas...

– Trouxe-o esta madrugada para aqui.

Nenhum de nós compreendia nada.

O doutor sentou-se numa pedra.

– Alberto, disse ele, e tu, Marcelina. Outro crime devia ser cometido nesta ocasião; mas tanto te amo, Alberto, tanto te amei, Marcelina, que eu prefiro deixar de cumprir a minha promessa...

Ia interrompê-lo; mas ele não me deu ocasião.

– Vocês amam-se, disse ele.

Marcelina deu um grito; eu ia protestar.

– Amam-se que eu sei, continuou friamente o doutor; não importa! É natural. Quem amaria um velho estúrdio como eu? Paciência. Amem-se; eu só fui amado uma vez; foi por esta.

Dizendo isto abraçou-se ao esqueleto.

– Doutor, pense no que está dizendo...

– Já pensei...

– Mas esta senhora é inocente. Não vê aquelas lágrimas?

– Conheço essas lágrimas; lágrimas não são argumentos. Amam-se, que eu sei; desejo que sejam felizes, porque eu fui e sou teu amigo, Alberto. Não merecia certamente isso...

– Oh! meu amigo, interrompi eu, veja bem o que está dizendo; já uma vez foi levado a cometer um crime por suspeitas que depois soube serem infundadas. Ainda hoje padece o remorso do que então fez. Reflita, veja bem se eu posso tolerar semelhante calúnia.

Ele encolheu os ombros, meteu a mão no bolso, e tirou um papel e deu-mo a ler. Era uma carta anônima; soube depois que fora escrita pelo Soares.

– Isto é indigno! clamei.

– Talvez, murmurou ele.

E depois de um silêncio:

– Em todo o caso, minha resolução está assentada, disse o doutor. Quero fazê-los felizes, e só tenho um meio: é deixá-los. Vou com a mulher que sempre me amou. Adeus!

O doutor abraçou o esqueleto e afastou-se de nós. Corri atrás dele; gritei; tudo foi inútil; ele metera-se no mato rapidamente, e demais a mulher ficara desmaiada no chão.

Vim socorrê-la; chamei gente. Daí a uma hora, a pobre moça, viúva sem o ser, lavava-se em lágrimas de aflição.

 

CAPÍTULO VI

 

Alberto acabara a história.

– Mas é um doudo esse teu Dr. Belém! exclamou um dos convivas rompendo o silêncio de terror em que ficara o auditório.

– Ele doudo? disse Alberto. Um doudo seria efetivamente se porventura esse homem tivesse existido. Mas o Dr. Belém não existiu nunca, eu quis apenas fazer apetite para tomar chá. Mandem vir o chá.

É inútil dizer o efeito desta declaração.

abertura

Autor e obra

 

Apesar do final, que aparentemente faz o leitor retornar ao mundo familiar cotidiano, a estranheza deste conto de Machado de Assis não se perde. Um final reconciliador, mas um conto que até ali seguia o caminho da exploração do inusitado, da morbidade incutida no ser humano... Ou talvez num ser humano peculiar, esse Dr. Belém. Ora, o logro que o autor lança nas últimas linhas do conto contra seus leitores pode ser mais sutil do que aparenta à primeira vista. Afinal, que discussão mais sem sentido, essa, se teria ou não existido um personagem de ficção?

Esses ingredientes, mesmo aqui temperados com o corrosivo humor machadiano, são típicos do gótico romântico.