E, embora seja permitido aos contistas uma certa vaidade literária, ao tornarem-se historiadores devem renunciar às vantagens que proporciona a aparente bizarria dos títulos sobre os quais se edificam hoje rápidos êxitos. Também o autor explicará sucintamente aqui as razões que o obrigaram a aceitar cabeçalhos aparentemente pouco naturais.
ferragus é, conforme antigo costume, nome tomado por um chefe dos “Devoradores”. No dia da eleição tais chefes continuavam a dinastia devorantesca cujo nome mais lhes agradava, tal como fazem os papas, no dia da investidura, quanto às dinastias pontificais. Têm assim os Devoradores seus Trempe-la-Soupe ix, Ferragus xxii, Tutanus xiii, Masche-Fer iv, do mesmo modo que a Igreja possui seus Clemente xiv, Gregório ix, Júlio ii, Alexandre vi[6] etc.
Agora, que são os Devoradores? “Devoradores” era o nome de uma das tribos de “Companheiros” oriundas outrora da grande associação mística formada entre os obreiros da cristandade para reconstruir o templo de Jerusalém.
A “Companheiragem” está ainda de pé na França entre o povo. Suas tradições tão poderosas sobre cabeças pouco esclarecidas e em gente não instruída o bastante para que possam faltar aos seus juramentos poderiam servir a empreendimentos formidáveis se algum rude gênio quisesse apoderar-se de suas sociedades. Com efeito, todos os instrumentos são ali quase cegos; e, de cidade em cidade, existe para os Companheiros, desde tempos imemoriais, uma “Obade”, espécie de albergue de pernoite mantido por uma Mère, meio boêmia, que nada tem a perder, bem informada de tudo o que se passa no lugar e devotada, por medo ou por longo hábito, à tribo que, particularmente, alimenta e aloja. Enfim essa gente cambiante mas submetida a imutáveis costumes pode ter olhos por toda parte, pode executar qualquer vontade sem a julgar, pois o mais velho dos Companheiros está ainda na idade em que se acredita em alguma coisa. Professam, aliás, doutrinas assaz verdadeiras e assaz misteriosas para eletrizar patrioticamente todos os adeptos, se forem suficientemente desenvolvidas. Demais, o apego dos Companheiros às suas leis é tão apaixonado que as diversas tribos travam entre si sangrentos combates na defesa de simples questões de princípios. Felizmente para a ordem pública atual, quando um Devorador é ambicioso, constrói casas, faz fortuna e deixa a Companheiragem.
Haveria ainda muita coisa curiosa a dizer sobre os Companheiros do Dever, rivais dos Devoradores, e sobre todas as diferentes seitas de obreiros, sobre seus usos e costumes, sua fraternidade e as relações entre eles e a franco-maçonaria; mas aqui tais minúcias ficariam deslocadas.
Assim, acrescentará apenas o autor que não era raro, na antiga Monarquia, encontrar-se um Trempe-la-Soupe, a serviço do rei, com lugar nas galés por cento e um anos, mas dominando sempre a tribo e por ela consultado a distância, religiosamente. Demais, ao deixar a sua prisão, tinha a certeza de encontrar auxílio, socorro e respeito em todos os lugares. Ver seu chefe nas galés não era, para a tribo fiel, mais que uma dessas desgraças pelas quais só a Providência é responsável, não dispensando os Devoradores de obedecer ao poder criado por eles e acima deles. Era o exílio momentâneo do seu legítimo rei, e para eles sempre rei. Hoje, porém, o prestígio romanesco ligado aos nomes de Ferragus e dos Devoradores está completamente dissipado.
Quanto aos Treze, o autor se acha bastante autorizado pelos detalhes desta história quase romanesca para dispensar também um dos mais belos privilégios do romancista de que há exemplo, privilégio que no Châtelet[7] da literatura poderia ser adjudicado a alto preço e impor ao público tantos volumes quantos lhe ofereceu a Contemporânea.[8] Os Treze eram homens da têmpera de Trelawney,[9] o amigo de Lord Byron que foi, ao que se diz, o modelo do “Corsário”;[10] todos fatalistas, pessoas de coração e de poesia, mas entediados da vida monótona que levavam e arrastados para deleites asiáticos por forças tanto mais excessivas e furiosas ao despertarem quanto mais tempo adormecidas.
Certo dia, um deles, depois de reler Veneza preservada,[11] admirando a união sublime de Pedro e Jaffeir, pensou nas virtudes particulares dos homens lançados à margem da ordem social, na probidade das prisões, na mútua fidelidade dos ladrões, nos privilégios do exorbitante poderio que tais homens sabem conquistar, confundindo todos os pensamentos numa só vontade. Achou o homem maior que os homens. Presumiu que a sociedade devia pertencer, inteiramente, a pessoas distintas que, à sua inteligência natural, aos conhecimentos adquiridos e à fortuna, juntassem um fanatismo tão vivo que fundisse num único bloco essas diferentes forças. Desde então, imensa de ação e de intensidade, essa oculta potência, contra a qual estaria sem defesa a ordem social, abateria os obstáculos, fulminaria as vontades e daria a cada um o poder diabólico de todos. Essa sociedade à parte na sociedade, hostil à sociedade, não admitindo nenhuma das ideias da sociedade, não reconhecendo nenhuma das suas leis, não se submetendo senão à consciência de sua necessidade, não obedecendo senão ao próprio devotamento, agiria inteiramente por um único dos associados quando qualquer deles reclamasse a assistência de todos. Essa vida de flibusteiros de luvas amarelas e carruagem; essa íntima união de gente superior, fria e escarninha, sorrindo e amaldiçoando, no seio de uma sociedade mesquinha e falsa; a certeza de fazer tudo dobrar-se a um capricho, de urdir com habilidade uma vingança e de viver em treze corações; a felicidade contínua de ter um segredo de ódio em face dos homens, de estar sempre armado contra eles, de poder recolher-se em si mesmo com uma ideia a mais que as pessoas mais notáveis; essa religião de prazer e de egoísmo fanatizou treze homens que recomeçaram a Sociedade de Jesus em proveito do Diabo.
Foi sublime e horrível. O pacto se fez. E durou precisamente porque parecia impossível.
Houve assim em Paris treze irmãos que se pertenciam e se desconheciam na sociedade; que se reuniam à noite como conspiradores, não escondendo uns aos outros um só pensamento e valendo-se um após outro de uma fortuna comparável à do Velho da Montanha.[12] Tinham os pés em todos os salões, as mãos em todos os cofres e os cotovelos nas ruas, as cabeças em todos os travesseiros, e, sem escrúpulos, faziam tudo obedecer à própria fantasia. Nenhum chefe os comandava e ninguém poderia arrogar-se tal poder; prevalecia apenas a paixão mais viva, a circunstância mais exigente.
Foram treze reis desconhecidos, mais realmente reis e mais que reis, juízes e carrascos, que, munindo-se de asas para percorrer a sociedade de alto a baixo, nela nada quiseram ser, porque nela podiam tudo. Se o autor souber das causas da sua abdicação, há de dizê-las.
Agora, pode começar a narrativa dos três episódios que, nesta história, mais particularmente o seduziram pelo sabor parisiense dos detalhes e pela bizarria dos contrastes.
Paris, 1831

FERRAGUS
OU O CHEFE DOS DEVORADORES
A HECTOR BERLIOZ[13]
I — A SRA. JÚLIO DESMARETS
Há em Paris certas ruas tão desonradas quanto pode sê-lo um homem culpado de infâmia, e depois existem ruas nobres, ruas simplesmente honestas, ruas jovens sobre cuja moralidade o público não formou ainda opinião, ruas assassinas, ruas mais velhas que velhas viúvas endinheiradas, ruas estimáveis, ruas sempre asseadas e ruas sempre sujas, ruas operárias, trabalhadoras, mercantis. As ruas de Paris têm, enfim, qualidades humanas, e suas fisionomias nos sugerem certas ideias contra as quais nos vemos indefesos.
Há ruas de má companhia onde não desejaríamos morar e ruas onde estabeleceríamos de boa vontade a nossa residência. Algumas, tal como a Rue Montmartre, possuem uma bela cabeça e terminam em cauda de peixe. A Rue de la Paix é uma rua larga, uma grande rua; mas não desperta nenhum dos pensamentos graciosamente nobres que surpreendem uma alma sensível em plena rua real e falta-lhe, certamente, a majestade que reina na Place Vendôme.
Se passardes pelas ruas da Île St-Louis,[14] não indagueis a razão da tristeza nervosa que se apodera da gente ante a solicitude e o ar melancólico das casas e dos grandes edifícios desertos. Essa ilha, cadáver dos coletores gerais, é como que a Veneza de Paris.
A Place de la Bourse é tagarela, ativa, prostituída; só é bonita ao luar, pelas duas da madrugada: de dia é uma síntese de Paris; de noite, um sonho da Grécia.
A Rue Traversière Saint-Honoré não é, acaso, uma rua de infâmia? Há nela pequenas casas de duas aberturas onde se encontram em cada andar crimes, vícios e misérias. As ruas estreitas expostas ao vento norte, onde o sol só penetra três ou quatro vezes por ano, são ruas assassinas que matam impunemente. A Justiça hoje não se mete nisto; mas antigamente o Parlamento teria talvez chamado o tenente de polícia para o vituperar “por causas tais” e teria pelo menos emitido alguma sentença contra a rua, tal como o fez contra as perucas do cabido de Beauvais.
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