A tradução contou com cerca de vinte tradutores, e Rónai incrementou-a com a redação de 12 mil notas, que se dividiam entre explicações sobre contextos históricos, personagens e seus antecedentes, questões de tradução – expressões idiomáticas e trocadilhos – e ainda truques de linguagem. Segundo Rónai, “Balzac, amigo de anexins, trocadilhos, e jogos de palavras, deleitava-se com todas as curiosidades de linguagem: etimologias, anagramas, parônimos e homônimos”, elementos que, sem uma nota explicativa, eram “de enlouquecer qualquer tradutor”.

Todo esse árduo e cuidadoso trabalho foi respeitado. Além de manter o texto exato das traduções aprovadas por Rónai, corrigindo apenas o que configura erro que por algum lapso passou pelo organizador (é notável, ainda que sejam flagrantes alguns anacronismos e regionalismos, a impressionante riqueza e precisão do vocabulário desses tradutores), reproduzimos na presente edição as 89 apresentações. Delas, disse Rónai:

 

Sem qualquer veleidade de eruditismo, tentei dar nelas algumas informações indispensáveis a respeito da gênese e da fortuna da obra visada, dos modelos vivos das personagens, da base real (quando havia) do enredo, das reações da crítica etc.

 

Do mesmo modo, foram respeitadas todas as notas. Também foi mantida a decisão de Rónai de traduzir os prenomes dos personagens, ainda que não seja a opção usual nos dias de hoje. Rónai justifica essa escolha primeiramente pela necessidade de unificar a maneira de nomear os personagens. Em A comédia humana, eles aparecem repetidas vezes, surgem protagonistas e reaparecem coadjuvantes, compondo esse imenso quadro de costumes que é a obra balzaquiana.

 

Era embaraçoso ver o mesmo herói com um nome ora francês, ora português; às vezes poderia até dar confusão. Seria uma solução deixar todos os nomes em francês. Mas a semelhança entre as duas línguas convidava a usar a forma nacional em vez da francesa: Júlia em vez de Julie, Eugênia em vez de Eugénie, Luís em vez de Louis, como se fazia em muitos romances traduzidos do francês, do inglês e do espanhol. Foi essa a solução que adotamos. Porém, como ficou dito acima, na ficção balzaquiana personagens inventadas acotovelam pessoas reais. Um tradutor espanhol traduziria naturalmente Pierre Corneille por Pedro Corneille, um italiano por Pietro Corneille; mas a praxe brasileira era manter o nome em francês. Adotamos, pois, um critério algo estranho: traduziam-se os nomes das personagens de ficção e reproduziam-se na forma do original os das pessoas reais. Mesmo esta norma admitia exceções: os nomes de pessoas famosas já aportuguesados, como Napoleão, Luís xiv, Maria Antonieta etc.

 

Também é importante uma observação sobre a escolha de um texto-base para a edição. Com as inúmeras reescrituras dos romances, não há um manuscrito considerado definitivo e o próprio autor retificava seu texto a cada edição. Rónai adotou a edição da Pléiade organizada por Marcel Bouteron, mas não se ateve a ela. Conhecedor dos originais de A comédia humana, adotou na edição brasileira soluções que visavam aproximar o leitor brasileiro do formato original de publicação dos textos de Balzac:

 

Mas num ponto essa edição, excelente em tudo mais, não me satisfazia. É que nela o texto de Balzac, já difícil por si em muitos trechos, saía excessivamente compacto, sem um espaço branco, uma interrupção, um parágrafo numa dezena de páginas. Se tal fosse a intenção do autor, teríamos que aceitar essa característica, assim como os tradutores de Proust e Joyce respeitam aquela disposição maciça de linhas impressas sem um respiradouro ao longo de tantas páginas. Mas, devido à familiaridade com a história bibliográfica da obra, sabia que todos aqueles romances tinham saído inicialmente em rodapés de jornais, divididos em capítulos breves, com títulos muitas vezes espirituosos, engraçados, pitorescos, mantidos nas primeiras edições em volumes. Foram os editores sucessivos que, contra a vontade de Balzac, suprimiram a divisão em capítulos por motivos de economia. Em benefício ao leitor brasileiro, reintroduzi a divisão em capítulos, assim como os títulos primitivos.

 

Resta ainda salientar que a edição, tal qual concebida por Rónai, veio a público apenas em duas ocasiões: na primeira edição, entre 1946 e 1955, e na segunda, a partir de 1989. Muito o entristecia ver essa obra, à qual ele dedicou tantos anos, esgotada e ainda com imperfeições. O desejo da Biblioteca Azul é, pois, consagrar a edição definitiva de Rónai, considerada uma das mais importantes fora da França e um verdadeiro patrimônio cultural brasileiro, e fazer a obra de Balzac reviver uma vez mais entre nós.

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ESTUDOS DE COSTUMES •
CENAS DA VIDA PROVINCIANA

Capa

Créditos

Folha de rosto

A COMÉDIA HUMANA 7 - ESTUDOS DE COSTUMES • CENAS DA VIDA PROVINCIANA

ILUSÕES PERDIDAS

ILUSÕES PERDIDAS

PRIMEIRA PARTE • OS DOIS POETAS

SEGUNDA PARTE • UM GRANDE HOMEM DA PROVÍNCIA EM PARIS

TERCEIRA PARTE • OS SOFRIMENTOS DO INVENTOR

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INTRODUÇÃO

Ilusões perdidas (em francês: Illusions Perdues) é a narrativa mais extensa de Balzac, sobretudo se considerarmos que o romance Esplendores e misérias das cortesãs lhe forma a continuação. Essas duas obras constituem na realidade uma só, a história de Luciano de Rubempré, uma das maiores e mais impressionantes da literatura do século xix.

Nesse imenso livro Balzac trabalhou, por assim dizer, durante toda a sua vida, ou, pelo menos, toda a sua carreira literária. Ilusões perdidas traz a data de 1835-1843; Esplendores e misérias das cortesãs, a de 1838-1847. O autor deu esses dois romances várias vezes como acabados, vendeu-os a diversos editores e reescreveu-os vezes sem conta.

Em ambas as obras, porém, aparecem resíduos mesmo da primeira fase clandestina do escritor; um dos poemas atribuídos ao poeta Luciano, por exemplo, foi publicado pelo próprio Balzac em 1824.

Além de formar o mais vasto dos romances de Balzac, este conjunto é, na verdade, o mais balzaquiano de todos os seus romances, embora não seja o mais apreciado nem o mais conhecido. A fama do romancista é assentada em obras menos extensas, como Eugênia Grandet, O primo Pons, A prima Bette, O pai Goriot, e até em obras tão fracas como A mulher de trinta anos. O relativo desconhecimento da história de Luciano de Rubempré é devido provavelmente a uma impressão dos contemporâneos de Balzac, adotada sem muito exame pela posteridade. Pois os contemporâneos de forma alguma podiam formular julgamento equânime a respeito de uma obra que saiu aos pedaços, publicados com intervalos enormes, uns em folhetim, outros em volume, não somente sob títulos diversos, sem nada para lhes indicar a ligação, como também sem que fosse observada a ordem cronológica dos episódios.