Há uma imensa pobreza e secura de invenção! Sempre os mesmos florões Luís XV, sempre as mesmas pelúcias... Não vale a pena!

Eu arregalava os olhos para este transformado Jacinto. E sobretudo me impressionava o seu horror pela Multidão – pôr certos efeitos da Multidão, só para ele sensíveis, e a que chamava os

“sulcos”.

-Tu não sentes, Zé Fernandes. Vens das serras... Pois constituem o rijo inconveniente das Cidades, estes sulcos! É um perfume muito agudo e petulante que uma mulher larga ao passar, e se instala no olfato, e estraga para todo o dia o ar respirável. É um dito que se surpreende num grupo, que revela um mundo de velhacaria, ou de pedantismo, ou de estupidez, e que nos fica colado à alma, como um salpico, lembrando a imensidade da lama a atravessar. Ou então, meu filho, é uma figura intolerável pela pretensão, ou pelo mau gosto, ou pela impertinência, ou pela relice, ou pela dureza, e de que se não pode sacudir mais a visão repulsiva... Um pavor, estes sulcos, Zé Fernandes!

De resto, que diabo, são as pequeninas misérias duma Civilização deliciosa!

Tudo isto era especioso, talvez pueril - mas para mim revelava, naquele chamejante devoto da Cidade, o arrefecimento da devoção. Nessa mesma tarde, se bem recordo, sob uma luz macia e fina, penetramos nos centros de Paris, nas ruas longas, nas milhas de casario, todo caliça parda, eriçado de chaminés de lata negra, com as janelas sempre fechadas, as cortininhas sempre corridas, abafando, escondendo a vida. Só tijolo, só ferro, só argamassa, só estuque; linhas hirtas, ângulos ásperos; tudo seco; tudo rígido. E dos chãos aos telhados, pôr toda a fachada, tapando as varandas, comendo os muros, Tabuletas, Tabuletas...

-Ó, este Paris, Jacinto, este teu Paris! Que enorme, que grosseiro bazar!

E, mais para sondar o meu Príncipe do que pôr persuasão, insisti na felicidade e tristeza destes prédios, duros armazéns, cujos andares são prateleiras onde se apinha humanidade! E uma humanidade impiedosamente catalogada e arrumada! A mais vistosa e de luxo nas prateleiras baixas, bem envernizadas. A reles e de trabalho nos altos, nos desvios, sobre pranchas de pinho nu, entre o pó e a traça...

Jacinto murmurou, com a face arrepiada:

-É feio, é muito feio!

E acudiu logo, sacudindo no ar a luva de anta:

-Mas que maravilhoso organismo, Zé Fernandes! Que solidez! Que produção!

Onde Jacinto me parecia mais renegado era na sua antiga e quase religiosa afeição pelo Bosque de Bolonha. Quando moço, ele construíra sobre o bosque teorias complicadas e consideráveis. E sustentava, com olhos rutilantes de fanático, que no Bosque a Cidade cada tarde ia retemperar salutarmente a sua força, recebendo, pela presença de suas Duquesas, das suas Cortesãs, dos seus Políticos, dos seus Financeiros, dos seus Generais, dos seus Acadêmicos, dos seus Artistas, dos seus Clubistas, dos seus Judeus, a certeza consoladora de que todo o seu pessoal se mantinha em número, em vitalidade, em função, e que nenhum elemento da sua grandeza desaparecera ou deperecera! “Ir aos bois” constituía então para o meu Príncipe um ato de consciência. E voltava sempre confirmando com orgulho que a Cidade possuía todos os seus astros, garantindo a eternidade da sua luz!

Agora, porém, era sem fervor, arrastadamente, que ele me elevava ao Bosque, onde eu, aproveitando a clemência de Abril, tentava enganar a minha saudade de arvoredos. Enquanto subíamos, ao trote nobre das suas éguas lustrosas, a Avenida dos Campos Elísios e a do Bosque, rejuvenescidas pelas relvas tenras e fresco verdejar dos rebentos, Jacinto, soprando o fumo da cigarrilha pelas vidraças abertas do cupé, permanecia o bom camarada, de veia amável, com quem era doce filosofar através de Paris. Mas logo que passávamos as grades douradas do Bosque, e penetrávamos na Avenida das Acácias, e enfiávamos na lenta fila dos trens de luxo de praça, sob o silêncio decoroso, apenas cortado pelo tilintar dos freios e pelas rodas vagarosas esmagando a areia –

o meu Príncipe emudecia, molemente engelhado no fundo das almofadas, de onde só despegava a face para escancarar bocejos de fartura. Pelo antigo hábito de verificar a presença confortadora do

“pessoal, dos astros”, ainda, pôr vezes, apontava para algum cupé ou vitória rodando com rodar rangente noutra arrastada fila – e murmurava um nome. E assim fui conhecendo a encaracolada barba hebraica do banqueiro Efraim; e o longo nariz patrício de Madame de Trèves abrigando um sorriso perene; e as bochechas flácidas do poeta neoplatônico Dornan, sempre espapado no fundo de fiacres; e os longos bandós pré-rafaelitas e negros de Madame Verghane; e o monóculo defumado do diretor do Boulevard, e o bigodinho vencedor do duque Marizac, reinando de cima do seu fáeton de guerra; e ainda outros sorrisos imóveis, e barbichas à Renascença, e pálpebras amortecidas, e olhos farejantes, e peles empoadas de arroz, que eram todas ilustres e da intimidade do meu Príncipe. Mas, do topo da Avenida das Acácias, recomeçávamos a descer, em passo sopeado, esmagando lentamente a areia; na fila vagarosa que subia, calhambeque atrás de landau, vitória atrás de fiacre, fatalmente revíamos o binóculo sombrio do homem do Boulevard, e os bandós furiosamente negros de Madame Verghane, e o ventre espapado do neoplatônico, e a barba talmúdica, e todas aquelas figuras, duma imobilidade de cera, superconhecidas do meu camarada, recruzadas cada tarde através de revividos anos, sempre com os mesmos sorrisos, sob o mesmo pó de arroz, na mesma imobilidade de cera; então Jacinto não se continha, gritava ao cocheiro:

-Para casa, depressa!

E era pela Avenida do bosque, pelos Campos Elísios, uma fuga ardente das éguas a quem a lentidão sopeada, num roer de freios, entre outras éguas também delas superconhecidas, lançava numa exasperação comparável à de Jacinto.

Para o sondar eu denegria o Bosque:

-Já não é tão divertido, perdeu o brilho!...

Ele acudia, timidamente:

-Não, é agradável, não há nada mais agradável; mas...

E acusava a friagem das tardes ou o despotismo dos seus afazeres. Recolhíamos então ao 202, onde, com efeito, em breve embrulhado no seu roupão branco, diante da mesa de cristal, entre a legião das escovas, com toda a eletricidade refulgindo, o meu Príncipe se começava a adornar para o serviço social da noite.

E foi justamente numa dessas noites (um Sábado) que nós passamos, naquele quarto tão civilizado e protegido, pôr um desses brutos e revoltos terrores como só os produz a ferocidade dos Elementos. Já tarde, à pressa (jantávamos com Marizac no clube para o acompanhar depois ao Lobengrin na Ópera) Jacinto arrochava o nó da gravata branca – quando no lavatório, ou porque se rompesse o tubo, ou se dessoldasse a torneira, o jato de água a ferver rebentou furiosamente, fumegando e silvando. Uma névoa densa de vapor quente abafou as luzes – e, perdidos nela, sentíamos, pôr entre os grilos do escudeiro e do Grilo, o jorro devastador batendo os muros, esparrinhando uma chuva que escaldava.