Não será aliás trabalhar para mim mesmo?”

— Deixo-te um tesouro — acrescentou o pai, inquieto com o silêncio do filho.

David indagou qual seria esse tesouro.

— Marion — concluiu ele.

Marion era uma gorda filha da roça, indispensável à exploração da tipografia: molhava o papel e o aparava, fazia recados e tratava da cozinha, lavava a roupa, descarregava as carroçadas de papel, cobrava contas e limpava os tampões. Se Marion soubesse ler, o velho Séchard já a teria posto na composição.

O pai partiu a pé para o campo. Se bem que felicíssimo com a venda disfarçada com o nome de sociedade, sentia-se inquieto quanto ao modo pelo qual seria pago. Depois das angústias da venda surgem sempre as de sua realização. Todas as paixões são essencialmente jesuíticas. Aquele homem, que via a instrução como coisa inútil, fazia agora esforços para crer na influência da instrução. Hipotecara seus trinta mil francos às ideias de honra que a educação deveria ter desenvolvido no filho. Como jovem bem-educado, David suaria sangue e água para pagar seus compromissos, seus conhecimentos o fariam encontrar recursos, mostrara-se cheio de belos sentimentos, ele pagaria!

Muitos pais que assim agem acreditam ter agido paternalmente, tal como o velho Séchard ao atingir o seu vinhedo situado em Marsac, pequena aldeia a quatro léguas de Angoulême. Esse domínio, onde o proprietário anterior fizera construir uma linda casa, aumentara de ano para ano a partir de 1809, época em que o velho Urso o havia adquirido. Trocou os cuidados da prensa pelos do lagar de vinho e vivia, como ele mesmo afirmava, há muito tempo nas vinhas para não as conhecer bem. Durante o primeiro ano de sua ida para o campo, o pai Séchard manteve por cima de suas estacas uma fisionomia preocupada; vivia em seu vinhedo como outrora em meio da oficina. Aqueles trinta mil francos inesperados o embriagavam mais que o mosto de setembro, e imaginava já contá-los entre os dedos. Quanto menos lhe era devida aquela soma, tanto mais desejava tê-la em caixa. Desse modo, muitas vezes acorria de Marsac a Angoulême, atraído por suas inquietudes. Galgava as encostas do rochedo no alto do qual se situa a cidade e entrava na oficina para verificar se o filho ia conseguindo livrar-se das dificuldades. Ora, os prelos estavam nos seus lugares. O único aprendiz, com um boné de papel à cabeça, limpava as prensas. O velho Urso ouvia então gemer um dos prelos sobre qualquer cartão de participação, reconhecia seus velhos caracteres e via o filho e o chefe da oficina a ler em suas caixas livros que o Urso tomava por originais. Depois de jantar com David, voltava ao sítio de Marsac, a ruminar seus temores.

A avareza, como o amor, tem o dom da vidência quanto às contingências futuras, fareja-as, apressa-as. Longe da oficina, onde o aspecto dos utensílios o fascinava, transportando-o aos dias em que fazia fortuna, o vinhateiro passava a encontrar no filho inquietantes sintomas de inatividade. A firma Irmãos Cointet o amedrontava, via-a dominando a de Séchard & Filho. Sentia enfim o velhote o vento da desgraça. O pressentimento era justo: a desgraça pairava sobre a casa Séchard. Os avaros, porém, têm o seu deus. Por obra de acasos imprevistos, esse deus faria cair na bolsa do ébrio o preço de sua venda usurária. Eis por que a tipografia Séchard decaía, apesar dos seus indícios de prosperidade.

Indiferente à reação religiosa que a Restauração ia produzindo no governo, e igualmente descuidoso quanto ao liberalismo, David se conservava na mais nociva neutralidade em matéria política e religiosa. Encontrava-se numa época em que o comerciante de província devia professar uma opinião a fim de ter fregueses, pois era necessário optar entre a freguesia dos liberais e a dos monarquistas.

Um amor que invadiu o coração de David, as suas preocupações científicas e o seu bom caráter o impediram de ter aquele apego ao lucro que caracteriza o verdadeiro comerciante, e que o teria feito estudar as diferenças que distinguem a indústria do interior da indústria parisiense. As nuanças tão decisivas nos departamentos desaparecem no grande movimento da capital.

Os irmãos Cointet se puseram em consonância com as opiniões monárquicas, fizeram jejum ostensivamente, frequentaram a catedral, cultivaram relações com os padres, e reimprimiram os primeiros livros religiosos cuja necessidade se fez sentir. Tomaram assim os Cointet a dianteira nesse ramo lucrativo e caluniaram David Séchard acusando-o de liberalismo e de ateísmo. Como, diziam eles, dar trabalho a um homem que tinha como pai um beberrão, um setembrista,[14] um bonapartista, um velho avaro que, cedo ou tarde, haveria de deixar-lhe montões de ouro? Eles eram pobres, carregados de família, enquanto David era rapaz e seria riquíssimo; por isso, não fazia mais que divertir-se etc.

Influenciados por essas acusações lançadas contra David, a prefeitura e o bispado acabaram por conceder o privilégio de suas impressões aos irmãos Cointet.