Disseram-me que me comprometesse, sob juramento, a observá-los, juramento feito primeiro à moda do meu país e, em seguida, à maneira decretada pelas suas leis, que consistia em conservar o artelho do meu pé direito na mão esquerda, em pôr o dedo grande da mão direita no alto da cabeça e o polegar na ponta da orelha direita. Como, porém, há talvez curiosidade em conhecer o estilo daquela carta e em saber os artigos preliminares da minha libertação, traduzo, aqui, palavra por palavra, todo o documento.
"GOLBASTO MOMAREN EULAMÉ GURDILO SHEFIN MULLY ULLY GUÉ, mui poderoso imperador de Lilipute, as delícias e o terror do universo, cujos estados abrangem cinco mil blustrugs (ou sejam, aproximadamente, seis léguas em redor) até os confins do globo, soberano de todos os soberanos, mais alto do que os filhos dos homens, cujos pés oprimem a terra até o centro, cuja cabeça chega ao sol, cujo relance de olhos faz tremer os joelhos dos potentados, carinhoso como a primavera, agradável como o verão, abundante como o outono, terrível como o inverno, a todos os nossos fiéis e amados súditos, saúde. Sua Majestade altíssima propõe ao Homem Montanha os seguintes artigos, dos quais, como preliminar, será obrigado a fazer a ratificação por juramento solene:
1. O Homem Montanha não sairá dos nossos vastos Estados sem nossa permissão escrita e autenticada com o nosso selo grande.
II. Não terá a liberdade de entrar na nossa capital sem nossa ordem expressa, a fim de que os habitantes sejam avisados duas horas antes para permanecerem encerrados em suas casas.
III. O referido Homem Montanha limitará os seus passeios às nossas estradas principais, evitando passear ou deitar-se em algum prado ou seara.
IV. Passeando pelas aludidas estradas, terá o máximo cuidado possível em não pisar o corpo de algum dos nossos fiéis súditos, nem os seus cavalos ou carruagens e não agarrará nenhum dos nossos súditos, sem que ele o consinta.
V. Se for necessário que algum dos correios do gabinete faça qualquer jornada extraordinária, o Homem Montanha é obrigado a levar na algibeira o mencionado correio durante seis dias, uma vez em todas as luas, e trazendo-o de novo, são e salvo, à nossa presença imperial, se tal lhe for requerido.
VI. Será o nosso aliado contra os nossos inimigos da ilha de Blefuscu e fará todo o possível para fazer submergir a esquadra que eles atualmente preparam contra o nosso território.
VII. O dito Homem Montanha, às horas de descanso, prestará o seu auxílio aos nossos operários, ajudando-os a carregar grandes blocos de pedra para se concluírem os muros do nosso grande parque e outras construções imperiais.
VIII. Depois de ter feito o solene juramento de observar estes artigos, acima decretados, o dito Homem Montanha terá uma ração de carne todos os dias e bebida suficiente para sustento de mil e oitocentos e setenta e quatro súditos nossos; terá entrada livre perante a nossa individualidade imperial e outras demonstrações do nosso valimento.
"Dado no nosso paço, em Belfaborac, aos doze dias da nonagésima primeira lua do nosso império".
Prestei o juramento e assinei todos aqueles artigos com grande alegria, embora alguns não fossem tão honrosos como eu desejava, mas nisso via-se o efeito da malícia do almirante Skyresh Bolgolam.
Tiraram-me as correntes e fui posto em liberdade. O imperador deu-me a honra de assistir à minha libertação. Agradeci humildemente a mercê que Sua Majestade me havia feito, prostrando-me a seus pés, mas ele mandou que me levantasse, nos termos mais amáveis possíveis.
O leitor decerto pôde notar que, no último artigo do auto da minha libertação, o imperador se comprometera a dar-me uma ração de carne e bebida, que poderia bastar para sustento de mil e oitocentos e setenta e quatro Liliputianos. Algum tempo depois, perguntando a um cortesão, meu amigo particular, a razão que determinara aquele alimento, respondeu-me que os matemáticos de Sua Majestade, tomando a altura do meu corpo por meio de um quadrante e calculando a minha grossura, e, achando-a, em relação à sua, como mil e oitocentos e setenta e quatro estão para um, inferiram da homogeneidade do seu corpo, que eu devia ter um apetite mil e oitocentas e setenta e quatro vezes maior do que o deles.
Por esta exposição pode o leitor avaliar o notável senso daquele povo e a economia sábia, exata e perspicaz do imperador.
Capítulo IV
Descrição de Mildeno, capital de Lilipute, e do palácio do imperador — Conversa entre o autor e um secretário de Estado relativa aos negócios do império — Oferecimento que o autor fez ao imperador de servir nas grandes guerras.
O primeiro requerimento que apresentei, depois de ter alcançado a minha liberdade, foi para obter licença de visitar Mildeno, capital do império; o imperador deferiu-o, recomendando-me que não causasse dano algum aos habitantes nem tão pouco às moradias. O povo foi avisado, por uma proclamação, do desejo, de que eu estava possuído, de visitar a cidade.
A muralha que a circundava era da altura de dois pés e meio e da espessura de oito polegadas, pelo menos; de maneira que um carro podia andar por cima e dar a volta à cidade com segurança; era flanqueada de fortes torres distanciadas umas das outras dez pés. Passei por cima da porta ocidental e caminhei vagarosamente e de lado pelas duas ruas principais, levando apenas o colete vestido, receando que as abas do gibão fizessem algum estrago nos telhados e beirais das casas. Ia com o máximo cuidado, para que não acontecesse pisar algumas pessoas que se encontravam pelas ruas, apesar das claras ordens expressas a toda a gente, para que se fechasse em casa enquanto eu andasse de passeio. Os balcões, as janelas dos primeiros, segundos e terceiros andares, as das águas-furtadas ou trapeiras, e os próprios beirais estavam tão apinhados de espectadores, que vi logo ser enorme a população. Esta cidade forma uma espécie de quadrilátero, tendo cada lanço de muralha quinhentos pés de comprido. As duas ruas maiores têm cinco pés de largura; as ruas pequenas, onde me não foi possível entrar, têm a largura de doze a dezoito polegadas. A cidade pode comportar quinhentas mil almas. As casas têm três ou quatro andares. As lojas e os mercados são bem sortidos. Em outros tempos, havia boa ópera e excelente comédia; como, porém, a liberalidade do príncipe não abrangesse os atores, decaíram.
O palácio do imperador, edificado no centro da cidade, onde as duas principais ruas se encontram, é rodeado de uma elevada muralha de vinte e três polegadas que está vinte pés distanciada do edifício.
Sua Majestade dera-me licença para eu transpor de uma pernada aquela muralha, a fim de ver o seu palácio por todos os lados. O átrio exterior é um quadrado de quarenta pés e compreende dois outros átrios.
É no mais interior que ficam os aposentos de Sua Majestade, que eu tinha grande desejo de ver. Isso era difícil tarefa, visto como as portas maiores tinham apenas dezoito polegadas de alto por sete de largo. Demais, as construções do átrio exterior elevavam-se a cinco pés do terreno e tornava-se-me impossível dar uma pernada por cima delas, sem risco de quebrar a lousa dos telhados, enquanto os muros me não dessem cuidado por serem solidamente construídos com pedras de quatro polegadas de espessura. O imperador, entretanto, tinha grande vontade de que eu visse a magnificência do seu palácio. Só, porém, ao cabo de três dias, é que me encontrei em estado de satisfazê-lo, depois de haver cortado com o meu canivete algumas das maiores árvores do parque imperial, afastado da cidade cinqüenta toesas aproximadamente. Dessas árvores fiz dois tamboretes, com três pés de altura cada um e tão fortes que pudessem aguentar-me o peso do corpo.
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