Fiquei louco de contentamento ao ver o pavilhão inglês. Meti as vacas e os carneiros na algibeira do gibão e subi para bordo com a minha pequena carga de víveres. Era um navio mercante inglês, que regressava do Japão pelos mares do norte e do sul, comandado pelo capitão João Bidell, de Depford, honrado homem e excelente marinheiro.
Havia a bordo perto de cinqüenta homens, entre os quais encontrei um antigo camarada meu, Pedro Williams, que falou elogiosamente de mim ao capitão. Esta boa criatura proporcionou-me magnífico acolhimento e pediu-me que lhe dissesse de onde vinha e para onde me dirigia, o que fiz em poucas palavras; julgou, porém, que a fadiga e os perigos que eu tinha corrido me haviam transtornado a cabeça, pelo que tirei logo da algibeira as vacas e os carneiros, o que deu lugar a uma grande admiração de seu lado, provada, assim, a veracidade do que acabava de narrar. Mostrei-lhe as moedas de ouro, que me dera o rei de Blefuscu, e bem assim o retrato em tamanho natural e muitas outras curiosidades do país. Dei-lhe duas bolsas com duzentos spruggs e prometi que, chegando à Inglaterra, lhe faria presente de uma vaca e de uma ovelha prenhes.
Não importunarei o leitor com os pormenores da minha viagem; aproamos às Dunas em 13 de Abril de 1702. Uma única fatalidade me aconteceu: os ratos do navio arrebataram-me uma das ovelhas. Desembarquei o resto do meu gado com excelente saúde e soltei-o a pastar no canteiro de um jardim, onde se jogava bola, em Greenwich.
Durante o pouco tempo que me deixei ficar em Inglaterra, amealhei um razoável pecúlio em mostrar os meus animais a várias pessoas de importância e até à gente do povo, e, antes de empreender a minha segunda viagem, desfiz-me deles por seiscentas libras esterlinas. Após o meu último regresso, em vão procurei a raça que julgava consideravelmente aumentada, principalmente os carneiros; esperava que tudo aquilo revertesse em favor das nossas manufaturas de lã pela finura dos velos.
Piquei apenas dois meses em companhia de minha mulher e dos meus: a insaciável paixão de ver terras estranhas não consentia que estivesse muito tempo sedentário. Entreguei a minha mulher mil e quinhentas libras esterlinas e alojei-a numa bela casa em Redriff; levei comigo o resto dos meus bens, uma parte em dinheiro e outra em mercadorias, com o intuito de aumentá-los. Meu tio John deixara-me umas terras perto de Epping, que rendiam trinta libras esterlinas e eu alugara a longo prazo os Touros Negros, em Fotherlane, que me davam o mesmo rendimento. Por este processo, não corria o risco de deixar minha família na necessidade de recorrer à caridade da paróquia. Meu filho John, a quem dei o nome de meu tio, aprendia latim e freqüentava o colégio; minha filha Isabel, casada atualmente e com filhos, consagrava-se ao trabalho de agulha. Despedi-me de minha mulher e de meus filhos e, apesar de bastantes lágrimas choradas de parte a parte, embarquei corajosamente a bordo do À ventura, navio mercante, de trezentas toneladas, comandado pelo capitão João Nicolau. de Liverpool.
Parte 2
Viagem a Brobdingnac
Capítulo I
O autor, depois de haver suportado um grande temporal, embarca num escaler para se dirigir à terra e é agarrado por um dos seus naturais — Como foi tratado — Esboço sobre o país e o seu povo.
TENDO sido condenado pela natureza e pela fortuna a uma agitada existência, dois meses depois da minha chegada, como já referi, tornei a deixar a minha terra natal e embarquei nas Dunas, em 20 de Junho de 1702, a bordo do navio À ventura, cujo capitão, João Nicolau, da província de Cornualha, partia para Surate. Tivemos vento favorável até às alturas do Cabo da Boa Esperança, onde lançamos ferro para fazer aguada. Encontrando-se o nosso capitão atacado de uma febre intermitente, só pudemos sair do Cabo em fins de Março. Tornamos então a fazer-nos de vela e a nossa viagem decorreu bem até o estreito de Madagascar; chegando, porém, ao norte desta ilha, os ventos, que nesses mares sopram sempre entre norte e oeste, desde o princípio de Dezembro até princípio de Maio, começaram em 29 de Abril a soprar muito violentamente do lado de oeste, o que durou vinte dias seguidos, e nesse prazo fomos impelidos um pouco para o oriente das ilhas Molucas sobre três graus ao norte da linha equinocial, o que o nosso capitão descobriu pelo cálculo feito no segundo dia de Maio, quando o vento amainou; sendo, porém, muito experimentado na navegação desses mares, deu-nos ordem para nos prepararmos para sofrer uma terrível tempestade, que não tardou a se desencadear. Principiou a levantar-se um pé de vento chamado monção. Temendo que o vento se tornasse demasiadamente forte, ferramos a vela de estai e pusemo-nos de capa para ferrar a mezena; o temporal, porém, aumentava, e fizemos amarrar os canhões e ferramos a mezena. O navio estava ao largo, e pareceu-nos que o melhor partido a tomar era ir de vento em popa. Amarramos a mezena e esticamos as escotas; o leme estava voltado ao vento e o navio governava bem. Largamos a vela grande, mas ficou rasgada com a violência do temporal. Em seguida, arriamos a grande verga, a fim de a desmantilhar e cortamos todas as cordagens e o cadernal que a segurava. No mar encapelado as vagas entrechocavam-se. Tiramos as malaguetas e ajudamos o timoneiro, que não podia governar só. Não quisemos arriar o mastro da gávea, porque o navio aguentava-se melhor correndo com o tempo e estávamos persuadidos de que prosseguiria o seu rumo mesmo com o mastro içado.
Vendo que nos encontrávamos muito ao largo depois da tempestade, largamos a mezena e a vela grande e navegamos com vento da alheta; em seguida largamos o velacho, a vela de estai e a gávea. O nosso rumo era este-nordeste, e o vento era de sudoeste. Amarramos a estibordo e desamarramos de barlavento, braceamos as bolinas e pusemos o navio mais perto do vento, a todo o pano. Durante este temporal, que foi seguido desse impetuoso vento, de este-sudoeste, fomos impelidos, segundo os meus cálculos, para quinhentas léguas aproximadamente para o Oriente, de modo que o mais velho e o mais experimentado dos marinheiros não nos soube dizer em que parte do mundo estávamos.
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