Em benefício ao leitor brasileiro, reintroduzi a divisão em capítulos, assim como os títulos primitivos.

 

Resta ainda salientar que a edição, tal qual concebida por Rónai, veio a público apenas em duas ocasiões: na primeira edição, entre 1946 e 1955, e na segunda, a partir de 1989. Muito o entristecia ver essa obra, à qual ele dedicou tantos anos, esgotada e ainda com imperfeições. O desejo da Biblioteca Azul é, pois, consagrar a edição definitiva de Rónai, considerada uma das mais importantes fora da França e um verdadeiro patrimônio cultural brasileiro, e fazer a obra de Balzac reviver uma vez mais entre nós.

Sumário

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ESTUDOS DE COSTUMES •
CENAS DA VIDA PROVINCIANA

Capa

Créditos

Folha de rosto

A COMÉDIA HUMANA 6 - ESTUDOS DE COSTUMES • CENAS DA VIDA PROVINCIANA

OS CELIBATÁRIOS: UM CONCHEGO DE SOLTEIRÃO

OS PARISIENSES NA PROVÍNCIA: O ILUSTRE GAUDISSART

A MUSA DO DEPARTAMENTO

AS RIVALIDADES: A SOLTEIRONA

AS RIVALIDADES: O GABINETE DAS ANTIGUIDADES

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INTRODUÇÃO

Um conchego de solteirão (em francês: Un Ménage de garçon) era o título deste romance quando, em 1843, apareceu em volume. Em suas notas póstumas, Balzac voltou ao título A gapuiadora (La Rabouilleuse), que pretendia dar ao livro desde o início. Dos dois títulos, preferimos o primeiro, que, além de já ter sua tradução em Portugal, possui a vantagem de não necessitar explicação como o outro.

A oscilação do autor entre esses e mais títulos mostra que aos seus olhos se destacava ora um, ora outro dos elementos constitutivos do romance. É, aliás, uma característica do processo balzaquiano de concentrar várias ações numa narrativa.

“O romance balzaquiano” — escreve Léon Daudet (em Écrivains et artistes, vol. 5) — “desenvolve, às vezes em três ou quatro direções diferentes e mirando a explosões sucessivas, catástrofes visíveis ou íntimas que constituem uma cadeia, um maciço, e não um pico. Em La Rabouilleuse existem, por exemplo, enxertadas umas nas outras: 1º, a história de um ancião enganado; 2º, a de um soldado de meio-soldo; 3º, a de uma velha tia e seu sobrinho; 4º, a da conquista de uma rapariga esperta por um homem rude; 5º, a de uma rivalidade por dinheiro; 6º, a de uma cidadezinha de província. A cada uma dessas narrativas conjuntas, mas que conservam seu movimento particular, corresponde um episódio decisivo.”

Léon Daudet podia muito bem acrescentar mais uma história: a dos dois irmãos José e Felipe Bridau, de caracteres e destinos diametralmente opostos, tão importante no conjunto que Balzac, ao publicar a primeira parte do romance em La Presse, em 1841, deu-lhe o título de Os dois irmãos (Les Deux Frères). Observa com razão Maurice Allem que nenhum desses três títulos se refere ao caráter principal, o de Felipe, e que Balzac, se tivesse vivido mais, os teria ainda substituído até encontrar um que designasse o tipo espantoso que ele criou na figura do militar desocupado e perverso. Mas deve-se notar que o título A gapuiadora, embora focalizasse um protagonista menos importante que Felipe, é um achado. Na admirável cena em que Flora Brazier aparece pela primeira vez ainda menina e em ato de “gapuiar”, Balzac explica o sentido próprio desse termo regional: turvar a água com um galho para assustar os caranguejos e encaminhá-los para as armadilhas do pescador. O sentido figurado, não explicado, mas que se depreende da história (“acaparar uma herança para que outro goze dela”), aplica-se às mil maravilhas ao caso de Flora.

Apesar de tantas ações, não somente o interesse não fica prejudicado como também o romance apresenta uma unidade poderosa.

O que a assegura é sobretudo a evolução de Felipe Bridau. A monstruosa figura do comandante de Napoleão, posto em disponibilidade e desviado de seu rumo primitivo, revelando reservas inesgotáveis de perversidade, domina o livro e é uma das personagens mais possantes de toda A comédia humana. Foi Taine que, em Balzac, seu estudo magistral, chamou a atenção do leitor para a novidade dessa figura: “Como tornar belos o vício e a loucura? Como conquistar nossa simpatia para com animais de rapina e cérebros doentes? Como contrariar o uso quase universal de todas as literaturas e colocar o interesse e a grandeza no local preciso em que elas só viram o ridículo e o odioso? Que pode haver de mais desprezível que o sargentão grosseiro, perseguido de remoques e caiporismos, desde Plauto até Smollett? Reparai, ei-lo que se transforma; Balzac o explica: percebeis as causas de seu vício; tendes a impressão de seu poder e tomais parte em sua ação”.

O caráter de Felipe grava-se efetivamente com extraordinário relevo. Interessa não somente por causa das sucessivas oportunidades de reerguimento que a sorte lhe apresenta e que só servem para atolá-lo cada vez mais no vício, mas também por se apresentar como produto fatal das circunstâncias que lhe moldaram o destino. Esse monstro que poderia, se o Império subsistisse, realizar prodígios de bravura na guerra, sente-se desarvorado na paz e passa a “agir na vida privada como nos campos de batalha”. Mas, além e antes de circunstâncias históricas, ele é produzido também por uma educação errada. Balzac faz pagar bem caro à pobre Ágata a sua injusta predileção materna que a inclina a desconhecer as qualidades do genial e bom José e a encobrir as faltas mais terríveis do devasso e imoral Felipe. É impossível não reconhecer na história dessa iníqua preferência uma reminiscência da mocidade do próprio Balzac. Em sua correspondência, o escritor queixava-se inúmeras vezes da cegueira da sra. François Balzac, que, no auge da glória de seu filho Honoré, teimava em não levá-lo a sério e a preferir-lhe a boa e medíocre Laura e mesmo o vadio Henri.

Há no romance vestígios de fatos reais. Balzac conhecia Issoudun, onde passou períodos felizes em casa da amiga Zulma Carraud. Conheceu a Cognette e viu na Fonte de Tivoli uma pequena gapuiadora pegar camarões. Maxêncio Gilet existiu tão bem como os Cavalheiros da Malandragem, um dos quais, o pintor Auguste Borget, se tornou amigo de Balzac. Este, aliás, deve ter conhecido mais de um desses antigos oficiais do Império, perdidos no mundo da Restauração e em parte depravados na inércia, como os do grupo formado em redor de Felipe e de Maxêncio, pois “as biografias militares de Um conchego de solteirão são documentos de primeira ordem, e... duvido que os arquivos do Ministério da Guerra contenham em suas pastas documentos mais autênticos e mais interessantes” (F. Brunetière, Honoré de Balzac).

Os pesquisadores que estudaram a história de Issoudun no tempo de Balzac encontraram ainda o original que serviu para o retrato do velho Hochon e estabeleceram que José Bridau tinha muito de Delacroix, o grande pintor do romantismo. Mas o erudito balzacólogo Pierre Citron (na “Introdução” na nova edição Garnier do romance) prefere ver nele mais um dos avatares do próprio romancista, cuja mocidade fora também amargurada pela própria feiura, pelo desamor e a desconfiança da família, pela injusta preferência materna por outro filho, imprestável, e pelas dificuldades da estreia. Não se conseguiu, porém, descobrir o modelo de João-Jaques Bridau.