Todo o seu fato, as espessas gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia, as luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, não natural, mas composta destramente pela sua ramalheira com pétala de flores dessemelhantes, cravo, azálea, orquídea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre uma leve folhagem de funcho.
Em 1880, em Fevereiro, numa cinzenta e arrepiada manhã de chuva, recebi uma carta de meu bom tio Afonso Fernandes, em que, depois de lamentações sobre os seus setenta anos, os seus males hemorroidais, e a pesada gerência dos seus bens “que pedia homem mais novo, com pernas mais rijas” – me ordenava que recolhesse à nossa casa de Guiães, no Douro! Encostado ao mármore partido do fogão, onde na véspera a minha Nini deixara um espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei severamente meu tio que assim cortava em botão, antes de desabrochar, a flor do meu Saber Jurídico. Depois num Pós-Escrito ele acrescentava: - “ O tempo aqui está lindo, o que se pode chamar de rosas, e tua santa tia muito se recomenda, que anda lá pela cozinha, porque vai hoje em trinta e seis anos que casamos, temos cá o abade e o Quintais a jantar, e ela quis fazer uma sopa dourada”.
Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicência. Há quantos anos não a provava, nem o leitão assado, nem o arroz de forno da nossa casa! Com o tempo assim tão lindo, já as mimosas do nosso pátio vergariam sob os seus grandes cachos amarelos. Um pedaço de céu azul, do azul de Guiães, que outro não há tão lustroso e macio, entrou pelo quarto, alumiou, sobre a puída tristeza do tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres e flores de trevo de que meus olhos andavam aguados. E, pôr entre as bambinelas de sarja, passou um ar fino e forte e cheiroso de serra e de pinheiral.
Assobiando o fado meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e meti solicitamente entre calças e peúgas um Tratado de direito civil, para aprender enfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as leis que regem os homens. Depois, nessa tarde, anunciei a Jacinto que partia para Guiães. O
meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto e piedade:
-Para Guiães!...Ó Zé Fernandes, que horror!
E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, tão longe da Cidade, uma pouca de alma dentro dum pouco de corpo. “Leva uma poltrona! Leva a Enciclopédia Geral! Leva caixas de aspargos!...” Mas para o meu Jacinto, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu era arbusto desarraigado que não reviverá. A mágoa com que me acompanhou ao comboio conviria excelentemente ao meu funeral. E quando fechou sobre mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra uma grade de sepultura, eu quase solucei – com saudades minhas.
Cheguei a Guiães. Ainda restavam flores nas mimosas do nosso pátio; comi com delícias a sopa dourada da tia Vicência; de tamancos nos pés assisti à ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das eiras, caçando a perdiz nos matos geados, rachando a melancia fresca na poeira dos arraiais, arranchando a magustos, serandandoà candeia, atiçando fogueiras de S.João, enfeitando presépios de Natal, pôr ali me passaram docemente sete anos, tão atarefados que nunca logrei abrir o Tratado de Direito Civil, e tão singelos que apenas me recordo quando, em vésperas de S.Nicolau, o abade caiu da égua à porta do Brás das Cortes. De Jacinto só recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas à pressa pôr entre tumulto da Civilização. Depois, num Setembro muito quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Afonso Fernandes, morreu, tão quietamente, Deus seja louvado pôr esta graça, como se cala um passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela aldeia a roupa de luto. A minha afilhada Joaninha casou na matança do porco. Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.
II
Era de novo fevereiro, e um fim de tarde arrepiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elísios em demanda do 202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as botas rebrilhantes até às abas recurvas do chapéu de onde fugiam anéis dum cabelo crespo, ressumava elegância e a familiaridade das coisas finas. Nas mãos, cruzadas atrás das costas, calçadas de anta branca, sustentava uma bengala grossa com castão de cristal. E só quando ele parou ao portão do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode corredios e sedosos.
-Ó Jacinto!
-Ó Zé Fernandes!
O abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que o meu chapéu rolou na lama. E ambos murmurávamos, comovidos, entrando a grade:
-Há sete anos!...
E, todavia, nada mudara durante esses sete anos no jardim do 202! Ainda entre as duas áleas bem areadas se arredondava uma relva, mais lisa e varrida que a lã dum tapete. No meio o vaso coríntico esperava Abril para resplandecer com tulipas e depois Junho para transbordar de margaridas.
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