Albert Béguin, um dos comentadores mais originais de Balzac, chega a afirmar que é ela o assunto fundamental. A dedicatória a Delacroix seria um primeiro índice de que o romancista quis realizar com o instrumento da palavra uma visão só produzida pelo pincel. Ao longo da novela, mostra Béguin a luta de duas cores simbólicas, o amarelo e o vermelho, emblemas do ouro e do sangue, “mas não se pode insistir bastante sobre este ponto; este simbolismo constante não é fixado por qualquer sistema de correspondências estáveis”. Tal predominância de jogo das cores não significa, no pensamento de Béguin, que na novela os caracteres, as paixões e a fatalidade não tenham a sua importância. Entretanto, “a intenção que comanda tudo aqui é decerto o intuito surpreendente de se entregar às sugestões das cores e conformar as cenas ou os acontecimentos à lei misteriosa de uma composição pictural. Em certo sentido, pode-se dizer que, realmente, é para festejar a invasão e a vitória do vermelho que a marquesa deve massacrar Paquita”.

A interpretação de Béguin, que é também uma impressão de poeta, atrai a atenção do leitor sobre a força das impressões visuais nesta obra de Balzac. Cabe lembrar, a respeito, que o toucador de Paquita, de um luxo tão asiático, existiu na realidade: era o gabinete de trabalho do próprio Balzac, segundo ele mesmo o afirma numa carta à condessa Hanska e segundo o confirma Théophile Gautier, que o viu com seus olhos.

Tampouco discordaremos do autor de Balzac visionnaire quando arrola A menina dos olhos de ouro entre as obras místicas de Balzac. O próprio romancista indicou as afinidades de seu De Marsay com Fausto, Don Juan, Manfredo, espíritos sedentos de infinito e que esperam encontrar no amor esse pensamento sem limites “que os sábios julgam entrever na ciência e que os místicos só encontram em Deus”.

Se cremos nos protestos do autor, a história A menina dos olhos de ouro, com suas personagens sobre-humanas, suas paixões frenéticas, seus mistérios acumulados, não seria menos verdadeira do que o mais realista de seus romances. “O episódio de A menina dos olhos de ouro”, escreve na nota introdutória da primeira edição, “é verdadeiro na maior parte de seus pormenores; a circunstância mais poética, e que lhe forma o nó, a semelhança dos dois principais personagens, é exata. O herói da aventura que veio contar-lha, pedindo-lhe que a publicasse, decerto estará satisfeito de ver seu desejo atendido, embora o autor, de início, tivesse julgado a empresa impossível; o que parecia sobretudo difícil de fazer crer era essa beleza maravilhosa e meio feminina que distinguia o herói aos dezessete anos e da qual o autor reconheceu os traços no moço de vinte e quatro. Se algumas pessoas se interessarem pela menina dos olhos de ouro, poderão vê-la após a queda da cortina sobre a peça, como a essas atrizes que, para receberem suas coroas efêmeras, se reerguem bem-dispostas depois de terem sido apunhaladas. Nada tem desenlace poético na natureza. Hoje, a menina dos olhos de ouro está bem murcha... Quanto à marquesa de San-Real, acotovelada este inverno nas Bouffes ou na Ópera por algumas das honradas pessoas que acabam de ler este episódio, ela tem exatamente a idade que as mulheres não mais confessam.”

Verdadeiro também o desfecho; apenas aconteceu a outras protagonistas. “A sociedade moderna, nivelando todas as condições, esclarecendo tudo, suprimiu o cômico e o trágico; o historiador dos costumes é forçado, como aqui, a ir buscar onde estão os fatos engendrados pela mesma paixão, mas acontecidos a vários indivíduos, e cosê-los juntos para obter um drama completo.”

Essa explicação é capital para compreendermos as relações do romance balzaquiano com a realidade e justifica os pesquisadores que procuram “identificar” os modelos das personagens e os acontecimentos que forneciam os enredos. Tais pesquisas, às quais mais de uma vez fizemos referência nesta Introdução, são perfeitamente admissíveis, uma vez que o próprio Balzac faz questão de declarar: “Os escritores nunca inventam coisa alguma”.

Segundo Herbert J. Hunt (Balzac’s Comédie Humaine), o nosso romancista teria encontrado a principal inspiração para a ligação de Paquita e da sra. de San-Real no “romance”, muito comentado na época, da escritora George Sand e da atriz Marie Dorval, enriquecendo-a, como era de sua praxe, com detalhes dos “casamentos” homossexuais de outras socialites. O lesbianismo, aliás, estava na ordem do dia; e Balzac parece errar propositadamente ao reivindicar para si o mérito de ter introduzido na literatura aquele tema delicado. Em sua Introdução da edição da Pléiade, a pesquisadora Rose Fortassier arrola diversas obras levemente anteriores sobre o mesmo assunto e cuja influência está detectável neste episódio da História dos Treze: A ocasião, de Mérimée, Fragoletta, de Latouche, e A senhorita de Maupin, de Gautier, mas nenhuma delas tem a patética intensidade de nossa novela.

 

paulo rónai

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Houve sob o Império, em Paris, treze homens igualmente tocados pelos mesmos sentimentos, dotados de energia assaz grande para serem fiéis à mesma ideia, suficientemente probos para se não traírem uns aos outros, mesmo quando seus interesses se encontrassem em oposição, profundamente políticos para dissimularem os sagrados laços que os uniam, bastante fortes para se colocarem acima de todas as leis, audaciosos a ponto de tudo empreenderem e felizes de modo a obterem êxito, quase sempre, em seus desígnios; corriam os maiores perigos e sabiam calar as suas derrotas; inacessíveis ao medo, não sabiam o que fosse tremer nem diante do rei nem à frente do carrasco nem perante a inocência. Haviam-se associado tais como eram, sem levar em conta preconceitos sociais; criminosos, sem dúvida; mas assinalavam-se por algumas das qualidades que fazem os grandes homens e só se recrutavam entre pessoas de escol. Finalmente, para que nada faltasse ao sombrio e misterioso encanto desta história, permaneceram esses treze homens para sempre desconhecidos, embora tenham todos realizado as mais bizarras ideias sugeridas à imaginação pelo fantástico poderio falsamente atribuído aos Manfredos, aos Faustos, aos Melmoths[1]; e todos, no presente, vencidos, pelo menos, dispersados, voltando tranquilamente ao jugo das leis civis, tal como Morgan, o Aquiles dos piratas,[2] que, depois de ter sido o terror dos mares, se fez colono pacífico e desfrutou, sem remorsos, ao calor da lareira doméstica, os milhões acumulados no sangue, sob o rubro clarão dos incêndios.

Depois da morte de Napoleão, um acaso, que o autor deve calar, dissolveu os laços daquela existência secreta, curiosa, tanto quanto o pode ser o mais negro dos romances da sra. Radcliffe.[3] A estranha permissão para contar a seu modo algumas das aventuras desses homens, embora respeitando certas conveniências, só recentemente lhe foi dada por um desses heróis anônimos aos quais toda a sociedade esteve secretamente submetida, e no qual acredita ter surpreendido um vago desejo de celebridade.

Tal homem, jovem ainda na aparência, de cabelos louros e olhos azuis, cuja voz suave e clara parecia denunciar uma alma feminina, era pálido de rosto e misterioso de maneiras, conversava com amabilidade, pretendia não ter mais que quarenta anos e podia pertencer às mais altas classes sociais. O nome que assumira parecia suposto; na sociedade, sua pessoa era desconhecida. Quem era? Ninguém o sabia.

Confiando ao autor as coisas extraordinárias que lhe revelou, talvez quisesse o desconhecido vê-las de qualquer modo impressas e gozar as emoções que despertariam no coração do povo — sentimento análogo ao que agitava Macpherson[4] ao ver o nome de Ossian, sua criatura, inscrever-se em todas as línguas. Era essa, decerto, para o advogado escocês, uma das sensações mais vivas, ou, pelo menos, das mais raras que os homens se possam permitir. Não é isso o incógnito do gênio? Escrever o Itinerário de Paris a Jerusalém[5] é tomar parte na glória humana de um século, mas dotar o seu país de um Homero não será usurpar o poder de Deus?

O autor conhece demais as leis da narrativa para ignorar os compromissos a que o obriga este curto prefácio, mas conhece bastante a História dos Treze para estar certo de jamais se encontrar aquém do interesse que deve inspirar tal programa. Foram-lhe confiados dramas gotejantes de sangue, comédias cheias de terror, romances em que rolam cabeças secretamente cortadas, e, se algum dos leitores não estivesse já farto dos horrores que vêm sendo servidos ao público há algum tempo, poderia revelar-lhe aqui frias atrocidades, surpreendentes tragédias de família, por pouco que lhe fosse testemunhado o desejo de conhecê-las; mas escolheu, de preferência, as aventuras mais suaves, aquelas em que cenas puras se sucedem a temporais de paixão e nas quais a mulher aparece radiosa de virtude e de beleza. Para honra dos Treze, encontram-se dessas aventuras na sua história, a qual talvez tenha um dia a glória de ser comparada à dos flibusteiros, essa gente à parte, tão curiosamente enérgica e tão atraente, apesar dos seus crimes.

O autor deve evitar converter a narrativa, quando verdadeira, numa espécie de caixa de surpresas, e levar o leitor, à maneira de certos romancistas, durante quatro volumes, de subterrâneo a subterrâneo, para mostrar-lhe um cadáver ressequido e dizer-lhe, à guisa de conclusão, que o assustou constantemente com uma porta oculta nalguma tapeçaria e com um morto deixado por descuido debaixo do assoalho.

Malgrado sua aversão aos prefácios, o autor teve de lançar estas linhas no princípio deste fragmento. Ferragus é um primeiro episódio que se liga por invisível trama à História dos Treze, cujo poderio, naturalmente conquistado, só por si pode explicar certos acontecimentos de aparência sobrenatural.