Sob os pés o tapete ensopado era uma lama ardente. E como se todas as forças da natureza, submetidas ao serviço de Jacinto, se agitassem, animadas pôr aquela rebelião da água – ouvimos roncos surdos no interior das paredes, e pelos fios dos lumes elétricos sulcam faíscas ameaçadoras! Eu fugira para o corredor, onde se alargava a névoa grossa. Pôr todo o 202 ia um tumulto de desastre. Diante do portão, atraídas pela fumarada que se escapava das janelas, estacionava polícia, uma multidão. E na escada esbarrei com um repórter, de chapéu para a nuca, a carteira aberta, gritando sofregamente “se havia mortos?”

Domada a água, clareada a bruma, vim encontrar Jacinto no meio do quarto, em ceroulas, lívido:

-Ó Zé Fernandes, esta nossa indústria!... Que impotência, que impotência! Pela Segunda vez, este desastre! E agora, aparelhos perfeitos, um processo novo...

-E eu encharcado pôr esse processo novo! E sem outra casaca!

Em redor, as nobres sedas bordadas, os brocatéis Luís XIII, cobertos de manchas negras, fumegavam. O meu príncipe, enfiado, enxugava uma fotografia de Madame de Oriol, de ombros decotados, que o jorro bruto maculara de empolas. E eu, com rancor, pensava que na minha Guiães a água aquecia em seguras panelas – e subia ao meu lavatório, pela mão forte da Catarina, em seguras infusas! Não jantamos com o duque de Marizac, no Clube. E, na Ópera, nem saboreei Lohengrin e a sua branca alma e o seu branco cisne e as suas brancas armas – entalado, aperreado, cortado nos sovacos pela casaca que Jacinto me emprestara e que rescendia estonteadoramente a flores de Nessari.

No Domingo, muito cedo, o Grilo, que na véspera escaldara as mãos e as trazia embrulhadas em seda, penetrou no meu quarto, descerrou as cortinas, e à beira do leito, com o seu radiante sorriso de preto:

-Vem no Fígaro!

Desdobrou triunfalmente o jornal. Eram, nos Ecos, doze linhas, onde as nossas águas rugiam e espadanavam, com tanta magnificência e tanta publicidade, que também sorri, deleitado.

E toda a manhã, o telefone, siô Fernandes! Exclamava o Grilo, rebrilhando em ébano. A quererem saber, a quererem saber... “Está lá? Está escaldado?” Paris aflito, siô Fernandes!

O telefone, com efeito, repicava, insaciável. E quando desci para o almoço, a toalha desaparecia sob uma camada de telegramas, que o meu Príncipe fendia com a faca, enrugado, rosnando contra a “maçada”. Só desanuviou, ao ler um desses papéis azuis, que atirou para cima do meu prato, com o mesmo sorriso agradado com que de manhã sorríamos, o Grilo e eu:

-É do Grão-Duque Casimiro... Ratão amável! Coitado!

Saboreei, através dos ovos, o telegrama de S. Alteza. “O quê! o meu Jacinto inundado!

Muito chique, nos Campos Elísios! Não volto ao 202 sem bóia de salvação! Compassivo abraço!

Casimiro...” Murmurei também com deferência: - “Amável! Coitado!” Depois, revolvendo lentamente o montão de telegramas que se alastrava até ao meu copo::

-Ó Jacinto! Quem é esta Diana que incessantemente te escreve, te telefona, te telegrafa, te...?

-Diana... Diana de Lorge. É uma cocotte. É uma grande cocotte!

-Tua?

-Minha, minha... Não! tenho um bocado.

E como eu lamentava que o meu Príncipe, senhor tão rico e de tão fino orgulho, pôr economia duma gamela própria chafurdasse com outros numa gamela pública – Jacinto levantou os ombros, com um camarão espetado no garfo:

-Tu vens das serras... Uma cidade como Paris, Zé Fernandes, precisa ter cortesãs de grande pompa e grande fausto. Ora para montar em Paris, nesta tremenda carestia de Paris, uma cocotte com os seus vestidos, os seus diamantes, os seus cavalos, os seus lacaios, os seus camarotes, as suas festas, o seu palacete, a sua publicidade, a sua insolência, é necessário que se agremiem umas poucas de fortunas, se forme um sindicato! Somos uns sete, no Clube. Eu pago um bocado... Mas meramente pôr Civismo, para dotar a Cidade com uma cocotte monumental. De resto não chafurdo.