Não é assim?

Pois o mesmo farei eu.

E posto que hoje, faz hoje um mês, em tal dia como hoje, dia para sempre assinalado na minha vida, me aparecesse uma visão, uma visão celeste que me surpreendeu a alma por um modo novo e estranho, e do qual não podia dizer decerto como a rainha Dido à mana Anica:

Reconheço o queimar da chama antiga:

Agnosco veteris vestigia flammae

posto que a visão passou e desapareceu... mas deixou gravada na alma a certeza de que... Posto que seja assim tudo isto, a confidência não passará daqui, minhas senhoras: tanto basta para se saber que estou suficientemente habilitado para cronista da minha história, e a minha história é esta.

Era no ano de 1832, uma tarde de verão como hoje, calmosa, seca, mas o céu puro e desabafado. À porta dessa casa entre o arvoredo estava sentada uma velhinha bem passante dos setenta, mas que o não mostrava. Vestia uma espécie de túnica roxa, que apertava na cintura com um largo cinto de couro preto, e que fazia ressair a alvura da cara e das mãos longas, descarnadas, mas não ossudas como usam de ser mãos de velhas; toucava-se com um lenço da mais escrupulosa brancura, e posto de um jeito particular a modo de toalha de freira; um mandil da mesma brancura, que tinha no peito e que afetava, não menos, a forma de um escapulário de monja, completava o estranho vestuário da velha. Estava sentada numa cadeira baixa do mais clássico feitio: textualmente parecia a que serviu de modelo a Rafael para o seu belo quadro da Madonna della Sedia.

Como nota histórica e ilustração artística, seja-me permitido juntar aqui em parênteses que, não há muito, vi em casa de um sapateiro remendão, em Lisboa, no Bairro Alto, uma cadeira tal e qual; torneados piramidais, simples, sem nobreza, mas elegantes.

Tornemos à velhinha.

Estava ela ali sentada na dita cadeira, e diante de si tinha uma dobadoura, que se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter às mãos e enrolar-se no já crescido novelo.

Era o único sinal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso, velha, cadeira, dobadoura, tudo pareceria uma graciosa escultura de Antônio Ferreira[1] ou um daqueles quadros tão verdadeiros do morgado de Setúbal.

O movimento bem visível da dobadoura era regular, e respondia ao movimento quase imperceptível das mãos da velha. Era regular o movimento, mas durava um minuto e parava, depois ia seguindo outros dois, três minutos, tornava a parar: e nesta regularidade de intermitências se ia alternando como o pulso de um que treme sezões.

Mas a velha não tremia, antes se tinha muito direita e aprumada: o parar do seu lavor era porque o trabalho interior do espírito dobrava, de vez em quando, de intensidade, e lhe suspendia todo o movimento externo. Mas a suspensão era curta e mesurada; reagia a vontade, e a dobadoura tornava a andar.

Os olhos da velha é que tinham uma expressão singular: voltada para o poente, não os tirou dessa direção nem os inclinava de modo algum para a dobadoura que lhe ficava um pouco mais à esquerda. Não pestanejavam, e o azul de suas pupilas, que devia ter sido brilhante como o das safiras, parecia desbotado e sem lume.

O movimento da dobadoura estacou agora de repente, a velha pousou tranquilamente as mãos e o novelo no regaço, e chamou para dentro da casa:

− Joaninha?

Uma voz doce, pura, mas vibrante, destas vozes que se ouvem rara vez, que retinem dentro da alma e que não esquecem nunca mais, respondeu de dentro:

− Senhora? Eu vou, minha avó, eu vou.

− Querida filha!... Como ela me ouviu logo! Deixa, deixa: vem quando puderes. É a meada que se me embaraçou.

A velha era cega, cega de gota-serena, e paciente, resignada como a providência misericordiosa de Deus permite quase sempre que sejam os que neste mundo destinou à dura provança de tão desconsolado martírio.






[1]. Antônio Ferreira, que viveu no fim do século passado, princípio deste, modelava em barro com a mesma graça e naturalidade flamenga com que pintava o Morgado de Setúbal: as suas pequenas figurinhas são tão estimadas pelos entendedores como os melhores biscuits de Sévres e de Saxônia antiga. (N.A.)

Capítulo XII

De como Joaninha desembaraçou a meada da avó e do mais que aconteceu. − Que casta de rapariga era Joaninha. − Dá o A. insigne prova de ingenuidade e boa-fé confessando um grave senão do seu ideal. Insiste, porém, que é um adorável defeito. − Em que se parece uma mulher desanelada com um Sansão tosquiado. − Pasmosas monstruosidades da natureza que desmentem o credo velho dos peralvilhos. − Os olhos verdes de Joaninha. − Religião dos olhos pretos estrenuamente professada pelo A. Perigo em que ele se acha à vista de uns olhos verdes. − De como estando a avó e a neta, a conversar muito de mano a mano, chega Frei Dinis e interrompe a conversação. − Quem era Frei Dinis.

– Aqui estou, minha avó: é a sua meada?... Eu lha endireito − disse Joaninha saindo de dentro, e com os braços abertos para a velha. Apertou-a neles com inefável ternura, beijou-a muitas vezes, e tomando-lhe o novelo das mãos num instante desembaraçou o fio e lho tronou a entregar.

A velha sorria com aquele sorriso satisfeito que exprime os tranquilos gozos de alma, e que parecia dizer:

− Como eu sou feliz ainda, apesar de velha e de cega! Bendito sejais, meu Deus.

Esta última frase, esta benção de um coração agradecido, que espira suavemente para o céu como sobe do altar o fumo do incenso consagrado, esta última frase transbordou-lhe e saiu articulada dos lábios:

− Bendito seja Deus, minha filha, minha Joaninha, minha querida neta. E Ele te abençoe também, filha!

− Sabe que mais, minha avó? Basta de trabalhar hoje; são horas de merendar.

− Pois merendemos.

Joaninha foi dentro da casa, trouxe uma banquinha redonda, cobriu-a com uma toalha alvíssima, pôs em cima fruta, pão queijo, vinho, chegou-se para o pé da velha, tirou-lhe o novelo da mão e arredou a dobadoura. A velha comeu alguns bagos de um cacho dourado que a neta lhe escolheu e pôs nas mãos, bebeu um trago de vinho, e ficou calada e quieta, mas já sem a mesma expressão de felicidade e contentamento sossegado que ainda agora lhe luzia no rosto.

As animadas feições de Joaninha refletiam simpaticamente a mesma alteração.

Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e expressivo que a palavra tem em português, mas era o tipo de gentileza, o ideal da espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezesseis anos, havia por dom natural e por uma admirável simetria de proporções toda a elegância nobre, todo o desembaraço modesto, toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da corte e da mais escolhida companhia vêm a dar a algumas raras e privilegiadas criaturas no mundo.

Mas nesta foi a natureza que fez tudo, ou quase tudo, e a educação nada ou quase nada.

Poucas mulheres são muito mais baixas, e ela parecia alta: tão delicada, tão élancée era a forma airosa de seu corpo.

E não era o garbo teso e aprumado da perpendicular miss inglesa que parece fundida de uma só peça; não, mas flexível e ondulante como a haste jovem da árvore que é direita mas dobradiça, forte da vida de toda a seiva com que nasceu, e tenra que a estala qualquer vento forte.

Era branca, mas não desse branco importuno das loiras, nem do branco terso, duro, marmóreo das ruivas − sim daquela modesta alvura de cera que se ilumina de um pálido reflexo de rosa de Bengala.

E doutras rosas, destas rosas-rosas que denunciam toda a franqueza de um sangue que passa livre pelo coração e corre à sua vontade por artérias em que os nervos não dominam, dessas não as havia naquele rosto; rosto sereno como é sereno o mar em dia de calma, porque dorme o vento...