A louvação unânime de toda a raça seria para mim de menor conseqüência que o relinchar destes dois Huyhnhnms degenerados que mantenho em meu estábulo; porque destes, degenerados como são, eu ainda melhoro em algumas virtudes sem nenhuma mistura de vício.
Presumem pensar acaso estes miseráveis animais que sou tão degenerado a ponto de defender minha veracidade? Yahu como sou, é bem conhecido por toda a terra dos Huyhnhnm, que, pelas instruções e exemplos de meu ilustre mestre, fui capaz de no espaço de dois anos (embora confesse com a maior dificuldade) de remover aquele infernal hábito de mentir, trapacear, enganar, e prevaricar, tão profundamente enraizado nas próprias almas de todos da minha espécie; especialmente os Europeus.
Tenho outras queixas a fazer sobre esta vexatória ocasião; mas me esquivo de aborrecer-me ou a você por mais tempo. Preciso livremente confessar, que desde meu último retorno, algumas corrupções de minha natureza Yahu reviveram em mim através de minha conversa com uns poucos de sua espécie, e particularmente com os de minha própria família, por uma inevitável necessidade; do contrário eu nunca teria tentado um projeto tão absurdo como o de reformar a raça Yahu neste reino: Mas acabei com todos tais visionários esquemas para sempre.
2 de abril, 1727
Capítulo I
O autor conta de modo sucinto os principais motivos que o levaram a viajar — Naufraga e salva-se a nado chegando ao país de Lilipute — Prendem-no e conduzem-no para o interior.
MEU pai, cujas propriedades, situadas na província de Nottingham, eram medíocres, tinha cinco filhos; era eu o terceiro. Mandou-me ele para o colégio Emanuel, em Cambridge, aos quatorze anos. Permaneci aí três anos, que empreguei com utilidade. Como, porém, a minha educação fosse muito dispendiosa, puseram-me como aprendiz em casa do Sr. James Bates, famoso cirurgião de Londres, onde fiquei até aos vinte e um. Meu pai, de tempos a tempos, enviava-me algumas pequenas quantias, que empreguei em aprender pilotagem e outros ramos de matemáticas mais precisos aos que manifestam o desejo de viajar pelo mar, pois eu supunha ser essa a minha vida futura.
Deixando a companhia do Sr. Bates, voltei para casa de meu pai, e, tanto dele como de meu tio John e de outros parentes, consegui arranjar a quantia de quarenta libras esterlinas por ano para a minha subsistência em Leyde. Entreguei-me e apliquei-me ao estudo da medicina durante dois anos e sete meses, convencido de que tal estudo, algum dia, me seria útil nas minhas viagens.
Pouco depois do meu regresso de Leyde, pela boa recomendação do meu excelente professor, o Sr. Bates, consegui emprego de cirurgião no Andorinha, no qual embarquei por três anos e meio, sob as ordens do comandante Abrahão Panell. Entrementes, viajei pelo Levante e proximidades.
Quando voltei, resolvi fixar residência em Londres, e o Sr. Bates animou-me a tomar essa resolução, recomendando-me aos seus clientes. Aluguei parte de um palacete situado no bairro Old-Jewry e pouco depois esposei Maria Burton, segunda filha de Eduardo Burton, negociante da rua de Newgate, a qual me trouxe quatrocentas libras esterlinas de dote.
Mas, passados dois anos, o meu querido professor, senhor Bates, faleceu e, faltando o meu protetor, a minha clientela principiou a minguar. A minha consciência não me consentia imitar o modo de proceder da maior parte dos cirurgiões, cuja ciência é deveras semelhante à dos procuradores: esta a razão por que, consultando minha mulher e alguns dos meus íntimos, resolvi fazer nova viagem por mar.
Fui, depois, cirurgião em dois navios, e muitas outras viagens que fiz, durante seis anos, às Índias orientais e ocidentais, aumentaram um pouco a minha fortuna.
Empreguei os meus ócios em ler os melhores autores antigos e modernos, levando sempre comigo certo número de livros, e, quando vinha à terra, não descurava de notar os usos e costumes dos povos, aprendendo, simultaneamente, a língua do país, o que se me tornava fácil, visto possuir boa memória.
Tendo sido pouco feliz numa das minhas últimas viagens, aborreci-me do mar e deliberei meter-me em casa com minha mulher e meus filhos. Mudei de residência e fui de Old-Jewry para a rua de Fetter-Lane e, daí, para Wapping, na esperança de praticar com os marinheiros, mas tal não aconteceu.
Depois de, baldadamente, ter esperado três anos que os meus negócios melhorassem, aceitei vantajoso partido, que me foi oferecido pelo capitão Guilherme Prichard, que ia partir no Antílope, em viagem para o mar do Sul. A 4 de Maio de 1699, embarcamos em Bristol e a nossa viagem foi, a princípio, muito feliz.
Ocioso se torna maçar o leitor com a pormenorização das nossas aventuras por esses mares; basta apenas dizer-lhe que, ao passarmos pelas índias orientais, fomos acometidos por um temporal de tamanha violência que nos lançou para o noroeste da terra de Van Diemen. Por uma observação que fiz, notei que estávamos a 30,2 de latitude meridional. Da tripulação haviam morrido doze homens em virtude do exaustivo trabalho e da má alimentação. A 5 de Novembro, que era o princípio do estio naqueles países, o tempo estava um pouco escuro, e os marinheiros avistaram uma rocha que se achava afastada do navio apenas o comprimento de um cabo; mas o vento era tão forte, que fomos impelidos diretamente contra o escolho, onde chocamos num momento. Eu e mais cinco companheiros saltamos para uma lancha e, à força de remar, conseguimos livrar-nos do navio e do escolho. Navegamos, assim, perto de três léguas, mas por fim o cansaço não nos deixou mais remar; completamente extenuados, deixámo-nos levar ao sabor das vagas e em breve uma nortada rija virou-nos a lancha.
Desconheço qual tivesse sido a sorte dos meus companheiros de lancha, nem dos que se salvaram do escolho, ou ainda dos que ficaram no navio, mas desconfio que pereceram todos; quanto a mim, nadei ao acaso e fui levado para terra pelo vento e pela maré. De vez em quando estendia as pernas a ver se encontrava fundo; por fim, estando quase exausto, tomei pé. Por então, o temporal amainara. Como o declive era um tanto insensível, caminhei perto de meia légua pelo mar, antes que pusesse pé em terra firme. Andei quase um quarto de légua sem avistar casa alguma, nem encontrar vestígios de habitantes, embora esse país fosse muito povoado. O cansaço, o calor e o meio quartilho de aguardente que bebera ao deixar o navio, tinham-me dado sono. Deitei-me na relva, que era de uma finura extrema, e pouco depois dormia profundamente. Dormi durante nove horas seguidas. Ao cabo desse tempo, acordei, tentei levantar-me, mas em vão o fiz. Vi-me deitado de costas, notando também que as pernas e os braços estavam presos ao chão, assim como os cabelos.
1 comment