- Ó Jacinto, e a religião? Pois a religião não prova a alma?
Ele encolhia os ombros. A religião! A religião é o desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror. Um cão lambendo a mão do dono, de quem lhe vem o osso ou o chicote, já constitui toscamente um devoto, o consciente devoto, prostrado em rezas ante o Deus que distribui o Céu ou o Inferno!... Mas o telefone! O fonógrafo!
- Aí tens tu, o fonógrafo, Zé Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de se pensante e me separa do bicho. Acredita, não há senão a Cidade, Zé Fernandes, não há senão a Cidade!
E depois (acrescentava) só a Cidade lhe dava a sensação, tão necessária à vida como o calor, da solidariedade humana. E no 202, quando considerava em redor, nas densas massas do casario de Paris, dois milhões de seres arquejando na obra da Civilização (para manter na natureza o domínio dos Jacintos!), sentia um sossego, um conchego, só comparáveis ao do peregrino, que, ao atravessar o deserto, se ergue no seu dromedário, e avista a longa fila da caravana marchando, cheia de lumes e de armas...
Eu murmurava, impresionado:
-Caramba!
Ao contrário no campo, entre a inconsciência e a impassibilidade da Natureza, ele tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão. Estava aí como perdido num mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se gemesse com fome nenhuma árvore, pôr mais carregada, lhe estenderia o seu fruto na ponta compassiva dum ramo.
Depois, em meio da Natureza, ele assistia à súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores. De que servia, entre plantas e bichos – ser um Gênio ou ser um Santo? As searas não compreendem as Geórgicas, e fora necessário o socorro ansioso de Deus, e a inversão de todas as leis naturais, e um violento milagre para que o lobo de Agubio não devorasse S. Francisco de Assis, que lhe sorria e lhe estendia os braços e lhe chamava “meu irmão lobo!” Toda a intelectualidade, nos campos, se esteriliza, e só resta a bestialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do animal duas únicas funções se mantêm vivas, a nutritiva e a procriadora. Isolada, sem ocupação, entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de pastar, sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa matéria dois instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao cabo duma semana rural, de todo o seu ser tão nobremente composto só restava um estômago e pôr baixo um falo! A alma?
Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade, mergulhar nas ondas lustrais da Civilização, para largar nelas a crosta vegetativa, e ressurgir reumanizado, de novo espiritual e Jacíntico!
E estas requintadas metáforas do meu amigo exprimiam sentimentos reais – que eu testemunhei, que muito me divertiram, no único passeio que fizemos ao campo, à bem amável e bem sociável floresta de Montmorency. Ó delícias de entremez, Jacinto entre a Natureza! Logo que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadame, qualquer chão que os seus pés calcassem o enchia de desconfiança e terror. Toda a relva, pôr mais crestada, lhe parecia ressumar uma umidade mortal. De sob cada torrão, da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de víboras, de formas rastejantes e viscosas. No silêncio do bosque sentia um lúgubre despovoamento do Universo. Não tolerava a familiaridade dos galhos que lhe roçassem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para ele um ato degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as flores que não tivesse já encontrado em jardins, domesticadas pôr longos séculos de servidão ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava duma melancolia funambulesca certos modos e formas do Ser inanimado, a pressa espeta e vã dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as contorções do arvoredo e o seu resmungar solene e tonto.
Depois duma hora, naquele honesto bosque de Montmorency, o meu pobre amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento minguar e sumir de alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desanuviou quando penetramos no lajedo e no gás de Paris – e a nossa vitória quase se despedaçou contra um ônibus retumbante, atulhado de cidadãos. Mandou descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade, aquela materialização em que sentia a cabeça pesada e vaga como a dum boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao teatro das Variedades para sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno que lhe ficara dos melros cantando nos choupos altos.
Este delicioso Jacinto fizera então vinte e três anos, e era um soberbo moço em quem reaparecera a força dos velhos Jacintos rurais. Só pelo nariz, afilado, como narinas quase transparentes, duma mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia às delicadezas do século XIX.
O cabelo ainda se conservava, ao modo das eras rudes, crespo e quase lanígero; e o bigode, como o dum Celta, caía em fios sedosos, que ele necessitava aparar e frisar.
1 comment