E ao lado das escadas limiares, que uma vidraçaria toldava, as duas magras Deusas de pedra, do tempo de D. Galião, sustentavam as antigas lâmpadas de globos foscos, onde já silvava o gás.
Mas dentro, no peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado pôr Jacinto – apesar do 202
ter somente dois andares, e ligados pôr uma escadaria tão doce que nunca ofendera a asma da Srª. D.
Angelina! Espaçoso, tapetado, ele oferecia, para aquela jornada de sete segundos, confortos numerosos, um divã, uma pele de urso, um roteiro das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na antecâmera, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia e tépida duma tarde de Maio, em Guiães. Um criado, mais atento ao termômetro que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente umedecendo aquele ar delicado e superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu assombrado ser:
-Eis a Civilização!
Jacinto empurrou uma porta, penetramos numa nave cheia de majestade e sombra, onde reconheci a Biblioteca pôr tropeçar numa pilha monstruosa de livros novos. O meu amigo roçou de leve o dedo na parede: e uma coroa de lumes elétricos, refulgindo entre os lavores do teto, alumiou as estantes monumentais, todas de ébano. Nelas repousavam mais de trinta mil volumes, encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro, hirtos na sua pompa e na sua autoridade como doutores num concílio.
Não contive a minha admiração:
-Ó Jacinto! Que depósito!
Ele murmurou, num sorriso descorado:
-Há que ler, há que ler...
Reparei então que o meu amigo emagrecera: e que o nariz se lhe afilara mais entre duas rugas muito fundas, como as dum comediante cansado. Os anéis do seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a antiga serenidade de mármore bem polido. Não frisava agora o bigode, murcho, caído em fios pensativos. Também notei que corcovava.
Ele erguera uma tapeçaria – entramos no seu gabinete de trabalho, que me inquietou. Sobre a espessura dos tapetes sombrios os nossos passos perderam logo o som, e como a realidade. O
damasco das paredes, os divãs, as madeiras, eram verdes, dum verde profundo de folha de louro.
Sedas verdes envolviam as luzes elétricas, dispersas em lâmpadas tão baixas que lembravam estrelas caídas pôr cima das mesas, acabando de arrefecer e morrer: só uma rebrilhava, nua e clara, no alto duma estante quadrada, esguia, solitária como uma torre numa planície, e de que o lume parecia ser o farol melancólico. Um biombo de laca verde, fresco de verde de relva, resguardava a chaminé de mármore verde, verde de mar sombrio, onde esmoreciam as brasas duma lenha aromática. E entre aqueles verdes reluzia, pôr sobre peanhas e pedestais, toda uma Mecânica suntuosa, aparelhos, lâminas, rodas, tubos, engrenagens, hastes, friezas, rigidezas de metais....
Mas Jacinto batia nas almofadas do divã, onde se enterrara com um modo cansado que eu não lhe conhecia:
-Para aqui, Zé Fernandes, para aqui! È necessário reatarmos estas nossas vidas, tão apartadas há sete anos!... em Guiães, sete anos!
-E tu, que tens feito, Jacinto?
O meu amigo encolheu molemente os ombros. Vivera – cumprira com serenidade todas as funções, as que pertencem à matéria e as que pertencem ao espírito...
-E acumulaste civilização, Jacinto! Santo Deus... Está tremendo, o 202!
Ele espalhou em torno um olhar onde já não faiscava a antiga vivacidade:
-Sim, há confortos... Mas falta muito! A humanidade ainda está mal apetrechada, Zé Fernandes...
E a vida conserva resistências.
Subitamente, a um canto, repicou a campainha do telefone.
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