Mas então descobri que ele tinha muitos conhecidos, e nas mais diferentes classes da sociedade. Havia um pequeno sujeito pálido, com olhos escuros e cara de rato, que me foi apresentado como sr. Lestrade, e que apareceu três ou quatro vezes numa única semana. Certa manhã, surgiu uma jovem, elegantemente vestida, que se demorou por cerca de meia hora. Na mesma tarde, veio um visitante malvestido que lembrava um mascate judeu, e que me pareceu muito agitado, quase imediatamente seguido por uma mulher idosa bastante desalinhada. Noutra ocasião, um velho cavalheiro de cabelos brancos teve uma entrevista com meu companheiro, e ainda noutra, um carregador de estrada de ferro com seu uniforme de belbutina. Quando aparecia qualquer um desses indivíduos indefinidos, Sherlock Holmes pedia a sala de estar, e eu me retirava para o meu quarto. Ele sempre se desculpava por me causar esse incômodo.
– Tenho de usar esta sala como lugar de negócios – dizia –, essas pessoas são meus clientes. – Mais uma vez tive uma oportunidade de lhe perguntar sem rodeios o que fazia, e mais uma vez a delicadeza me impediu de forçar outro homem a me confiar seus segredos. Imaginei na época que tinha fortes razões para não se referir a seu trabalho, mas ele logo dissipou a ideia abordando o assunto por sua livre vontade.
Foi no dia 4 de março, como tenho boas razões para me lembrar, que me levantei um pouco mais cedo do que o habitual, e vi que Sherlock Holmes ainda não acabara de tomar o seu café da manhã. A proprietária estava tão acostumada com meus hábitos de acordar tarde que ainda não trouxera, nem preparara meu café. Com a petulância absurda da humanidade, toquei a campainha e dei um aviso breve e ríspido de que estava de pé. Depois peguei uma revista na mesa e tentei passar o tempo folheando-a, enquanto meu companheiro mastigava silenciosamente a sua torrada. Um dos artigos tinha uma marca de lápis no título, e naturalmente comecei a correr os olhos por ele.
Tinha um título um tanto ambicioso, “O Livro da Vida”, e procurava mostrar o quanto um homem observador podia aprender por meio de um exame preciso e sistemático de tudo que encontrasse pela vida. O artigo me pareceu uma mistura extraordinária de sagacidade e contrassenso. O raciocínio era rigoroso e intenso, mas as deduções me pareciam forçadas e exageradas. O autor afirmava ser capaz de compreender os pensamentos mais íntimos de um homem por uma expressão momentânea, a contração de um músculo ou o desvio de um olhar. Segundo ele, o engano era uma impossibilidade no caso de alguém treinado para observar e analisar. As suas conclusões eram tão infalíveis quanto muitas proposições de Euclides. Tão surpreendentes pareciam ser os seus resultados aos olhos dos não iniciados que, enquanto esses não aprendessem os processos pelos quais ele chegara até aquelas conclusões, bem que poderiam considerá-lo um adivinho.
“A partir de uma gota d’água”, dizia o autor, “um lógico podia inferir a possibilidade de um Atlântico ou de um Niágara, sem ter visto nenhum dos dois, nem ter ouvido falar de qualquer um deles. Assim toda a vida é uma grande cadeia, cuja natureza conhecemos sempre que nos mostram um único de seus elos. Como todas as outras artes, a Ciência da Dedução e Análise só pode ser adquirida por meio de longo e paciente estudo, nem é a vida bastante longa para que um mortal alcance a maior perfeição possível nessa arte. Antes de se voltar para aqueles aspectos fatais e mentais da questão que apresentam as maiores dificuldades, que o observador comece por dominar problemas mais elementares. Que, ao encontrar um de seus colegas mortais, aprenda a discernir com um relance de olhos a história do homem, e o ofício ou profissão a que pertence. Por mais pueril que pareça, o exercício afia as faculdades de observação, e ensina onde olhar e o que procurar. Nas unhas de um homem, na manga de seu casaco, na sua bota, nos joelhos de suas calças, nas calosidades de seu dedo indicador ou de seu polegar, na sua expressão, nos punhos de sua camisa – em cada um desses itens, a profissão do homem é claramente revelada. Que todos esses elementos juntos deixem de esclarecer o observador competente, é quase inconcebível.”
– Que monte de asneiras! – gritei, atirando a revista sobre a mesa. – Nunca li um lixo tão grande na minha vida.
– O quê? – perguntou Sherlock Holmes.
– Ora, este artigo – disse, apontando com a minha colher do ovo, enquanto me sentava para tomar o café da manhã. – Sei que você já o leu, pois o marcou. Não nego que seja muito bem escrito.
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