São, na realidade, três obras essencialmente diversas: Ferragus, um descendente do romance “negro” inglês ao mesmo tempo que um dos primeiros espécimes da literatura policial; A duquesa de Langeais, a análise psicológica de uma paixão; A menina dos olhos de ouro, um desses estudos de depravação sexual (também um dos primeiros; sempre Balzac é precursor) que, sobretudo de Freud para cá, estão proliferando nas literaturas modernas.
Ferragus ou o Chefe dos Devoradores (em francês: Ferragus ou le Chef des Dévorants) teve, na época, um sucesso excepcional. Muitos escritores, a sra. de Girardin, Charles de Bernard, Émile Deschamps, leram-no com encanto; a duquesa de Berry, então detida no forte de Blaye em consequência de sua malograda tentativa de insurreição e que lia o romance em folhetim, ficou tão interessada que pediu a seu médico, o dr. Menière, conhecido de Balzac, que lhe escrevesse a fim de conhecer o desfecho de antemão; o príncipe de Metternich, segundo o duque de Fitz James comunicou a Balzac, não abandonava a narrativa e devorava-a.
Entretanto, é forçoso reconhecê-lo, Ferragus é uma das obras fracas de Balzac. Toda aquela atmosfera de frenesi, aquela acumulação de crimes, de mistérios, de acasos, de coincidências, de cartas perdidas e encontradas, de luvas envenenadas, de papéis escritos em código são uma herança do romance “negro” inglês e do romance popular francês, dois gêneros devorados na época, mas completamente extraliterários, como o seriam hoje as novelas radiofônicas ou as histórias em quadrinhos. Tais foram os modelos de Balzac na sua estreia, e seus romances de mocidade — que teve a intuição de publicar sob pseudônimos — reproduzem fielmente todos os disparates, todo o absurdo de seus mestres. Tem toda razão Marcel Bardèche ao ligar Ferragus a esse grupo de obras de cordel e ao apontar a figura do bandido convertido Argow, que participa de duas delas, como a primeira encarnação da personagem do próprio Ferragus.
A nossa admiração a Balzac não deverá levar-nos a dissimular tudo o que há de irreal e até de pueril nesta história fantástica. Não proclamaremos, com Claude Mauriac, como um princípio do leitor de Balzac: “Penetremos no universo balzaquiano com submissão; não lhe rejeitemos nenhum dos aspectos; lembremo-nos de que a realidade, frequentemente, nos surpreendeu à força de irrealidade”. A comédia humana é de uma riqueza bastante grande para compensar-nos de tais imperfeições. Na própria história de Ferragus, aliás, há compensações numerosas. Todas as páginas relativas aos segredos de Paris — os mistérios de seus amantes, de seus porteiros, de seus basbaques — formam partes impressionantes do movimentado retrato que Balzac constantemente recomeça e completa desta sua personagem mais importante. O “mérito local” da história, a intensa emoção da “caça ao homem”, a referência aos encontros casuais com personagens misteriosas que o escritor tem a vontade de interrogar, a visão de Paris viva através de um passeio no Père-Lachaise, a Paris morta são dignos das melhores páginas de Balzac. Se o romance em conjunto anuncia Mistérios de Paris e O judeu errante, de Sue, todos esses elementos fazem pressentir as grandes criações de Balzac. Ferragus é um descendente do pirata Argow; mas é também, ao mesmo tempo, um predecessor de Vautrin.
Escrito depois de Ferragus, o episódio A duquesa de Langeais (em francês: La Duchesse de Langeais) leva-nos a um setor completamente diverso. É a história de um duelo entre uma mulher faceira e o seu apaixonado, luta mundana que se desenrola num dos salões mais elegantes do Faubourg Saint-Germain e assume, graças à arte de Balzac, intensidade excepcional. O patético reside mais ainda nos combates verbais em que a duquesa de Langeais e o general de Montriveau medem suas forças do que na tentativa fantástica por meio da qual este último procura reaver a amante perdida e reencontrada. Essa moldura romântica não deixa, aliás, de ter também sua grandeza, sensivelmente reforçada pela habilidade da construção: a história começa no ponto crítico, os antecedentes são narrados, depois de excitado o interesse, com épica amplidão e o desfecho, um desfecho bem balzaquiano, cai como um relâmpago e enche as últimas páginas de uma atmosfera de tragédia grega.
O fogo que se sente arder ainda hoje dentro desta narrativa, essa monstruosa violência de paixão, essa imagem do amor força primária, rude e irracional, aliada do destino cego, fazem de A duquesa de Langeais uma das obras mais irresistíveis de Balzac. Sente-se nela o mesmo vento de fatalidade que sopra através das páginas de A mulher abandonada.
Além dos dotes do escritor, irradia-se desta narrativa o sofrimento do amante. Em A duquesa de Langeais o romancista Balzac vinga-se da ferida que a marquesa (mais tarde duquesa) de Castries infligiu ao coração de Balzac homem.
Dir-se-ia que Balzac desejava que os leitores o identificassem com Montriveau, pois, ao dar o retrato físico do general, limitou-se a olhar no espelho e esboçou um autorretrato complacente.
Em “A vida de Balzac” contamos a melancólica história desse amor que, apesar de todos os esforços do escritor, permaneceu platônico. A sra. de Castries, uma das mulheres mais em vista da aristocracia de então, que amou o jovem príncipe de Metternich, filho do chanceler, com uma paixão tornada famosa; que serviu de modelo a uma personagem de Stendhal, a sra. de Aumale, em Armance; que seria amada por Sainte-Beuve, Janin, Musset; esta grande dama tão interessante negou-se a Balzac depois de ter-lhe dado muitas provas de afeição. O escritor, que a acompanhara até a Suíça, voltou de Genebra chorando, amaldiçoando a marquesa sem coração por havê-lo iludido, por haver-lhe exasperado os sentidos sem querer satisfazê-los.
A correspondência da marquesa de Castries, posteriormente descoberta e publicada, mostra-a, na verdade, sob luz diferente; ela mesma parece haver sofrido tanto quanto o romancista por não ter podido dar-se toda. Sua recusa bem poderia explicar-se pela fidelidade à lembrança de seu grande amor, morto havia alguns anos, ou, talvez, pelo acidente sofrido por ela pouco tempo antes da morte do jovem Metternich, e que a manteria doente durante quase todo o resto da vida. Seja como for, o escritor julgava-a fria, insensível e coquete, e passou a odiá-la (o que absolutamente não o impediu de amá-la durante muitos anos ainda depois do “rompimento” e de procurá-la sob os mais variados pretextos).
Quando escreveu o romance, a ferida estava ainda bem viva, bem dolorosa. Essa dor, porém, como observa oportunamente P.G. Castex, devia estar cicatrizando-se graças a outra aventura sentimental, mais feliz, do romancista: no momento de escrever essa novela, já era amante da condessa Hanska. Balzac, que nunca teve confidentes entre os homens, ia ler as provas e procurar consolações junto à sua velha Dilecta, a sra. de Berny; lamentava-se do insucesso junto à sua amiga espiritual, a sra. Zulma Carraud; expandia a sua dor nas cartas à condessa Hanska, que vinha, em boa hora, preencher o lugar recusado pela marquesa; e anos após escreveria ainda a uma quarta mulher, certa misteriosa Louise, uma de suas inúmeras correspondentes.
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