Tomei a liberdade de perguntar-lhe por que vingara em si própria o crime de outrem; baixou os olhos e respondeu que os historiadores, com receio de a darem por fraca, a haviam enlouquecido; em seguida, desapareceu.

 

O governador fez sinal para que aparecessem César e Bruto. Fiquei atônito de admiração e de respeito à vista de Bruto, e César confessou-me que todas as suas belas ações tinham ficado abaixo da de Bruto, que lhe tirara a vida para livrar Roma da sua tirania.

Tive vontade de ver Homero; apareceu-me; conversei com ele e perguntei-lhe o que pensava acerca da sua Ilíada. Declarou-me que ficara surpreendido com os excessivos louvores que lhe teciam havia três mil anos; que o seu poema era medíocre e eivado de tolices; que não tinha agradado no seu tempo senão por causa da beleza da sua dicção e da harmonia dos seus versos, e que ficara assombrado porque, visto a sua língua estar morta, e ninguém lhe conhecer as belezas, o espírito e as finuras, achava ainda pessoas ocas ou muito estúpidas, que o admiravam. Sófocles e Eurípedes, que o acompanhavam, tiveram pouco mais ou menos a mesma opinião e troçaram principalmente dos nossos sábios modernos que, obrigados a reconhecer os disparates das antigas tragédias, quando eram fielmente traduzidas, sustentavam, no entanto, que em grego é que se encontravam as belezas e era preciso saber esse idioma para julgar com segurança.

 

Quis ver Aristóteles e Descartes. O primeiro confessou-me que nada ouvira de física senão aos filósofos seus contemporâneos, e todos aqueles que tinham vivido entre ele e Descartes; acrescentou que tomara por bom caminho, ainda que fosse muitas vezes enganado, principalmente pelo seu extravagante sistema com respeito à alma dos animais. Descartes tomou a palavra e disse que tinha encontrado alguma coisa e soubera estabelecer muito bons princípios, porém que não tinha ido muito longe, e que todos aqueles que doravante quisessem percorrer o mesmo trilho, seriam sempre retidos pela fraqueza do seu espírito e obrigados a tatear; que era uma grande loucura passar a vida a procurar sistemas e que a verdadeira física conveniente e útil ao homem era fazer um amontoado de experiências e de se limitar a isso; que tivera por discípulos muitos insensatos, entre os quais se podia contar um certo Spinoza.

Tive a curiosidade de ver diversos mortos ilustres dos últimos tempos, e sobretudo mortos distintos, porque senti sempre grande veneração pela nobreza. Oh! quantas coisas espantosas não vi, quando o governador fez passar revista diante de mim a todo o cortejo de antepassados da mor parte dos nossos marqueses, condes, fidalgos modernos! quanto prazer não senti em ver a sua origem e todos os personagens que lhes transmitiram o seu sangue! Vi claramente o motivo por que certas famílias têm o nariz comprido, outras o queixo pontiagudo, outras o rosto abaçanado e as feições horríveis e ainda por que outras têm belos olhos e a tez delicada e loura; por que é que, em certas famílias, há muitos doidos e estouvados, e em outras, muitos velhacos e gatunos; por que a índole de umas é má, brutal, baixa e covarde, o que as distingue tanto como os brasões e as librés. Compreendi, finalmente, a razão por que Polidoro Virgílio dissera acerca de certas castas:

Nec vir fortis, nec fcemina casta. (1) O que me pareceu mais notável foi ver os que, tendo trazido originariamente o mal imundo a certas famílias, tinham feito esse triste legado a toda a sua posteridade. Fiquei ainda surpreendido em notar, na genealogia de certos fidalgos, pajens, lacaios, professores de dança e de canto, etc.

Conheci claramente a razão por que os historiadores transformaram guerreiros imbecis e covardes em grandes capitães; insensatos e pequenos gênios em grandes políticos; bajuladores e cortesãos em pessoas de bem; ateus em homens cheios de religião; infames devassos em castos, e delatores de profissão em homens verdadeiros e sinceros. Soube de que modo pessoas inocentíssimas tinham sido condenadas à morte ou banidas da sociedade pela intriga dos favoritos que haviam corrompido os juízes; como sucedera que homens de baixa extração e sem merecimento haviam sido guindados aos mais elevados cargos; como os alcoviteiros e as rameiras tinham muitas vezes abalado os mais importantes negócios e ocasionado no universo os maiores acontecimentos. Oh! como então fiz uma baixa idéia da humanidade! como a prudência e a probidade dos homens me pareceram tão mesquinhas, ao ver a origem de todas as revoluções, o vergonhoso motivo das mais brilhantes empresas, as molas, ou antes, os acidentes imprevistos e bagatelas que os tinham feito vencer.

 

Descobri a ignorãncia e a temeridade dos nossos historiadores, que fizeram morrer envenenados certos reis, que ousaram dar a público conversas secretas de um príncipe com o seu primeiro ministro e que têm, segundo se imagina, espionado, para assim dizer, os gabinetes dos soberanos e as secretárias dos embaixadores, para extrair daí curiosas anedotas.

Foi por isso que soube as causas secretas de alguns acontecimentos, que assombravam o mundo; como uma rameira governara um confidente, um confidente um conselho secreto, e o conselho secreto todo um parlamento.

 

Um general do exército confessou-me que conseguira uma vitória pelo seu feitio poltrão e pela sua imprudência, e um almirante disse-me que tinha derrotado contra sua vontade uma esquadra inimiga, quando o seu desejo era deixar derrotar a sua. Houve três reis que me declararam que, no seu reinado, nunca tinham recompensado nem elevado nenhum homem de merecimento, salvo uma vez em que o seu ministro o enganou, enganando-se a si próprio sobre este assunto; que nisto haviam tido razão, porque a virtude era uma coisa muito incômoda na corte.

Tive a curiosidade de me informar por que meios um grande número de pessoas havia conseguido elevadas fortunas. Limitei-me a estes últimos tempos, sem tocar, contudo, no tempo presente, com receio de melindrar estrangeiros, (porque não preciso de advertir que tudo o que tenho dito aqui não respeita à minha querida pátria). Entre esses meios encontrei o preconceito, a opressão, o suborno, a perfídia, o pandarismo e outras idênticas bagatelas, que pouca atenção merecem; mas o pior é que muitos confessaram dever a sua elevação à facilidade que haviam tido, uns por se prestarem às mais horríveis devassidões; outros por entregarem as mulheres e as filhas; outros, por traírem a sua pátria e o seu rei e alguns por se utilizarem do veneno. Após estas descobertas, persuado-me de que será perdoado doravante um pouco menos de estima e veneração pela grandeza, que honro e respeito naturalmente, como todos os inferiores devem fazer com relação àqueles a quem a natureza ou a fortuna colocaram numa fila superior.

 

Lera em alguns livros que os súditos tinham prestado grandes serviços ao seu príncipe e ao seu país. Tive vontade de conhecê-los; disseram-me, porém, que os seus nomes foram esquecidos e que se lembravam agora de alguns apenas, de que os cidadãos haviam feito menção fazendo-os passar por traidores e ladrões. Essas pessoas, pois, cujos nomes haviam esquecido, apareceram-me, todavia, na minha presença, mas com um aspecto humilde e mal vestidos; disseram-me que haviam morrido na miséria e na desgraça e alguns até no patíbulo.

Dentre eles, notei um homem, cujo caso me pareceu extraordinário, que tinha ao seu lado um rapaz de dezoito anos. Declarou-me que fora capitão de navios durante muitos anos e que, no combate naval de Actium, fizera soçobrar a primeira linha, afundara três navios da primeira fila e tomara um do mesmo tamanho, o que fora o único motivo da fuga de Antônio e da completa derrota da sua esquadra; que o rapaz, que estava junto de si, era o único filho, que morrera em combate; acrescentou que, terminada a guerra, veio a Roma para solicitar uma recompensa e pedir o comando de um navio maior, cujo capitão morrera na batalha; mas, sem lhe atenderem o pedido, esse lugar fora dado a um rapaz que nunca vira o mar, filho de um certo liberto que servira uma das amantes do imperador; que, voltando ao seu departamento, o acusaram de ter faltado ao seu dever; e que o comando do seu navio fora confiado a um pajem favorito do vice-almirante Pulícola; que fora, então, obrigado a retirar-se para a sua casa, numa terra afastada de Roma e que aí findara seus dias. Desejando saber se esta história era verídica, pedi para ver Agripa, que, nesse combate, fora o almirante da esquadra vitoriosa; compareceu, e, confirmando a veracidade daquela narrativa, contou mais circunstâncias que a modéstia do capitão omitira.

 

Como todos os personagens evocados se apresentaram tais como haviam sido no mundo, vi com mágoa quanto, durante cem anos, o gênero humano se degenerara; quanto a devassidão, com todas as suas conseqüências, alterara os traços fisionômicos, tornara raquíticos os corpos, relaxara os músculos, afrouxara os nervos, apagara as cores e corrompera a carne dos ingleses.

Enfim, quis ver alguns dos nossos camponeses, de quem se louva a simplicidade, a sobriedade, a justiça, o espírito de liberdade, o valor e o amor pela pátria.

Vi-os e não pude deixar de os comparar com os de hoje, que vendem à custa do dinheiro os seus votos na eleição dos deputados ao Parlamento e que, sob este ponto de vista, possuem toda a finura e todo o manejo das pessoas da corte.


Capítulo VIII


Regresso do autor a Maldonada — Faz-se de vela para o reino de Luggnagg — É preso à sua chegada e levado à corte — Como é recebido.

Tendo chegado o dia da nossa partida, despedi-me de sua alteza o governador de Glubbdudrib e voltei com os meus dois companheiros a Maldonada, onde, depois de ter esperado durante quinze dias, embarquei por fim num navio que se dirigia para Luggnagg. Os dois fidalgos, e ainda umas outras pessoas mais, tiveram a gentileza de me fornecer provisões necessárias para essa viagem e de me conduzir a bordo. Apanhamos um forte temporal e fomos obrigados a governar ao norte para podermos nos afastar de um certo vento forte, que sopra neste ponto por espaço de sessenta léguas. A 21 de Abril de 1709 entramos no rio de Clumegnig, que é uma cidade com porto de mar ao sudoeste de Luggnagg. Lançamos ferro a uma légua da cidade e fizemos sinal para aparecer o piloto. Em menos de meia hora vieram dois a bordo, os quais nos guiaram por meio de escolhos e rochedos, que são muito perigosos nesta baía, e na passagem que conduz a uma bacia onde os navios estão em segurança e que está afastada dos da cidade o comprimento de um cabo.

 

Alguns dos nossos marinheiros, fosse por traição, ou por imprudência, disseram aos pilotos que eu era um estrangeiro e um grande viajante. Estes avisaram o comissário da alfândega, que me dirigiu diversas perguntas na língua balnibarbiana, que é compreendida nesta cidade em virtude do comércio e principalmente pela gente do mar e aduaneira. Respondi em poucas palavras e narrei uma história tão verossímil e tão extensa quanto me foi possível; no entanto, julguei conveniente ocultar o meu país e de me intitular holandês, com desejo de ir ao Japão, onde sabia que só os holandeses são recebidos. Disse, pois, ao comissário que naufragara na costa dos Balnibarbos e, tendo chocado com um rochedo, estivera na ilha volante de Lapúcia, de que muitas vezes ouvira falar e que desejava agora dirigir-me ao Japão, a fim de voltar daí ao meu país. O comissário disse que era obrigado a prender-me até que recebesse ordens da corte, para onde ia escrever imediatamente e de onde contava receber resposta dentro em quinze dias. Deram-me um alojamento razoável e puseram-me sentinela à porta.