(Ver Paul-Émile Cadilhac, “Le Centenaire d’Illusions Perdues”, em L’Illustration, 5 de novembro de 1938.) Balzac levava o seu imenso plano na cabeça e pouco lhe importava que lançasse primeiro ora esta, ora aquela parte; trabalhava sempre tendo em vista o conjunto; assim, o fim de Ilusões perdidas saiu depois do começo de Esplendores e misérias das cortesãs. Nada surpreendente, pois, que o público da época tenha perdido o fio desses enredos emaranhados e preferido as obras que saíram de vez completas.

Hoje, porém, nada nos impede de apreciar devidamente a epopeia de Luciano de Rubempré e de colocá-la entre as obras mais significativas do romancista. Não fosse o nosso respeito à ordem de publicação determinada por Balzac e seguida à risca na presente edição, daríamos Esplendores e misérias das cortesãs logo após Ilusões perdidas e não no volume 9, onde está inserido em conformidade com o critério adotado desde o início. Por esse motivo limitamos o comentário presente a Ilusões perdidas, assinalando desde já que Esplendores e misérias das cortesãs é a sua continuação direta.

Luciano de Rubempré é uma das criações mais completas de Balzac. Na representação dessa personagem, o romancista mostra-se digno sucessor dos clássicos, criadores de grandes tipos, e, ao mesmo tempo, pinta um indivíduo caracteristicamente romântico. Luciano encarna, antes de tudo, o tipo universal do talento provinciano seduzido pelo brilho da capital; mas também é a personagem característica de determinada sociedade e época, um desses moços influenciados pelo exemplo de Napoleão, “tão fatal no século xix pelas pretensões que inspira a tanta gente medíocre”. Roland Chollet, em seu excelente prefácio a Ilusões perdidas (na edição da Gallimard na Biblioteca Pléiade), cita vários casos reais de fracasso parecidos com o contado nesse romance, amplamente comentados pela imprensa da época. Ao mesmo tempo dá toda uma relação de narrativas publicadas entre 1820 e 1840 que têm como assunto o desmoronamento de ambições intelectuais exageradas e de sonhos de glória frustrados. O estudioso mostra a repetição nessas obras de certas situações estereotipadas, que Balzac não se pejou de aproveitar; por exemplo, a do jovem poeta arruinado, forçado pela miséria a escrever, a toda a pressa, um punhado de canções licenciosas, para custear o enterro da amante. Mesmo o mais importante desses romances, O vermelho e o negro, de Stendhal, não teve em 1831 o impacto que a posteridade lhe atribuiria mais tarde; foi o tipo do talento ambicioso de Balzac, triunfante como Rastignac ou derrotado como Luciano, que se gravou logo na imaginação dos leitores. Afinal, é, também, uma individualidade inconfundível, delineada sob todos os seus aspectos com perfeito relevo, vista por dentro e por fora com seus próprios olhos, os de Balzac e os dos amigos e inimigos. Chegamos a conhecer-lhe todas as fraquezas e, no entanto, como o próprio romancista, não conseguimos subtrair-nos à estranha sedução que emana dessa criatura frágil e perigosa, “bela como um deus grego”.

Sendo Luciano uma pessoa sumamente influenciável, cuja evolução é modificada por todos aqueles com quem convive, seu criador empenha-se em descrever a fundo os ambientes por onde ele passa: a fastienta, ridícula e limitada sociedade de Angoulême, e o brilhante meio literário de Paris, espantosamente imoral e cinicamente espirituoso, no qual se vive com vertiginosa intensidade. No fim do romance, ao reconduzir Luciano, já famoso, ao cenário de sua estreia, o autor completa com um último toque o quadro da sociedade provinciana, a qual condena e almeja, a um tempo, em Luciano, o encanto deletério de Paris.

Esses fidalgotes tolos e desocupados que gastam a vida em questões de etiqueta e mesquinhas intrigas pessoais, esforçando-se por manter inacessível o seu mundinho às castas mais “baixas”; esses pequeno-burgueses que escalam o reduto pelas armas ora do comércio, como os Cointet, ora das profissões liberais, como Petit-Claud; esses operários astutos e obstinados, como Cérizet e o velho Séchard, que se infiltram sorrateiramente na burguesia; esse salão provinciano onde reina a sra. de Bargeton, sedenta de aventuras intelectuais e outras, irmã espiritual de Diná Piédefer (A musa do departamento) e da sra. de Bovary, são admiravelmente colhidos ao vivo. Balzac intensifica a impressão de monotonia e pasmaceira, reconduzindo-nos ao mesmo cenário com Luciano e a sra. de Bargeton. Tudo está no mesmo lugar, como se na ausência dos dois toda a vida da cidadezinha tivesse parado. A ebulição que nela suscita a presença de um ambicioso ou de um apaixonado traz à tona daquele lodaçal toda a lama dos fundos.

Menos ligada ao ambiente provinciano, pois poderia verificar-se em qualquer lugar, é a história de David Séchard, as suas lutas de industrial e de inventor. Em volta dele, como de todas as personagens honestas de Balzac, enxameiam os velhacos, e trama-se a conspiração de praxe para ludibriá-lo e despojá-lo. A personalidade de David, o gênio modesto cheio de concepções sublimes e incapaz de resolver os pequenos problemas da vida prática, é tão autêntica como a de Luciano e serve para pôr em relevo esta última por efeito de oposição. Pouco diremos de Eva, irmã de Luciano e esposa de David, “a criatura mais encantadora que eu já fiz”, segundo uma afirmação de Balzac, limitando-nos a assinalar a arte com que o romancista sabe reproduzir a oscilação de seus sentimentos entre o irmão e o marido.

Nenhum desses caracteres necessita de comentário: todos se desenvolvem aos olhos do leitor, explicam-se por si mesmos. Mas talvez não seja desnecessário apontar, especialmente no episódio de David Séchard, como o mundo de Balzac é sólido, cheio, por assim dizer “mobiliado”. David é impressor. Essa qualidade não resulta de uma afirmação gratuita do autor: Balzac sente-se na obrigação de nos levar à tipografia, de nos apresentar os operários e as máquinas, os problemas administrativos e técnicos da impressão, o cálculo do custo e o do lucro e até a gíria do ramo. Depois, David se torna inventor. Balzac acompanha-o passo a passo em suas experiências para descobrir um processo barato de fabricar papel, espia-o no seu laboratório, abre-lhe os alambiques e sofre com ele as dificuldades da obtenção da patente, as possibilidades de fraude deixadas pela lei aos “aperfeiçoadores de privilégio”. Enfim, David se envolve em complicações financeiras, e lá vem Balzac, pela primeira vez na história da literatura, a entupir as páginas de um romance com as vicissitudes do protesto de uma letra de câmbio, sem esquecer a especificação pormenorizada das despesas. Com tudo isso, o interesse do leitor não se cansa, e essas infiltrações da complexa realidade cotidiana num gênero até então puramente psicológico trazem conquistas definitivas e possibilidades infinitas de enriquecimento, tornando o romance, daí em diante, a síntese de todos os gêneros e a expressão peculiar do século xix.

A parte mais importante do livro é o segundo episódio, as vicissitudes de Luciano em Paris, onde ele passa por uma série de ambientes. O dos jornalistas é aquele que leva Balzac a usar os traços mais incisivos e as cores mais sombrias, e lhe transforma as páginas numa sátira virulenta.