Pendem do teto laboriosamente arrendados por não vulgar tesoura, os pingentes de papel, convidando a lascivo repouso a inquieta raça das moscas. Reina uma frescura admirável naquele recinto.

Sentamo-nos, respiramos largo, e entramos em conversa com o dono da casa, homem de trinta a quarenta anos, de fisionomia esperta e simpática, e sem nada de repugnante vilão ruim que é tão usual de encontrar por semelhantes lugares da nossa terra.

− Então, que novidades há por cá pelo Cartaxo, patrão?

− Novidades! Por aqui não temos senão o que vem de Lisboa. Aí está a Revolução de ontem...

− Jornais, meu caro amigo! Vimos fartos disso. Diga-nos alguma coisa da terra. Que faz por cá o...

− O mestre J. P., o Alfageme?

− Como assim o Alfageme?

− Chamam-lhe o Alfageme ao mestre J. P.; pois então! Uns senhores de Lisboa que aí estiveram em casa do sr. D. puseram-lhe esse nome, que a gente bem sabe o que é; e ficou-lhe, que agora já ninguém lhe chama senão o Alfageme. Mas, quanto a mim, ou ele não é Alfageme, ou não o há de ser por muito tempo. Não é aquele não. Eu bem me entendo.

A conversação tornava-se interessante, especialmente para mim: quisemos aprofundar o caso:

− Muito me conta, sr. patrão! Com que isto de ser Alfageme, parece-lhe que é coisa de...

− Parece-me o que é, e o que há de parecer a todo mundo. E alguma coisa sabemos cá no Cartaxo, do que vai por ele. O verdadeiro Alfageme diz que era um espadeiro ou armeiro, cutileiro ou coisa que o valha, na Ribeira de Santarém; e que foi um homem capaz, que punia pelo povo, e que não queria saber de partidos[1], e que dizia ele: “Rei que nos enforque, e papa que nos excomungue, nunca há de faltar. Assim, deixar os outros brigar, trabalhemos nós e ganhemos nossa vida”. Mas que estrangeiros que não queria, que esta terra que era nossa e com a nossa gente se devia governar. E mais coisas assim: e que por fim o deram por traidor e lhe tiraram quanto tinha. Mas que lhe valeu o Condestável e o não deixou arrasar, porque era homem de bem e fidalgo às direitas. Pois não é assim que foi?

− É assim, meu amigo. Mas então daí?

− Então daí o que se tira é que quando havia fidalgos como o santo Condestável também havia Alfagemes como o de Santarém. E mais nada.

− Perfeitamente. Mas por que chamaram ao mestre P. o Alfageme de Cartaxo?

− Eu lhes digo aos senhores: o homem nem era assim, nem era assado. Falava bem, tinha sua lábia com o povo. Daí fez-se juiz, pôs por aí suas coisas a direito. − Deus sabe as que ele entortou também!... Ganhou nome no povo, e agora faz dele o que quer. Se lhe der sempre para bem, bom será. Os senhores não tomam nada?

O bom do homem visivelmente não queria falar mais: e não devíamos importuná-lo.