Mesmo que o descobrissem, pouco importaria, pois todos os fragmentos que escavações pacientes possam ainda trazer à luz do dia terão realidade, mas não sentido. Este último reside não nos fatos, mas nas ligações que entre eles o gênio de Balzac estabeleceu. As peças pregadas pelos Cavalheiros da Malandragem, a paixão da velha Descoings pela loteria, as depravações sexuais do dr. Rouget e de seu filho, o episódio da Gapuiadora, o grande papel dos falatórios em Issoudun, tudo isso vem a ter sentido verdadeiro à medida que Balzac o relaciona por fios pacientemente urdidos com a perversidade do antigo comandante de Napoleão.

Outro elemento constitutivo da obra-prima é a perspectiva que o autor consegue dar às cenas representadas pelos seus protagonistas, Balzac é mestre nessa arte, e em Um conchego de solteirão melhor do que, talvez, em qualquer outra obra. Graças ao contínuo crescendo em que nos revela o amoralismo de Felipe, este vai engrandecendo espantosamente a nossos olhos, e não temos a impressão de um exagero quando o autor comenta nestes termos o êxito alcançado por esse caçador de herança:

 

“Quanto à procuração exigida pelo feroz coronel... ele a obteve quando quis, pois Flora caiu sob o domínio daquele homem como a França caíra sob o de Napoleão. Como a mariposa que prende as asas na cera derretida de uma vela, assim Rouget dissipou rapidamente suas últimas forças. Diante dessa agonia, o sobrinho conservou-se impassível e frio como os diplomatas, em 1814, ante as convulsões da França imperial.”

 

A comparação não é desproporcionada.

Também, que variedade de ambientes dentro de um único livro: o conchego de solteirão, o ateliê do pintor, a taverna do oficial de meio-soldo, a casa do avarento; a redação do jornal, a Issoudun dos falatórios, a Paris das intrigas, a Nova York dos apetites brutais. E que riqueza de caracteres: Felipe, José, Max, João-Jaques, o espanhol Fario, o velho sr. Hochon, a Descoings, a Gapuiadora, Ágata, quase todos dominados por uma paixão veemente, cuja intensidade independe da importância de seus objetos. A frase pilhérica de Bixiou resume a filosofia das paixões em que é baseada, por assim dizer, toda a obra de Balzac:

 

“Basta entregarmos um homem a um vício para nos desembaraçarmos dele. ‘Ela gostava muito de dançar e foi a dança que a matou!’, disse Hugo. Aí está! Minha avó gostava de loteria e Felipe matou-a pela loteria! O tio Rouget gostava da farra e Lolote o matou! A sra. Bridau, pobre mulher, gostava de Felipe e foi morta por ele!”

 

A crítica moderna é unânime em reconhecer em Um conchego de solteirão uma das obras mestras de Balzac. Alguns, como Marcel Barrière, o censuraram por ter-se distraído demais com a narrativa das façanhas algo insulsas dos Cavalheiros da Malandragem, tão pouco divertidas quanto as farsas de cartório contadas em Uma estreia na vida (à qual, aliás, Um conchego de solteirão se liga por muitos laços, como se verá nas notas). Mas é fácil compreender que Balzac quisesse incluir esses episódios tão conhecidos da história anedótica da cidade para aumentar a credibilidade de toda a sua narrativa e recorrer a esses episódios para resolver a tensão às vezes quase insuportável da atmosfera.

O único ponto fraco da obra é a carta-prefácio a Nodier, cuja inconsistência se torna patente quando a lemos depois de acabada a leitura do romance. Poderia causar espécie que Balzac tenha compreendido tão pouco o sentido de sua obra a ponto de ver nela uma prova dos efeitos funestos “produzidos pela diminuição do poder paterno” e da “indisponibilidade do casamento insolúvel para as sociedades europeias”. Como se o casamento de João-Jaques Rouget com Flora Brazier pudesse formar obstáculo eficaz ao domínio que Max Gilet e, depois dele, Felipe iam adquirir sobre esta mulher. Tenha-se em vista, porém, que às vezes o político Balzac se lembra, desastradamente, de acudir ao romancista e de arrolar, entre seus auxiliares, o “dedo de Deus”; desta vez ele se empenha em consertar um universo em que a monstruosa perversidade de um Felipe Bridau e o sublime amor materno de Ágata são castigados com a mesma severidade.

Um dos pesquisadores que escarafuncharam com paciência beneditina a vida de Balzac, André Lorant (ver P. Citron, op. cit.) aponta oportunamente que, precisamente nos anos da elaboração do nosso romance, o escritor tinha em sua casa uma criada-amante em carne e osso, certa srta. Brugnol, que o arrastou pela rua da amargura ameaçando-o de dar à publicidade as cartas da condessa Hanska.

Como quase todos os romances de Balzac, este eterno enamorado da cena que em toda a sua vida não conseguiu um único êxito teatral, Um conchego de solteirão foi adaptado ao teatro depois de sua morte. A adaptação de Émile Fabre, representada pela primeira vez em 1903, retomada em 1936 e em 1947, submete o romance a modificações e cortes bem sensíveis. A ação reduz-se à parte desenvolvida em Issoudun. Felipe, bem menos corrompido, procura obter a herança do tio não apenas para si, mas também para a mãe e o irmão; e, pouco depois de ter matado Maxêncio em duelo, é por sua vez assassinado por instigação da Gapuiadora. Vê-se que, mesmo com esse assassínio a mais, o drama perde muito da impressão sombria deixada pelo romance, pois o adaptador introduz assim uma espécie de justiça divina imediata, castigando de maneira igual Felipe e Maxêncio. Como a Gapuiadora se retrai espontaneamente, tudo volta à ordem.

 

paulo rónai

OS CELIBATÁRIOS:
UM CONCHEGO DE SOLTEIRÃO

AO SR. CHARLES NODIER ,[1]

membro da Academia Francesa, bibliotecário do Arsenal

 

 

Eis, meu caro Nodier, uma obra cheia desses fatos subtraídos à ação das leis pela inviolabilidade do lar, mas nos quais o dedo de Deus, tão frequentemente denominado acaso, substitui a justiça humana e cuja moral, embora ditada por um personagem galhofeiro, não deixa de ser instrutiva e impressionante. Dela resultam, a meu ver, grandes ensinamentos para a Família e para a Maternidade. Talvez só muito tarde cheguemos a perceber as consequências da diminuição da autoridade paterna.