Não vê aquelas lágrimas?

– Conheço essas lágrimas; lágrimas não são argumentos. Amam-se, que eu sei; desejo que sejam felizes, porque eu fui e sou teu amigo, Alberto. Não merecia certamente isso...

– Oh! meu amigo, interrompi eu, veja bem o que está dizendo; já uma vez foi levado a cometer um crime por suspeitas que depois soube serem infundadas. Ainda hoje padece o remorso do que então fez. Reflita, veja bem se eu posso tolerar semelhante calúnia.

Ele encolheu os ombros, meteu a mão no bolso, e tirou um papel e deu-mo a ler. Era uma carta anônima; soube depois que fora escrita pelo Soares.

– Isto é indigno! clamei.

– Talvez, murmurou ele.

E depois de um silêncio:

– Em todo o caso, minha resolução está assentada, disse o doutor. Quero fazê-los felizes, e só tenho um meio: é deixá-los. Vou com a mulher que sempre me amou. Adeus!

O doutor abraçou o esqueleto e afastou-se de nós. Corri atrás dele; gritei; tudo foi inútil; ele metera-se no mato rapidamente, e demais a mulher ficara desmaiada no chão.

Vim socorrê-la; chamei gente. Daí a uma hora, a pobre moça, viúva sem o ser, lavava-se em lágrimas de aflição.

 

CAPÍTULO VI

 

Alberto acabara a história.

– Mas é um doudo esse teu Dr. Belém! exclamou um dos convivas rompendo o silêncio de terror em que ficara o auditório.

– Ele doudo? disse Alberto. Um doudo seria efetivamente se porventura esse homem tivesse existido. Mas o Dr. Belém não existiu nunca, eu quis apenas fazer apetite para tomar chá. Mandem vir o chá.

É inútil dizer o efeito desta declaração.

abertura

Autor e obra

 

Apesar do final, que aparentemente faz o leitor retornar ao mundo familiar cotidiano, a estranheza deste conto de Machado de Assis não se perde. Um final reconciliador, mas um conto que até ali seguia o caminho da exploração do inusitado, da morbidade incutida no ser humano... Ou talvez num ser humano peculiar, esse Dr. Belém. Ora, o logro que o autor lança nas últimas linhas do conto contra seus leitores pode ser mais sutil do que aparenta à primeira vista. Afinal, que discussão mais sem sentido, essa, se teria ou não existido um personagem de ficção?

Esses ingredientes, mesmo aqui temperados com o corrosivo humor machadiano, são típicos do gótico romântico. No entanto, tantas são as sutilezas da literatura de Machado de Assis, tão profusas as combinações de características de diferentes escolas e estilos de época, que é perda de tempo tentar encaixá-lo numa vertente em particular, ou seja, num gênero literário. Já o seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, a narrativa de um defunto que se levanta da tumba para nos propiciar sua autobiografia, apesar da evidente (e original) utilização de elementos do terror, tem uma personalidade literária própria, acima de qualquer classificação. “Um esqueleto” guarda essa mesma mistura da melancolia com a galhofa; e o Dr. Belém, como Brás Cubas, apesar de algum tom caricatural utilizado na composição do personagem, é alguém condenado a não se refazer: ambos perdem a vida, seja por tê-la desperdiçado, seja por não conseguir se separar da esposa morta – tornada presente por meio de seu esqueleto, de seus restos –, e a ruína física é não só uma mania especial do Romantismo, como também uma obsessão do gótico.

Ora, enterrar os mortos, deixá-los ir, é um dilema crucial da vida.

“Um esqueleto” é de 1875. Foi publicado pela primeira vez no Jornal das Famílias, uma revista de assuntos variados. Até hoje é um dos contos menos lidos e estudados de Machado.

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 1839 e morreu em 1908. De origem humilde, foi aclamado ainda em vida como o maior romancista brasileiro. É o único escritor brasileiro colocado entre os maiores clássicos da literatura mundial por diversos estudiosos de literatura. Foi um dos fundadores (em 1896) e o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, que também é chamada de A Casa de Machado de Assis.