Qualquer das nações gaba a antigüidade, a beleza e a força do seu idioma e despreza o outro.
No entanto, o imperador, orgulhoso da vantagem que obtivera sobre os Blefuscudianos pela tomada da sua esquadra, obrigou os embaixadores a apresentarem as suas credenciais e a fazerem a sua alocução em língua liliputiana, e, como verdade, seja dito que, em virtude do tráfico e do comércio que existem entre os dois países, da recepção mútua dos exilados e do costume em que os Liliputianos estão de mandar a flor de sua nobreza a Blefuscu, a fim de se educar e aprender os seus exercícios, há poucas pessoas de distinção no império de Lilipute e também pouquíssimos negociantes ou marinheiros nas praças marítimas que não falem as duas línguas.
Por então, tive ensejo de prestar à Sua Majestade imperial assinalado serviço.
Fui acordado certa ocasião, — devia ser perto de meia-noite — com os gritos de uma multidão, que se juntara à porta de minha casa; ouvi freqüentemente a palavra burgum. Alguns cortesãos, abrindo passagem por entre a multidão, imploraram-me que, sem detença, me dirigisse ao palácio, e que lavrava incêndio nos aposentos da imperatriz, por descuido de uma das suas aias que adormecera lendo um poema blefuscudiano. Levantei-me imediatamente e dirigi-me ao palácio com certo custo, para que não pisasse ninguém na minha passagem, o que consegui. Quando cheguei, vi que já se tinham aplicado as escadas às paredes dos quartos e estavam bem fornecidos de baldes; a água, porém, ficava muito longe. Esses baldes deviam ter talvez o tamanho de dedais, e o pobre povo acarretava-os com a máxima solicitude. O incêndio lavrava já com bastante intensidade e aquele magnífico palácio seria infalivelmente reduzido a cinzas, se, por uma extraordinária presença de espírito, me não ocorresse de repente uma idéia. Na noite precedente, tinha bebido em grande quantidade um certo vinho branco chamado glimigrim, importado de uma província de Blefuscu e que tem grandes propriedades diuréticas. Desatei então a urinar em tal abundância e dirigi o jato com tanto acerto e tão apropositadamente que, dentro de três minutos, o fogo estava completamente apagado e o resto daquele soberbo edifício, que custara somas imensas, ficou preservado de tal incêndio.
Não sabia se o imperador veria com bons olhos o serviço que acabava de prestar-lhe, porque, consoante às leis fundamentais da nação, era um crime capital e digno da pena de morte verter águas nas proximidades do palácio imperial; fiquei, porém, tranqüilo, quando soube que Sua Majestade dera ordem ao grão juiz para me enviar cartas de agradecimento; disseram-me, depois, que a imperatriz, experimentando um grande terror pelo ato que praticara, fora transportada para o lado mais afastado do átrio e se resolvera a nunca mais habitar os aposentos que eu ousara macular com ação desonesta e impudente.
Capítulo VI
Os costumes dos habitantes de Lilipute — Sua literatura — Suas leis e maneiras de educar os filhos.
Ainda que eu reserve a descrição deste império para um trabalho à parte, julgo um dever, dar, dele, aqui, ao leitor, uma idéia geral. Como a estatura ordinária daquela gente pouco maior é do que seis polegadas, há uma proporção exata em todos os outros animais, assim como nas árvores. Por exemplo: os cavalos e os bois maiores regulam entre quatro e cinco polegadas, aproximadamente; os patos são quase do tamanho de um pardal; quanto aos insetos, esses eram quase invisíveis para mim; a natureza, porém, soube ajustar a vista dos habitantes de Lilipute a todos os objetos que lhes são destinados. Para fazer conhecer bem quanto o seu olhar é penetrante, com respeito aos objetos que lhes ficam próximos, basta dizer que vi uma vez com prazer um cozinheiro hábil depenando uma cotovia que não era maior do que uma mosca vulgar, e uma rapariga a enfiar um fio de seda invisível numa agulha também invisível.
Servem-se de caracteres e de letras, e o seu modo de escrever é notável, não o fazendo nem da esquerda para a direita, como na Europa; nem da direita para a esquerda, como os Árabes; nem de cima para baixo, como na China; nem de baixo para cima como os Caucasianos, mas obliquamente e de um a outro ângulo do papel, como as senhoras em Inglaterra.
Enterram os mortos de cabeça para baixo, porque imaginam que, dentro de onze mil luas, todos os mortos devem ressuscitar; que, por essa época, a Terra, que julgam plana, se voltará de baixo para cima e que, por esse meio, no momento da ressurreição, seriam encontrados de pé. Os sábios, entretanto, reconhecem o absurdo daquela opinião, mas permanece o uso antigo, baseado nas idéias do povo.
Têm leis e costumes singularíssimos, que eu talvez tentasse justificar, se não fossem contrários aos da minha querida pátria. A primeira, de que farei menção, diz respeito aos denunciantes. Todos os crimes contra o Estado são punidos nesse país com extremo rigor; se o acusado, porém, prova evidentemente a sua inocência, o acusador é logo condenado a uma ignominiosa morte e todos os seus bens confiscados em prol do inocente. Se o acusador é pobre, o imperador, do seu tesouro particular, indeniza o acusado de todas as perdas e danos.
A fraude é considerada como um crime maior do que o roubo; esta a razão por que é sempre punida com a morte, visto como existe o princípio de que o cuidado e a vigilância, com um espírito vulgar, podem garantir os bens de um indivíduo contra as tentativas dos ladrões, mas a probidade não tem defesa contra a astúcia e a má fé.
Embora eu considere os castigos e as grandes recompensas como os eixos em que gira o governo, ouso dizer que a máxima de castigar e recompensar não é observada na Europa com a mesma sensatez como no império de Lilipute. Todo aquele que pode apresentar provas bastantes de que observou fielmente as leis do seu país durante setenta e três luas, tem o direito de pretender certas regalias, consoante ao seu nascimento e a sua posição, com certa quantia tirada de um fundo destinado a esse fim; alcança até o título de snipall, ou de legítimo, que é apenso ao seu nome; esse título, porém, não passa aos descendentes. Estes povos vêem como um prodigioso defeito político entre nós que todas as nossas leis sejam ameaçadoras e que a infração seja punida com os mais severos castigos, enquanto a sua observância não dá direito a recompensa alguma; por este motivo representam a justiça com seis olhos, dois adiante, dois atrás e um de cada lado (para simbolizar a circunspeção), segurando na mão direita um saco cheio de ouro, e empunhando na esquerda uma espada embainhada, para demonstrar que está mais disposta a premiar do que a punir.
Na escolha que fazem dos súditos para desempenharem cargos públicos, olham mais para a probidade do que para o talento. Como o governo é necessário ao gênero humano, crêem que a Providência nunca teve em mira fazer da administração dos negócios públicos uma ciência complicada e misteriosa, acessível apenas a um limitado número de espíritos raros e sublimes, desses três ou quatro prodígios, que aparecem lá de séculos a séculos; mas julgam que a verdade, a justiça, a temperança e as restantes virtudes estão ao alcance de toda gente e que a prática dessas virtudes, acompanhada de alguma experiência e bons intuitos, tornam quem quer que seja apto para servir ao seu país, embora muito raquítico e muito tacanho.
Persuadindo-se de que os talentos superiores estão longe de suprir as virtudes morais, dizem eles que os empregos não poderiam ser confiados a mais perigosas mãos do que às dos grandes talentos que não possuem virtude alguma, e que os erros nascidos da ignorãncia de um ministro probo não têm tantas conseqüências funestas para o bem do seu povo, como as obscuras práticas desse ministro, cujas tendências fossem depravadas, cujas intenções fossem criminosas ou predispostas a fazer o mal impunemente.
Aquele dos Liliputianos que não acreditar na providência divina é declarado incapaz de exercer qualquer cargo público. Como os soberanos se julgam, muito justamente, delegados da Providência, os Liliputianos supõem que nada há mais absurdo nem mais incoerente do que o procedimento de um príncipe que se serve de gente sem religião, que nega essa suprema autoridade de que se considera depositário e da qual, de fato, recebe a que possui.
Referindo-me a estas leis e às seguintes, apenas falo das leis originais e primitivas dos Liliputianos. Sei que, pelas modernas leis, estes povos caíram em um grande excesso de corrupção; prova-o o vergonhoso uso de obter os mais elevados empregos dançando na corda e os lugares de distinção os que saltam à vara larga. Note o leitor que esse indigno uso foi introduzido pelo pai do atual imperador.
Entre aquele povo, a ingratidão é tida como um crime enorme, como em outro tempo o foi, segundo refere a história, aos olhos de algumas nações virtuosas. Dizem os Liliputianos que todo indivíduo que se torna ingrato para com o seu benfeitor, deve ser necessariamente inimigo de todos os outros homens.
Julgam os naturais de Lilipute que o pai e a mãe não devem ser encarregados da educação dos filhos, e há, em todas as cidades, colégios públicos, para onde todos os progenitores, exceto camponeses e operários, são obrigados a mandar os filhos de ambos os sexos, para serem educados e instruídos. Assim que atingem a idade de vinte luas, supõem-nos dóceis e capazes de aprender. As escolas são de diversas espécies, consoante à diferença de sexo ou de sangue. Professores hábeis educam as crianças para um modo de vida conforme a sua ascendência, os seus próprios dotes de espírito e as suas tendências.
Os seminários para os filhos de nobres têm professores sérios e eruditos. O vestuário e subsistência dos rapazes são simples. Inspiram-lhes princípios de honra, de justiça, de coragem, de modéstia, de religião e de amor pela pátria. Até à idade dos quatro anos são vestidos pelos homens; dessa idade em diante, são obrigados a se vestirem sós, embora sejam de nobre estirpe. Só têm licença para brincar na presença do professor e por esse sistema evitam funestas impressões de doidice e de vício que cedo começam a corromper os costumes e as tendências da mocidade. Os pais podem visitá-los duas vezes por ano.
1 comment