Muito o entristecia ver essa obra, à qual ele dedicou tantos anos, esgotada e ainda com imperfeições. O desejo da Biblioteca Azul é, pois, consagrar a edição definitiva de Rónai, considerada uma das mais importantes fora da França e um verdadeiro patrimônio cultural brasileiro, e fazer a obra de Balzac reviver uma vez mais entre nós.

Sumário

8

ESTUDOS DE COSTUMES •

CENAS DA VIDA PARISIENSE

Capa

Créditos

Folha de rosto

A comédia humana 8 - Estudos de costumes • Cenas da vida parisiense

Introdução: Por Paulo Rónai

História dos treze: Prefácio - Por honoré de balzac

História dos treze: Ferragus - Tradução de ernesto pelanda

História dos treze: A Duquesa de Langeais - Tradução de Ernesto Pelanda

História dos treze: A menina dos olhos de ouro - Tradução de Ernesto Pelanda

História da grandeza e da decadência de César Birotteau - Tradução de gomes da silveira

A casa Nucingen - Tradução de Vidal de oliveira

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Começa com este volume a série das Cenas da vida parisiense. Tal afirmação talvez surpreenda os leitores que seguem a presente edição desde o começo, pois poderá haver cena mais parisiense do que O pai Goriot (incluído nas Cenas da vida privada) ou como a segunda parte de Ilusões perdidas (colocada entre as Cenas da vida provinciana)? Na realidade, essas subdivisões de A comédia humana não se excluem; as oscilações do próprio autor, que mais de uma vez retirava determinada cena de um dos grupos para colocá-la em outro, mostram que elas não correspondem a características congênitas inconfundíveis; frequentemente obedecem a meras conveniências editoriais, como, por exemplo, a exigência de fazer volumes de espessura mais ou menos igual etc.

A reunião de três “episódios” sob o título comum de História dos Treze (em francês: Histoire des Treize) é menos casual do que o agrupamento de outros romances e novelas sob títulos coletivos, como Os celibatários ou Os parisienses na província, adotados também muitas vezes pela necessidade de juntar várias obras para fazer um volume. Desde o princípio, essa história devia constar de várias narrativas e, significativamente, o Prefácio foi escrito antes dos episódios.

A ideia central destes é, pois, a sociedade de “treze homens que recomeçam a Sociedade de Jesus em proveito do Diabo”. Esses treze amigos, cuja amizade permanece um segredo aos olhos do mundo, juraram que se ajudariam reciprocamente em todas as circunstâncias da vida. Cada vez que um deles se encontra em dificuldades, os outros, esquecidos das contingências de sua própria existência, lá estão para auxiliá-lo. O imperativo da amizade é a sua lei suprema, que domina todas as outras, e impõe silêncio a quaisquer escrúpulos de caráter moral.

Não há na associação dos Treze nenhum conceito superior, nenhum ideal teórico. O absoluto devotamento de todos está à disposição de cada um, não apenas para afastar um perigo como também para satisfazer um capricho, transformar em realidade uma fantasia. Vê-se que a ideia não podia ser mais romântica. Aceita-se a força do indivíduo como critério moral; para torná-la maior, treze indivíduos resolvem concentrar seus recursos em proveito de cada um.

Nas mãos de um romancista hábil, tal concepção se torna extremamente fértil, e bem o sentiu Balzac, pois afirma que dela poderia tirar tantos volumes “quantos a Contemporânea [alusão à aventureira Ida Saint-Elme] ofereceu ao público”. Felizmente não o fez, e evitou assim uma inevitável mecanização e monotonia. “Estes três episódios da História dos Treze”, afirma numa nota da primeira edição de Ferragus, “são os únicos que o autor pôde publicar. Quanto aos outros dramas desta história tão fecunda em dramas, podem ser contados entre onze horas e meia-noite, mas é impossível escrevê-los.” Já na época em que publicou os três episódios (1833-1835), a ambição de apresentar o panorama de toda uma sociedade atraía-o mais do que o prazer de emaranhar os fios de uma intriga.

Ao dedicar as três novelas que formam a História dos Treze a três próceres do romantismo — Berlioz, Liszt e Delacroix —, Balzac como que adverte os futuros leitores que forem avançando no labirinto de A comédia humana segundo o seu plano de conjunto (adotado fielmente nesta edição) para não se espantarem com a mudança radical sobrevinda depois do imenso painel “realista” de Ilusões perdidas, plantadas (salvo os capítulos finais) no solo firme do dia a dia: ele há de nos introduzir num universo fantástico de personagens sobre-humanas e paixões desvairadas, para logo depois, em História da grandeza e da decadência de César Birotteau e A Casa Nucingen, voltar conosco à Paris de todo dia, conhecida e familiar.

A ideia de sociedades secretas e de conspirações “estava no ar” naquela época. Um dos amigos de Balzac, Nodier, escreveu a história das sociedades secretas do Exército durante o Império; o romancista conhecia essa obra e a ela se refere mais de uma vez. Mais frequentes ainda as referências ao medíocre drama pré-romântico de Otway, Veneza salva; este impressionou Balzac pela apresentação de uma amizade excepcional, a qual torna um dos amigos capaz de matar o outro para impedir-lhe a execução no cadafalso. Há também inúmeras alusões, em A comédia humana, às conspirações liberais ocorridas durante a Restauração e que o governo de Carlos x sufocava no sangue. Dois de seus romances, A Bretanha em 1799 e Um caso tenebroso, revivem conspirações reais havidas durante o Diretório.

Em várias outras obras de A comédia humana aparecem coligações misteriosas e terrivelmente eficazes que cercam suas vítimas e as executam sem que estas suspeitem sequer a força que as liquida. Às vezes a coligação não chega a possuir forma organizada nem toma consciência de si mesma; assim, o grupo de velhas senhoras de Tours, amigas da srta. Gamard, “instaladas na cidade de maneira a figurar os vasos capilares de uma planta, aspiravam, com a avidez de uma folha pelo orvalho, as novidades e os segredos de cada lar, absorviam-nos e transmitiam-nos maquinalmente ao padre Troubert, como as folhas transmitem ao caule o rocio que servem... congregação ociosa e operante, invisível e que tudo via”. Outra vez é um grupo de dez anciães que se reúnem, em determinado dia, num canto modesto do Café Thémis, junto à Pont-Neuf, e discutem baixinho os seus negócios: na realidade são os “reis silenciosos e desconhecidos de Paris”; todos usurários, senhores do dinheiro, “casuístas da Bolsa”, constituíram “um Santo Oficio onde são julgados e analisados os mais indiferentes atos de todos os que possuem uma fortuna qualquer” (Gobseck). Ao mesmo tempo, em Issoudun, um grupo de rapazes desocupados assume o nome de Cavalheiros da Malandragem e com suas façanhas noturnas atemoriza toda a cidade (Um conchego de solteirão). Por trás de Vautrin entrevemos a misteriosa Sociedade dos Dez Mil, na qual repousa o extraordinário poder do aventureiro (O pai Goriot). E, enquanto se formam tantas congregações para praticar livremente o mal, existe também um agrupamento, o dos Irmãos da Consolação, que se envolve de mistério para poder praticar melhor o bem (O avesso da história contemporânea).

O escritor concebia esses clãs com tal intensidade, fazia ideia tão extraordinária do prestígio deles que ele mesmo quis criar um verdadeiro, cujos membros, espalhados pela sociedade, fizessem valer uns em favor dos outros toda a sua influência. Léon Gozlan relata em Balzac en pantoufles [Balzac de pantufas] o caso dos Cavalos Vermelhos (denominação provinda do nome do restaurante Le cheval Rouge, no qual se reuniam), sociedade que Balzac ideou e, até certo ponto, conseguiu realizar. Ela compreendia oito escritores e jornalistas (entre os quais Théophile Gautier, Alphonse Karr e o próprio Gozlan), que se reuniam periodicamente sob o maior sigilo a fim de discutir os meios de se auxiliarem reciprocamente, aproveitando-se de suas respectivas posições na imprensa, cujo poder Balzac foi o primeiro a avaliar, e obtendo nomeações de bibliotecário, professor, deputado até.

“Que produziu, finalmente, esta famosa sociedade do Cavalo Vermelho, após vários anos de existência? Muitos jantares, muitos artigos escritos nos jornais para Balzac, sobre Balzac, a favor de Balzac, que nada escreveu acerca dos outros cavalos vermelhos. Ela não conferiu o menor emprego, não trouxe a menor vantagem a qualquer dos seus membros. Balzac foi o único a acreditar muito nela e o único, também, a tirar dela, de vez em quando, algum proveito.”

Note-se ainda que a História dos Treze, devorada por milhares de leitores em toda a Europa, contribuiu bastante para aumentar o número de associações clandestinas. Uma das que surgiram sob sua influência deve ter sido a confraria dos “primos de Ísis”, por volta de 1840, em Paris, e entre cujos membros se encontrava Gobineau, “esse romântico que, quase só na França, incluiu no misticismo da raça suas aspirações individuais de poder” (Ernest Seillière).

Apesar da importância atribuída por Balzac às sociedades secretas, o papel dos Treze nos três episódios da obra é bem menor do que se poderia julgar pela leitura do Prefácio. A intervenção deles, sensível e motivada em Ferragus, é menos importante em A duquesa de Langeais e é puramente formal em A menina dos olhos de ouro.